CUNHA DE LEIRADELLA
Da quantidade dos pólos à importância dos eixos

Em casa onde não há pão, todos brigam e ninguém tem razão. Esta verdade, cunhada pela sabedoria e, certamente, pela fome popular, ainda é tão verdadeira hoje quanto foi ontem e há de ser amanhã. Apenas, nestes dias de certezas absolutas e globalizações salvadoras, é necessário que as verdades também se ajustem aos progressos sociais. Se, naquele tempo, todos brigavam e ninguém tinha razão, hoje, todos brigam e todos têm razão. Afinal, o terceiro milênio já está ali na esquina e é bom que se entre nele como manda o figurino. Se os preços e as consciências já foram flexibilizados, por que não se podem flexibilizar também as verdades?

O Brasil, apesar de tudo que se diz dele (e, principalmente, do que não se diz), ainda é um país de pompa e circunstância. Temos um Ministério da Cultura, mas, sempre que alguém fala em cultura, se ninguém puxa o revólver, também ninguém se sente comprometido. Apenas, para fazer jus à circunstância, promovem-se solenidades de pompa, e todos se sentem realizados. E, principalmente, aliviados. Afinal, cultura por cultura, a cultura do café e da soja é muito mais importante. Muito mais produtiva. Por isso, digeridos os adjetivos e emborcados os coquetéis, que mais fazer senão aplaudir? E, como palmas, além de não comprometer também são gratuitas, os aplausos explodem. Como manda o cerimonial, sempre na razão direta da idade do uisque e do tempero dos salgadinhos. Afinal, em terreno tão bem adubado de intenções, como não hão de germinar as sementeiras?

Por isso, neste cada um por si e Deus por ninguém, e dado o tamanho continental e as respectivas diferenças climáticas, (e também a diversidade dos sotaques, apesar de a língua ser a mesma) talvez não seja de espantar a proliferação de tantos pólos culturais. Nas artes de criação coletiva, onde o produto final é resultado de união (cinema e teatro, por exemplo), as coisas chegam a extremos de verdadeiro mimetismo. É o pólo cearense, é o pólo gaúcho, é o pólo mineiro, é o pólo baiano, é o pólo brasiliense, são todos esses pólos que andam por aí. Só o pólo sul e o pólo norte não entram na sementeira porque o Chuí e o Oiapoque são extremos do Brasil, não são extremos da Terra.

Mas o problema maior não são os pólos. São os eixos. Se entre o pólo sul e pólo norte existe um eixo, quantos eixos deveriam existir entre os pólos que vão do Chuí ao Oiapoque? A resposta é óbvia. Mas, como tudo neste continente de sotaques é feito mais de acordo com as contrações estomacais do que com os preceitos da lógica, apesar da quantidade de pólos, existe só um eixo. O eixo Rio-São Paulo.

E não adianta chorar, porque tudo passa por ele. Ou a criação artística periférica recebe a bênção do Rio de Janeiro ou de são Paulo, ou, em termos nacionais, não existe. Não é conhecida, nem consumida. Mas, como tudo é bom quando termina bem, e as solenidades e, principalmente, os coquetéis sempre terminam bem, para quê pensar em mudanças, se tudo pode continuar como está? Temos um Ministério da Cultura, mas, sempre que alguém fala em cultura, se ninguém puxa o revólver, também ninguém se sente comprometido. E estamos conversados. Se a Terra, que é a Terra, só tem um eixo, por que precisaria o Brasil de ter mais do que um? O Rio de Janeiro não é a cidade maravilhosa e São Paulo não é a locomotiva do Brasil?

Então, sorry, periferia.

 

Cunha de Leiradella nasceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.

Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

 
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