CUNHA DE LEIRADELLA
A minha Páscoa

Pesah. Pasca. Pascha. Páscoa. Hebraico. Grego. Latim. Português. Era a passagem. A comemoração da libertação dos israelitas do cativeiro do Egito. Começava com a refeição sacrificial no décimo quarto dia à tarde, isto é, no princípio do décimo quinto dia de abibe ou nisã (abril), com um cordeiro ou um cabrito assado, comido pelos membros de uma mesma família, acompanhado de ervas amargas e pães ázimos, enquanto o chefe da família contava a história da redenção do Egito. O sacrifício dos animais significava expiação e dedicação, os pães ázimos pureza, e as ervas amargas não deixavam esquecer a amargura da servidão egípcia.
         Na minha aldeia não se assavam cordeiros ou cabritos, nem se comiam pães ázimos e ervas amargas. As pessoas confessavam os seus pecados, iam à missa e comungavam. Porque, assim nos ensinavam, a Páscoa, além de comemorar a ressurreição de Jesus Cristo, mostrava também que, graças ao Seu sacrifício, ficava assegurada aos homens, como filhos de Deus, a passagem do pecado para a graça, da condenação para a glória, se se arrependessem, contritamente, das más ações que tinham praticado. Eu também me confessava, também ia à missa e também comungava, jurando a mim mesmo estar sinceramente arrependido de todas as faltas cometidas (embora tivesse plena consciência que as voltaria a cometer).
         A Páscoa, na minha aldeia, era uma festa. Os sinos tocavam na torre da igreja e todo mundo esperava passar a Cruz para beijar o Senhor. E receber o Padre e os acólitos, e entregar o folar e as esmolas. Mas, para mim, ainda menino, a maior festa da Páscoa era a colheita das bolotas e das giestas na mata de Penamusqueira, no sábado da Aleluia. Era com molhos e molhos dessas plantas que a minha Mãe mandava cobrir as pedras da calçada por onde havia de passar a Cruz até chegar à minha casa. E muito eu gostava de cobrir aquelas pedras, imaginando o Menino Jesus montado num burrico indo por ali abaixo, descendo pelo ribeiro a caminho de Jerusalém. A festa maior da Páscoa, a minha Páscoa, para o menino que eu era, era esta: imaginar o Menino Jesus montado num burrico, passando na porta da minha casa.
         E ainda hoje, passados todos estes anos, a minha Mãe já morta, a mata de Penamusqueira sem bolotas e sem giestas, e as pedras da velha calçada todas cobertas de calceta, mesmo sabendo coisas que jamais pensei que pudesse saber um dia, no Domingo de Páscoa eu ainda sonho com o Menino Jesus montado num burrico indo por ali abaixo, descendo pelo ribeiro a caminho de Jerusalém.

 

Cunha de Leiradella n asceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.

Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

Cunha de Leiradella
Escritor

leiradella@sapo.pt

 
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