CUNHA DE LEIRADELLA
Os espelhos de Lacan . Romance

INDEX

Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa
OS ESPELHOS DE LACAN
Considerações sobre graus dissociados
O objeto e os espelhos
O objeto e as imagens (a)
O objeto e as imagens (b)
O objeto e as imagens (c)
O objeto e as imagens (d)
Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa (cont. e FIM)

O OBJETO E AS IMAGENS

21

Marianinha Galiena sorriu e olhou para mim, e o garçom e a garrafa dançaram ao som do Big-Bang, cantando o Big-Crunch. As breves rolaram pelo chão e caíram sobre mim, e esquadrinharam os quasares por baixo da toalha. O garçom plantou uma bananeira e bateu quatro continências, e eu pedi-lhe que trouxesse uma cerveja Galiena. Mas o eco do Big-Bang engoliu o Big-Crunch e o Universo não se expandiu e afogou-se, e ele não escutou o meu pedido.

Marianinha Galiena sorria e olhava para mim e Deus abençoou-me e vomitou nos meus joelhos. O relâmpago do milagre escorreu no teto e nas paredes e escondeu-se no banheiro, e a escuridão do eclipse explodiu dentro da garrafa. Não havia movimento, nem palavras, e o campo de visão cavalgou o velho Hubble e engoliu os 14 bilhões de anos-luz.

Marianinha Galiena sorria e olhava para mim e Eva chamou Adão e mostrou-lhe John Huston construindo a Arca de Noé em Hollywood. Jean Rochefort pediu um sanduíche e um maço de cigarros e Patrice Leconte despiu Lúcia e encaixou-se nas pernas dela, e Anna Galiena fez a barba e o cabelo e deitou com Antoine, adeus, Rochefort, agora, eu vou andar a minha vida e viver sem sutiã.

Marianinha Galiena sorria e olhava para mim e Protágoras ensinou a bilheteira a contar e a medir buracos negros, e os 14 bilhões de anos-luz engoliram as entradas e cagaram nas saídas. Mas Aristóteles não acreditou na medição e apagou a lanterna de Diógenes e deletou um silogeu e formatou um silogismo, e Deus pegou a régua e o compasso e costurou os meus sapatos.

Marianinha Galiena sorria e olhava para mim, mas não foi o velho Hubble que esquadrinhou o meu soluço, nem foi Protágoras que abençoou o meu espirro. Foi a lógica. Se um silogeu não é um Big-Bang, um silogismo também não é um Big-Crunch. Nem pode ser um telefone celular. Dicere dicendo discunt. DDD. D de dado, D de dedo, D de dido e bem-aventurados os que discam à distância e aprendem a falar, mesmo calados.

Marianinha Galiena continuava sorrindo e olhando para mim, e eu era Antoine e tinha cumprido a minha decisão. Que se fodesse Anna Rochefort e o marido, e a cabeleireira e o caralho, e a puta que os pariu. Parada na minha frente, Marianinha Galiena ainda sorria e olhava para mim.

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Ah, minha Nossa Senhora Aparecida, quem que disse que Seu Eduardo morreu nesse tal dezembro do ano que passou, hem? Gente, quê que é isso? Seu Eduardo não morreu, não. Como que podia morrer, se até teve aqui ontem e perguntou, Jaqueline você quer ir comigo prum tal de Colégio do Caraça? Seu Eduardo não morreu, não, gente. Vai ver, tá é perdido por aí e ninguém sabe.

23

Se estivesse lá fora, agora, também não teria nada para fazer. E, provavelmente, talvez quisesse até voltar. Mas, se estivesse lá fora, agora, pelo menos, estaria lá fora. Não estaria aqui, sentado numa cadeira que não é minha e debruçado numa mesa que também não é minha, e escutando um relógio que também não é meu e bate sempre as mesmas horas. E, o que é pior que tudo isto, cercado de olhos que não param de me olhar.

Se estivesse lá fora, agora, pelo menos, já teria saído daqui e poderia fazer o que quisesse. Poderia andar, poderia correr, poderia meter as mãos nos bolsos, poderia assobiar ou poderia até encostar-me nas paredes. Ou, então, não fazer nada. Aqui dentro eu sei que também posso fazer a mesma coisa. Posso fazer o que quiser ou, então, também posso não fazer nada. Mas é diferente. Estando aqui não estou lá fora e, enquanto estou aqui, todos me olham. Fixamente, sem sequer pestanejar. Como se só eu fosse diferente.

Mas eu não sou diferente. A única diferença é que eu queria estar lá fora, agora, e eles não. Se eles também quisessem já teriam saído há muito tempo. Ou, então, já não olhariam para mim.

Não gosto que me olhem e, por isso, vou embora. Belizário, esta mesa é de ferro e você sabe que é de ferro. Se eu disser que é de madeira, você aceita? Depende só de eu ter um motivo, meu irmão. Se eu tiver um bom motivo, esta mesa será de madeira, por que não? Eduardo, vai por mim, enquanto você não arrumar um bom motivo, meu irmão, você será sempre um infeliz.

Vou embora. Sei que nenhum deles me seguirá e, lá fora, se escutar algum ruído, será somente um ruído. A gente tem sempre que escutar algum ruído. Ou o ruído dos nossos passos, estalando nas calçadas, ou o ruído do silêncio, estalando nas esquinas. Ou a merda dos pensamentos, estalando na cabeça.

Vou sair. Agora. Quando voltar, se voltar, tenho certeza, eles já se esqueceram de mim e só olharão para eles. Sei que todos pensarão que vou levar uma mulher. Mas eu não vou levar ninguém. Se sair daqui acompanhado, terei que ficar acompanhado, e eu não quero ficar acompanhado. Quero fazer o que quiser.

24

Belizário largou a faculdade e vive agora com a Jaqueline dos Melões na Rua Guaicurus. Moram num cubículo sem janelas e sem cozinha, e o banheiro fica dois andares abaixo, no corredor da senhoria. Jaqueline dos Melões já não faz mais ponto no Vaca Atolada e Belizário aprendeu a fumar. E diz que é feliz.

- Tá vendo? Tá vendo só? Antigamente, eu não sabia nem engasgar.

Puxa uma tragada profunda e sopra o fumo com força e sorri, e olha Jaqueline, sentada junto dele. Jaqueline dos Melões sorri também e Belizário puxa outra tragada, satisfeito. Deve ser feliz e eu o invejo. A felicidade é sempre relativa ao grau de intensidade das nossas convicções, e, por isso, eu o invejo.

25

Às vezes, eu me comparo a um deserto imenso que não tem a menor razão para existir. Ninguém tira proveito dele e nem ele sabe para que existe. Mas não adianta comparar. Nem a merda de um deserto eu posso ser.

Se fosse, pelo menos, não precisaria fazer nada. E, muito menos, justificar-me. Colecionando ideais ou coisas velhas, ou assassinando pessoas ou cometendo suicídio. Ou deitando nos divãs dos analistas, ou fazendo cópias perfeitas da Catedral de Colônia com palitos de fósforos já queimados.

Existir não é só estar presente. É necessário, também, que a presença se justifique. Presentes, só presentes, estão as coisas. Mas elas não precisam justificar-se. A sua própria eternidade as justifica. Além de comporem o espaço ainda permanecem no tempo. E eu não. Por isso, eu sou o que sou. O carregador fodido dos mosquitos que pousam no meu ombro e viajam de graça o tempo que quiserem.

Apesar de me dizerem que sou a mais perfeita criação da Natureza, eu sou apenas um carregador de mosquitos e um prisioneiro do volume. Eu só existo em função do que me cerca. Se o chão que sustem o peso do meu corpo não existisse eu também não existiria. Se não fosse, somente, um prisioneiro do volume eu viveria no tempo. E seria eterno. Se não nascesse, vivesse e morresse em função das coisas, seriam elas que precisariam de mim, não eu delas.

Mas só as coisas ficarão. Eu sou o que vive e o que pensa, mas sou só o que passa. O que morre. E não há fuga. Mesmo dentro do foguete que xereta os sovacos do alfa-ômega tudo à minha volta permanece. Só eu morrerei, resfriado ou de AIDS, ou a própria viagem me matará.

26

Sabe, Maurício? Eu sou um sujeito invejoso. Nunca te disse, mas sou um sujeito invejoso. Invejo Belizário tanto quanto invejo você ou invejo você tanto quanto invejo Belizário. Apesar da merda ser a mesma, apesar de ser sempre a mesma merda, eu invejo vocês. Sabe por quê? Porque eu queria ser como vós. Ter fé. Crer. Acreditar fosse no que fosse. Até no que, às vezes, escrevi no teu Plano Inclinado, meu irmão.

Na Natureza, a perfeição é sempre inversamente proporcional ao Absoluto. Quanto mais eu penso, quanto mais eu raciocino, quanto mais eu pergunto, quanto mais eu questiono, quanto mais eu duvido, mais a minha consciência me torna relativo e mais o Absoluto se distancia. Tudo que fiz, não fiz. Apenas aconteceu e só me restou uma certeza. Um dia morrerei. E o confronto, contínuo e constante, em todos os instantes que vivo, entre a minha obrigação de viver e a certeza da minha morte, é que me dá, com absoluta exatidão, a medida do meu estar-no-mundo. Do absurdo da minha existência. Porque, viva eu como viver, faça eu o que fizer, o meu fim já está determinado. Eu morrerei. E, o que é pior, sem saber quando, sem saber como, sem saber por quê e sem saber para quê. Tudo que é, existe. Mas nem tudo que existe, é. Nenhum ser, além de mim, sabe que nasceu para morrer. E é, justamente, esta certeza que me traça os limites do ser e do existir. Eu sou relativo e existo como absoluto. Mas de nada adianta. Um homem nunca é nada ele sozinho. Nem livre, nem verdadeiro. A liberdade e a verdade quem determina são os outros. Por isso, a única opção que me resta é o suicídio. Mas nem para me suicidar eu sou livre. O medo de morrer me mantém prisioneiro.

Meu irmão, meu irmão, não sei nem por que é que me lembrei agora do teu jornal. Mas é como se ele estivesse aqui na minha frente e eu estivesse lendo o que você escreveu, já lá vão mais de trinta anos, em resposta ao que eu tinha escrito no número anterior.

Eduardo, quando nós nascemos troavam os canhões e as bombas arrasavam as cidades, e enchiam as ruas e as praças de cadáveres. E, na idade em que devíamos acreditar em Papai Noel, a bomba que acabaria com as guerras explodiu e matou todas as nossas ilusões. Por isso, agora, não podemos mais discutir. Não há mais tempo. Não há mais tempo, nem há mais o que se possa discutir. Agora, Eduardo, nós temos é que lutar. E temos que lutar porque, no dia em que os nossos filhos olharem para nós e descobrirem que nós nos omitimos, eles terão vergonha de nós e escreverão nos nossos túmulos:

AQUI JAZ UM HOMEM QUE,

POR MEDO,  

ENGANOU SEUS FILHOS!

Você sabe que eu nunca tive medo, nem nunca me omiti, Maurício. Apenas, nunca acreditei. Nunca consegui. Por isso, se carregasse a bandeira que você sempre carregou, eu não seria honesto. E, aí, sim. Aí, apesar da merda ser a mesma, apesar de ser sempre a mesma merda, nem em mim eu poderia acreditar. Por isso, eu te invejo, meu irmão.

Mas a minha impossibilidade de acreditar e a minha inveja são, justamente, a minha maior contradição. Eu sou aquele que pensa, Maurício, mas está sempre duvidando do que pensa. Muito embora nunca deixe de pensar.

27

Numa hora como esta, diante deste conhaque e sem ninguém que me olhasse, talvez eu fosse até capaz de me suicidar. Está quase amanhecendo e, numa hora assim, se ninguém me olhasse, tenho certeza, até a mim a minha própria morte passaria despercebida. Mas eles não param de me olhar e eu também não posso deixar de os ver. Nem de esquecer que me olham.

Se ninguém me olhasse, seria fácil. Bastaria beber o resto do conhaque e fechar os olhos, e deixar de pensar. Nem precisaria tapar os ouvidos. A escuridão das minhas pálpebras seria a dimensão do meu silêncio. Mas eles não param de me olhar. E, embora não falem, nem se mexam, não me esquecem. Basta olhar os seus olhos para saber que me vigiam. E eu não quero que me vigiem. Para me forçar a pensar já basta a minha própria vigilância. Por isso, não consigo beber o resto do conhaque, nem fechar os olhos.

A merda é que também não consigo parar de pensar.

28

Maurício casou. Já me tinha dito que tinha que casar. E eu também acho que ele tinha que casar. Pelo menos, o Plano Inclinado já não é mais problema para ninguém. Um mês antes do casamento deixou de circular.

- Você sabe, os tempos mudaram, Eduardo. Hoje em dia...

- Claro que eu sei, Maurício. Os tempos sempre mudam e hoje em dia são muito diferentes.

Maurício sorri e me abraça, como se a minha concordância o eximisse da culpa. Mas eu não sorrio e o sorriso dele me deixa triste. Eu sei que nem ele nem Marta viverão como vivem Belizário e Jaqueline dos Melões. Apesar de todas as mudanças, jamais enterrarão a memória do passado. Apenas farão de conta. Na verdade, como eu também faço, infelizmente.

29

Chamei um garçom e pedi uma mulher como quem pede um conhaque num fim de noite. Sem olhar a garrafa e a marca. Tinha as mãos espalmadas na mesa e o ferro estava mais quente do que as polpas dos meus dedos. E os meus olhos também já não viam. Só olhavam. Estava exausto, cansado de escutar aquele relógio velho, sempre pendurado na parede e batendo sempre as mesmas horas. E eu sentindo o tempo passar por mim como se fosse uma rajada de vento numa manhã fria de inverno. Zunindo nos meus ouvidos.

Marta tinha razão. Eu nunca soube agir no tempo certo. Ou me adiantava e nada conseguia, ou me atrasava e também nada conseguia. Marta estava certa. O meu tempo nunca acertou com o tempo. De nada, nem de ninguém. Marianinha se fora e Lúcia também já tinha ido. Marianinha, Lúcia, Jaqueline, Jussara, Ana Carolina, Célia, Cida, Marjô, e todas as outras, que nunca conheci mas sempre quis conhecer.

Por quê que você é assim, hem, Eduardo? A gente bem que podia se entender e ser feliz. Se você se desse mais, se você olhasse mais pra mim e me deixasse olhar pra você, você sabe muito bem que a gente ainda podia ser feliz. Eu sei que você não gosta de ser como você é. Só que você nunca fala, nunca diz nada, e, por causa disso, nunca aprende. É verdade, Eduardo. Você nunca aprende. Ou você chega sempre antes e espanta todo mundo, ou parece que você nunca quer chegar e todos ficam indiferentes. Por quê que você é assim, hem, Eduardo? Será que você nunca pensou que ainda pode ser feliz ou será que você tem medo que os outros te conheçam?

 

Cunha de Leiradella nasceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.

Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

Cunha de Leiradella
Casa das Leiras . São Paio de Brunhais
4830-046 - Póvoa de Lanhoso
Portugal
Telefone: 253.943.773

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