CUNHA DE LEIRADELLA
Os espelhos de Lacan . Romance

INDEX

Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa
OS ESPELHOS DE LACAN
Considerações sobre graus dissociados
O objeto e os espelhos
O objeto e as imagens (a)
O objeto e as imagens (b)
O objeto e as imagens (c)
O objeto e as imagens (d)
Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa (cont. e FIM)

O OBJETO E AS IMAGENS

1

Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Gostaria de começar a minha história com esta frase. Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. É uma frase concisa. E, além de concisa, totalmente verdadeira. Todos os anos têm dezembros e, na vida de qualquer um, há sempre um ano que passou. Mas eu não posso começar a minha história dizendo que Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Eduardo da Cunha Júnior sou eu e não haverá história se não houver quem a conte. Mesmo que a verdade seja mentira e o narrador seja inventado.

2

Eu não suporto mentiras, invenções, essas coisas, compreende? Para mim, inventar, mentir, é pior do que matar. Muito pior. E é por eu pensar assim que lhe posso dizer com toda a sinceridade, se Eduardo da Cunha Júnior não morreu, devia ter morrido. Não é por nada, não, mas o que ele me fez não se faz a ninguém. Não faz mesmo. Me tratou como se eu fosse uma qualquer, uma mulherzinha por aí à toa, compreende? Mas é como eu sempre digo, o que a gente tem de sofrer, a gente sofre.

Lhe digo, sinceramente, foi por acaso que conheci Eduardo. Eu não acredito em acasos, mas, às vezes, eles acontecem e a gente tem que acreditar. E foi o que aconteceu com Eduardo. Conheci-o já faz anos, mas me lembro como se tivesse sido ontem. Quando a gente sofre a gente não esquece, por mais que tente a gente não esquece, infelizmente. Foi numa sexta-feira, eu tinha ido à Livraria Van Damme, a Livraria Van Damme, naquela época, ainda era na Rua da Bahia, ali no Edifício Maleta, e eu tinha ido para comprar A 3ª Visão, do Lobsang Rampa. Eu não gosto de literatura transcendental, ou de auto-ajuda, como muitos gostam de chamar, nem acredito nas ajudas dos outros, cada um se ajuda a si mesmo e o bom Deus ajuda a todos nós, mas Lobsang Rampa é diferente. Lobsang Rampa diz as coisas de um jeito que todo mundo entende. Mas não é só entender, não, é entender e ver que o que ele diz tem base, tem fundamento, compreende?

E olhe que eu também digo isto com base, com fundamento. Sou professora titular da Faculdade de Letras da UFMG, portanto, uma pessoa com cultura e entendimento suficientes para saber o que diz, compreende?

Desde menina que sempre fui assim, uma pessoa capaz de perceber, e muito bem, a diferença das coisas. Sempre gostei de Física, sempre tive uma admiração muito grande por Madame Curie, e sempre quis estudar Física. Cada um tem os seus lemas e o meu sempre foi este, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo. Como mamãe era professora, eu era filha única e papai faleceu logo que eu nasci, o certo não era eu ser física, era ser professora, compreende?

E tudo deu certo, graças ao bom Deus. Logo que mamãe faleceu, fiz concurso, passei, depois, já como professora auxiliar, fiz mestrado, depois doutorei-me, e, agora, mesmo que me pedissem, não trocaria o que faço por nada deste mundo. Graças ao bom Deus sou solteira e acho que é muito mais importante preparar as novas gerações para enfrentar o futuro, do que desvendar os segredos da matéria, sabe por quê? Porque a matéria é sempre a mesma e o futuro é uma incógnita, compreende?

Por isso, eu sou o que sou e me sinto realizada em ser assim. O bom Deus sempre me protegeu, nunca fiquei doente, nunca precisei de ninguém e nunca tive problemas. Mesmo com os homens, nunca tive problemas. Os homens sempre me respeitaram e, se nunca me casei, foi porque não quis. Até com Eduardo, não casei porque não quis. Logo que o conheci disse-lhe, abertamente, quais eram as minhas condições e ele também me disse as dele e pronto. Nesse ponto, honra seja, nunca me mentiu, compreende?

Eu não tenho nada contra duas pessoas se juntarem. Se se gostam e querem viver juntas, acho até que, às vezes, é melhor juntar do que casar. Mas, para mim, eu posso até estar ultrapassada, não nego, é apenas uma questão minha, a família se constitui no casamento e o homem que quiser viver comigo tem de ser meu marido, compreende? Eu digo isto, não por uma questão de moral ou pelo que os outros possam dizer, uma mulher que sempre lutou como eu lutei e chegou onde eu cheguei, pode, perfeitamente, levar a vida que quiser, mas é uma questão de princípios, compreende? Eu sempre tive os meus princípios, e, como já lhe disse, se cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo, eu acho que o casamento ainda é a coisa mais certa, compreende?

Uma mulher que vai correr o risco de ser mãe, tem de pensar, principalmente, no futuro e na segurança dos filhos. Hoje em dia, ter um filho sem pai é um problema muito sério. Séríssimo. Se a gente pensar bem, que segurança pode dar aos filhos uma mulher que não pensa na sua própria segurança, não é mesmo? Sou solteira e não me arrependo de ser solteira. É por ser solteira e por sempre pensar assim que os homens nunca me causaram problemas. Logo de início, não importa em que termos o relacionamento começa, eu faço questão de deixar a situação em termos muito, mas muito bem esclarecidos. Se me quer, casa comigo, eu te quero e caso com você, compreende a minha posição?

Eu sempre fui muito romântica e foi, talvez, por causa disso que nunca me casei. Quando era menina, as minhas bonecas sempre tiveram os seus príncipes encantados e eu achava muito certo. Ora, se as minhas bonecas sempre tiveram os seus príncipes encantados, porque é que eu não haveria de ter, não é mesmo? Por isso, é que nunca me deixei envolver, envolver e, muito menos, enganar, compreende? Sempre fui assim e sempre me dei bem. Com Eduardo, então, foi o que me salvou. Eu sou uma pessoa muito positiva e falta de firmeza, protelar resoluções não é comigo. Mas, isso, Eduardo nunca entendeu. Nunca entendeu ou nunca quis entender, compreende? Quando nos conhecemos e eu lhe disse as minhas condições, ele não colocou nenhuma objeção. Não colocou nenhuma objeção, mas também nunca decidiu, e foi, justamente, isso, essa falta de firmeza, essa falta de objetividade, que me levou a tomar a decisão que tomei. Comigo não existem meios termos, diz que faz, então faça, e pronto, compreende?

Já faz anos, mas, sempre que penso no que aconteceu e, principalmente, na forma como aconteceu, tenho certeza que, se eu tivesse insistido, Eduardo não teria feito o que fez, não teria mesmo. Se eu tivesse teimado, realmente, Eduardo teria resolvido, tenho certeza. Mas, ao mesmo tempo que tenho esta certeza, também tenho outra certeza, o nosso casamento não poderia dar certo, sabe? Tudo na vida acontece conforme a vontade do bom Deus e não foi vontade do bom Deus que o nosso casamento acontecesse, compreende?

Agora, quanto à morte de Eduardo, não posso afirmar, há muito que deixei de pensar nele, mas parece que ele morreu mesmo. Quem me falou foi a Ana Carolina, agora ela leciona em São Paulo, mas, em tempos, fomos amigas, pelo menos ela sempre se disse minha amiga, e foi ela que me falou. Não é por nada, não, mas eu acreditei, sabe? Ana Carolina sempre foi apaixonada por Eduardo e foi, inclusive, amante dele, foi ela própria que me contou, isto muito depois de eu o ter deixado, e tenho certeza que ela, num caso como este, não iria mentir. Com a morte não se brinca, compreende?

Eu não sei o que é que os outros lhe vão dizer, mas eu lhe digo, da minha parte, sinceramente, e estou sendo sincera mesmo, mesmo depois de tudo que aconteceu, eu não tenho nada contra Eduardo. Contra, mesmo, só tenho o fato de ele ter aceitado as minhas condições, me ter dito as dele, e, apesar disso, nunca ter resolvido, compreende? De resto, não tenho nada contra, nem sequer o fato de não ter comprado A 3ª Visão do Lobsang Rampa, naquela sexta-feira. Mas, para falar a verdade, a culpa foi até minha. Em vez de pegar o livro e pagar, e, depois, conversar, não, conversamos, conversamos, e, no meio da conversa, ele tocou num assunto que me é muito chegado até hoje, que é cinema, e pronto, esqueci o livro e fomos para o Palladium. Desde menina eu adoro cinema e se Eduardo ficou conhecendo também alguma coisa de cinema, a mim o deve. Ah, deve. Fui eu que mudei o gosto dele. Tanto falei, tanto briguei, que consegui que ele trocasse o Vaca Atolada, um bar asqueroso que havia na Rua da Bahia, e começasse indo ao cinema. Não é por nada, não, mas se em outra coisa Eduardo não mudou, pelo menos dessa troca do Vaca Atolada pelos cinemas eu posso me gabar. Ah, posso.

As pessoas não têm o menor bom senso, o menor senso de justiça. Depois que as coisas acontecem cada um diz o que quer, mas ninguém diz a verdade. Aquela Ana Carolina que o diga, sempre, ah, Jussara deixa pra lá, casamento é bobagem, o que vale, mesmo, é gostar, mas sempre de olho grande. Ela pensa que eu já esqueci, mas eu não esqueci, não. Foi só eu largar Eduardo e ela, vupt, se meteu na cama dele. Por isso é que, às vezes, eu gostaria de esquecer. Quando a gente esquece, a gente deixa de sofrer, compreende?

Mas, o que a gente quer é uma coisa e o que o bom Deus designa é outra, na memória ninguém manda. Um exemplo, é o que aconteceu naquela sexta-feira, depois que saímos da Livraria Van Damme. Apesar dos anos que passaram, lembro-me como se tivesse sido ontem. No Palladium, estava passando, em reprise, um filme da Doris Day, Ardida Como Pimenta. Eu adoro Doris Day, e quando ela canta Secret Love, então, eu sou capaz de ficar horas e horas só escutando. Secret Love é uma daquelas músicas que a gente nunca esquece, se não me engano, ganhou até um Oscar, compreende? E, naquele dia, não sei nem por quê, quando a Doris Day começou a cantar Secret Love me deixou dum jeito, que só saímos do Palladium no fim da última sessão.

Como no dia seguinte era sábado e tudo se juntou, acabei dormindo na casa de Eduardo. Foi ótimo, Eduardo foi gentilíssimo e tudo mais, mas eu me senti muito inibida. Desde menina que eu sou muito inibida, não pelo sexo em si, coisa natural entre dois adultos que se gostam e se compreendem, mas o fato de Eduardo insistir para que eu ficasse de vez na casa dele, me inibiu tanto, mas me inibiu tanto mesmo, que só consegui sossegar quando cheguei na minha casa, compreende? Superei a inibição, evidentemente, e voltei mais algumas vezes. Mas a insistência daquela primeira noite sempre me deixou constrangida. Afinal, nós nos tínhamos conhecido, praticamente, naquela hora.

Eu não sei, não tenho certeza, e, quando eu não tenho certeza não gosto de afirmar, mas ninguém me tira da cabeça que foi, exatamente, aquela ânsia de Eduardo que me obrigou a deixá-lo. E sabe por que é que eu penso isto? Porque, a própria Ana Carolina, que sempre me dizia, ah, Jussara, casamento é bobagem, deixa disso, menina, o importante é a gente gostar, também não conseguiu agüentar por muito tempo. Que eu saiba, o caso deles, se durou semanas, durou muito.

Quem conhecer bem Eduardo, se é que existe alguém que o conheça melhor do que eu, sabe que é verdade o que eu vou dizer, Eduardo sempre foi muito egoísta, e, além de egoísta, muito píssico. Tinha hora, então, que parecia até paranóico, eram horas e horas calado, só lendo ou escrevendo, era aquele desespero para não sair de casa, nunca que eu consegui levá-lo às Missas Dançantes do Minas Tênis, e olha que as Missas Dançantes do Minas Tênis eram a coisa mais chique que havia em Belo Horizonte, naquela época, e quando saía de casa, se saía, era só para ir ao cinema ou ao tal do Vaca Atolada. No mais era casa, casa e mais nada, uma bebedeira monstruosa e aquela doideira de não atender nem telefone no dia de Natal, eu vivi isso só um Natal, mas fiquei marcada para o resto da minha vida, compreende?

Imagina alguém ligar e o telefone chamar, chamar, e ninguém atender, e você saber que a pessoa está ali do lado e não atende porque não quer, é uma coisa que te marca, e muito, compreende? Mas, o pior ainda não era só isso, Eduardo nunca desdizia o que falava, era um inferno, sempre repetindo cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo, e também nunca permitiu, mas de jeito nenhum, que eu me aproximasse sequer de um barraco velho que ele tinha no fundo do quintal, como se aquela porcaria fosse um tesouro e ele tivesse medo que eu roubasse sei lá o quê.

Não é por nada, não, mas tem hora que você fala sem pensar e, depois, pensa melhor e se desdiz, eu mesma, muitas vezes, já fiz isso, é até uma questão de bom senso. Mas, Eduardo, não. Quando falava, e era raríssimo ele falar, sempre lendo ou escrevendo, nem à mão de Deus Padre mudava de opinião. E o fato de eu querer ver o que tinha dentro daquele barraco também não era nada demais, era só curiosidade. Afinal, para mim, depois de tanta intimidade, era como se ele já fosse meu marido e eu já fosse mulher dele, compreende? Mas quem disse que era isso? Só vendo mesmo o que Eduardo me fez quando eu quis arrombar o cadeado da porcaria do barraco. Quase me bateu.

Pode até ser que eu esteja errada, pode ser até que eu esteja ultrapassada, como é moda, hoje em dia dizer-se por aí, mas na minha concepção, vida a dois é vida a dois, tudo somado e tudo dividido, compreende? Só que, para Eduardo, não. O fato de estarmos juntos não tinha o menor significado. Para ele, mesmo sabendo como eu me sentia, eu não fazia parte de nada, nem do presente ou do passado, e, muito menos, do futuro. Na casa dele eu era só visita. E, o pior é que não era só na casa dele, não, era na minha também. Na minha casa, Eduardo nem visita era, nunca lá quis entrar.

Quantas e quantas vezes eu quis que ele fosse lá comigo e ele nunca foi? Dezenas e dezenas. E olha que, na minha casa, eu nunca deixei entrar qualquer um, não. Na minha casa só entrava quem eu queria, e, se fazia muita questão, então é que não entrava mesmo, compreende? Mas Eduardo era píssico, totalmente píssico e não mudava nunca.

Agora, quanto à morte dele, não posso afirmar, há muito que deixei de pensar nele, mas talvez não tenha morrido, não. Sabe por quê? Por causa daquela mulher, a Ana Carolina. Como não conseguiu o que queria, e o que ela queria era ficar com Eduardo, não me admiraria nada se ela tivesse inventado a morte dele. Aquela mulher é uma verdadeira víbora, apesar de ter estudado comigo e de sempre se dizer minha amiga, sempre quis ser a primeira em tudo e nunca suportou o fato de eu ter conhecido Eduardo antes dela, compreende?

Por outro lado, e agora me lembrou uma coisa muito importante, para quem conhece aquela mulher como eu conheço, preste atenção, que o que eu vou dizer tem muito a ver, quem sabe Eduardo morreu mesmo? E sabe por que é que eu digo isto? Porque o que ele deve ter sofrido nas mãos dela deve ter sido um horror, uma coisa desconforme e o sofrimento não perdoa. Ah, não perdoa, se não mata na hora, mata aos poucos. Eu é que sou uma mulher muito forte e de muito sentimento, senão também já teria morrido há muito tempo, compreende?

3

Marianinha nunca foi minha namorada. Gostava de me beijar e de meter as mãos dentro das minhas calças, mas nunca foi minha namorada. Naquele tempo, em Belo Horizonte, garotos de treze anos não namoravam. Aprendiam catecismo na escola e iam à missa aos domingos e dias santos. E, nas datas cívicas, cantavam hinos patrióticos e agitavam bandeirinhas na Avenida Afonso Pena.

Meu pai sempre me quis contador, por causa dele, ou militar, por causa do meu avô, e minha mãe sempre apoiou. Mas eu nunca quis ser nem uma coisa nem outra. Marianinha gostava de me beijar e de meter as mãos dentro das minhas calças, e eu queria mais é que ela me beijasse e metesse as mãos dentro das minhas calças. Não fazer contas, como meu pai fazia, ou vestir fardas, como meu avô sempre vestiu.

Meu padrinho era o único que não me queria contador, nem militar. Era irmão da minha mãe e morava na nossa casa, mas a minha madrinha não morava conosco. Morava no Rio de Janeiro. Dizia minha mãe que ela não prestava e que tinha sido até milagre não ter acabado com a vida do meu tio.

Não a conheci, mas pensava muito nela. Meu padrinho era fotógrafo e tinha mil fotografias dela pregadas nas paredes do quarto. Mas minha mãe não gostava que eu as visse. Eu sempre perguntei por quê e ela nunca me respondeu.

Minha mãe nem parecia minha mãe. Nunca respondia ao que eu perguntava e concordava sempre com meu pai. Eu odiava aquele jeito da minha mãe. E, sempre que podia, trancava-me no quarto do meu padrinho. Aquelas fotografias fascinavam-me. Era como se eu tivesse mil madrinhas. E quanto mais olhava para elas mais elas me fascinavam e mais eu queria ser igual ao meu padrinho. Tinha certeza que, quando fosse como ele, tudo seria diferente. Tudo o que eu olhasse seria visto do jeito que eu quisesse e a cor de cada cor dependeria só de mim.

Eu gostava muito do meu padrinho, daquele jeito que ele tinha. Garoto, dizia ele, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo. Se você quer ser fotógrafo, você deve ser fotógrafo. Porque, se você não for, você vai se arrepender a vida inteira, entendeu? Eu gostava muito dele. Foi ele que me deu a minha primeira máquina fotográfica, quando fiz quatorze anos, e me ensinou a revelar os filmes num barraco que tinha construído para mim no fundo do quintal. Nunca te esqueças, garoto, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo. Se eu não tivesse ido pela cabeça dos outros, ainda hoje podia ter tua madrinha e ela a mim.

Nunca chegou a ter. Suicidou-se no Natal, meses depois de me ter dado a máquina fotográfica. Foi melhor assim, disse minha mãe, depois de limpar o quarto e arrancar as fotografias das paredes. Ao menos, não sofre mais, nem passa mais vergonha. Não entendi o que minha mãe quis dizer, mas também não perguntei. Ela não me diria a verdade.

Eu nunca tive uma verdade. Marianinha nunca foi minha namorada e todas as fotografias que tirei foram só fotografias. Nunca descobri como devia olhar o mundo para poder vê-lo de mil maneiras diferentes. Como via a minha madrinha nas paredes do quarto do meu padrinho.

E até hoje também nada descobri. A não ser que a memória, a cada dia, pesa mais, e o horizonte, cada vez, fica mais longe.

4

Jaqueline? Ah, Jaque, qual é? Dormindo, menina? Sou eu, Célia. Problema nenhum, não, só liguei pra... Como é que foi? Foi bem. Depois que Belizário chegou e você saiu, lembra que você saiu logo? Pois é, menina, aí é que o cara resolveu. Mas resolveu assim, não deu nem prá saída, entendeu? Ah, pagou. Claro que pagou. Também, se não pagasse, já viu, cortava até a rola dele. Ri, não, que você sabe como é que eu sou. Mas eu tou te ligando não é por isso, não. Lembra daquele coroa bundão, ele andou comigo, andou com Cida, andou com Marjô, depois andou com você, antes de você... Jaqueline, pelo amor de Deus, lembra, sim. Aquele que só falava, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo, não lembra, não? Ô, Jaque... Isso, Eduardo. Não, eu não vi ele, não, mas é por isso que tou te telefonando. Diz que morreu. É, diz que... Ô, Jaque, foi Cida que falou, diz que morreu em dezembro. Diz que Marjô falou pra ela. Ah, não sei, vai ver, alguém contou, sei lá. É, isso é verdade, Marjô adora fofocar, mas do jeito que Cida falou... Que dia? Isso eu não sei, não, só sei que foi em dezembro. Jaque... Jaque, pelo amor de Deus, quê que foi, menina, eu hem? Tá. Tá. Tá bom. Fica calma e depois me liga. Tchau.

5

Esta garrafa, que está na minha frente e que o garçom diz que está vazia, não está vazia. Hoje, não está vazia. Está cheia. Faz uma semana que venho ao Belas Artes e, todos os dias, o garçom diz a mesma coisa, doutor, a garrafa está vazia. Nunca me importei e sempre pedi outra. Mas, hoje, a garrafa não está vazia. Está cheia. Ontem, Lúcia terminou o nosso caso e hoje... Mas esse não é o problema. O problema é que, hoje, a garrafa está cheia. O fato de terem colocado um aparelho de televisão no fundo do salão e todo mundo bater palmas e gritar a cada voto favorável ao impeachment do presidente Fernando Collor, não aumenta, nem diminui, a minha certeza ou a certeza do garçom. Com ou sem impeachment, com ou sem presidente da República, eu não mudarei de opinião, a garrafa está cheia. Mas o garçom também não muda, não, doutor, a garrafa está vazia. Puxo uma tragada e olho o garçom, e ele estende o braço, pronto para pegar a garrafa se eu fizer, hum, hum, ou acenar com a cabeça. Mas eu não faço, hum, hum, nem aceno com a cabeça. Puxo outra tragada e respiro fundo, e digo, a garrafa está cheia. O garçom olha-me e arregala os olhos, doutor, a garrafa está vazia. Debruço-me na mesa e sorrio, como sorri ontem, quando Lúcia me disse, decide, Eduardo, ou você fica aqui de uma vez, ou me leva com você. Só que sorrir é fácil, o difícil é fazer com que os outros entendam os sorrisos. O garçom encolhe o braço e olha-me, e eu aponto um carro estacionado junto da calçada. Se esta garrafa está vazia, por que é que os pneus daquele carro estão cheios? Não é o mesmo ar que enche os pneus e a garrafa? O garçom olha o carro, espantado, como se só naquele instante tivesse percebido. Lúcia também me olhou e também pareceu espantar-se, como se também só naquele instante tivesse percebido. O garçom volta-se e olha-me, e os olhos estão ainda mais arregalados. Ele só esperava que eu fizesse, hum, hum, ou acenasse com a cabeça. Lúcia também só esperava que eu fizesse, hum, hum, ou acenasse com a cabeça. Mas eu não podia fazer, hum, hum, ou acenar com a cabeça. Fazer, hum, hum, ou acenar com a cabeça é fácil, o difícil é acreditar que os outros dizem a verdade. O garçom continua olhando para mim e os olhos piscam, como se lhe fosse impossível entender. Lúcia também piscou, como se também lhe fosse impossível entender. Bebo o último gole e coloco o copo ao lado da garrafa. Veja. Se é o mesmo ar que enche esta garrafa e enche os pneus daquele carro, por que é que aqueles pneus estão cheios e esta garrafa está vazia? Ou ambos estão cheios ou ambos estão vazios. O garçom pára de piscar e fixa os olhos nos meus. Lúcia também parou de piscar e também fixou os olhos nos meus, esperando que eu dissesse alguma coisa. Você não concorda? O garçom não responde. Recosto-me na cadeira e olho-o. Hem? O garçom desvia os olhos e continua sem responder. Puxo uma tragada profunda e sorrio, e esmago o cigarro no cinzeiro. Não concorda, não? Se os pneus daquele carro estão cheios, por que é que você sempre diz que esta garrafa está vazia? Onde é que está o seu bom senso? Lúcia também tinha perguntado onde é que estava o meu bom senso, quando não lhe respondi. Acendo outro cigarro e coloco-o no cinzeiro. Você sabe o que é que nos faz distinguir o que é verdadeiro do que é falso? O garçom não responde. Estende o braço, como se fosse pegar a garrafa, e, de repente, encolhe-o, num gesto brusco. É o bom senso. O garçom olha-me e respira fundo, e só então parece perceber-me. Lúcia também me tinha olhado assim, como se também só no último instante me tivesse percebido. Quando a gente diz o que todos dizem, a gente não usa o bom senso, usa o senso comum. O garçom olha-me e abana a cabeça, como se não acreditasse. Lúcia também me olhou e também abanou a cabeça, como se também não acreditasse, quando me levantei e andei até à porta. Pego a garrafa e levanto-a. Veja. Você sabe o que é o método categórico-dedutivo? É a gente empregar o raciocínio, partindo de princípios verdadeiros. Se o mesmo ar enche os pneus daquele carro e enche também esta garrafa, ambos têm que estar cheios, entendeu? Se o senso comum diz que os pneus daquele carro estão cheios e que esta garrafa está vazia e o meu bom senso diz que ambos estão cheios, o que é que aconteceu? O garçom não responde e eu olho-o e sorrio. Aconteceu que o meu bom senso virou bosta. Mas o meu bom senso não vira bosta. Se virasse, seria o mesmo que dizer que a Lagoa Santa é santa porque é lagoa e a Lagoa da Pampulha é Pampulha porque é aeroporto, ou o contrário, pois ambas contêm a mesma água, entendeu? Coloco a garrafa ao lado do copo e olho o garçom. Mas ele não diz nada. Apenas continua olhando para mim, espantado, como se não pudesse acreditar. Lúcia também me olhou assim, como se também não pudesse acreditar, quando saí do apartamento, sem dizer uma palavra. Pego o cigarro e puxo uma tragada. Mas você está certo. Pensar é fácil, o difícil é fazer com que os pensamentos traduzam a verdade. O garçom continua imóvel, só olhando para mim. Lúcia também ficou imóvel, só olhando para mim, quando desci as escadas e não parei, nem me voltei, no patamar. Recosto-me na cadeira e, de repente, o salão explode num tumulto. Todo mundo se levanta e se abraça e grita, Viva!, a cara pintada de verde e amarelo, comemorando o voto decisivo do impeachment. Olho o garçom e ele continua imóvel, ainda olhando para mim. Também indiferente à gritaria. Puxo uma tragada profunda e esmago o cigarro no cinzeiro, e aponto a garrafa com um gesto de cabeça, traz outra. Discutir senso é como discutir sexo dos anjos, sabia? Todo mundo fala nele, mas ninguém consegue praticá-lo. O garçom olha-me ainda durante alguns instantes e, de repente, esfrega as mãos e sorri, é isso aí, quem não se comunica, se trumbica. Pega a garrafa e afasta-se, rindo, e eu não sei o que dizer. Como também não soube quando Lúcia me disse, adeus, Eduardo, não me procura nunca mais, agora eu vou viver a minha vida. Se Lúcia não tivesse dito, adeus, Eduardo, não me procura nunca mais, agora eu vou viver a minha vida, pode ter certeza, Eduardo da Cunha Júnior não teria morrido em dezembro do ano que passou.

6

Não, Eduardo da Cunha Júnior não morreu, se tivesse morrido eu já sabia. Eu conheço Eduardo melhor do que ninguém, conheço-o há quarenta anos. Meu pai me disse, certa vez, Maurício, um homem com fé é muito mais perigoso do que um homem com fome. Um homem com fome só precisa de comida, um homem com fé é insaciável. Quem não está com ele, está sempre contra ele.

Eu nunca entendi por que é que meu pai me disse aquilo. Eduardo era meu amigo e visitava a nossa casa, mas, que eu soubesse, mal falava com meu pai e nunca foi fanático. Antes pelo contrário, gostava de sonhar. Mas eu também gostava e ainda gosto, e acho que todos gostam. Até Marta gosta, apesar de fazer questão de dizer que só acredita na matéria ou no que pode ser demonstrado.

Conheci Eduardo ainda na escola, mas mal nos falávamos. Eduardo nunca foi de se enturmar e também não gostava de falar. Só falava, e, aí, até brigava, se o forçavam a aceitar fosse o que fosse. Eu também não gostava de aceitar o que me impunham, mas tinha que aceitar. Meu pai era advogado e eu tinha que ser advogado.

Eduardo não. Eduardo era ele. Mesmo quando era chamado ao quadro-negro, questionava todas as afirmações dos professores. Por que é que dois vezes dois têm que ser quatro e oito vezes oito têm que ser sessenta e quatro? Menino, dois vezes dois são quatro e oito vezes oito são sessenta e quatro, porque assim foi dito e é assim que tem que ser. Mas, se foi dito, foi alguém que disse. Claro que foi alguém que disse. Tudo que a gente sabe foi alguém que disse. Mas, se foi alguém que disse, podia dizer de outra forma. Não podia dizer de outra forma, não, senhor. Podia, sim, senhora. Portugal não diz que Tiradentes foi um traidor e o Brasil não diz que é um herói? A verdade não é o que se diz, menino. Se a verdade não é o que se diz, então por que é que dois vezes dois têm que ser quatro e oito vezes oito têm que ser sessenta e quatro?

Os professores odiavam estas perguntas e Eduardo passava a maior parte das aulas de castigo. Mas nunca reclamou. Sentava no canto, voltado para a parede, e ficava lá o tempo todo, sem se virar e sem mexer. Se fosse comigo, eu não sei se agüentava, e, por isso, admirava Eduardo. E tantas vezes o procurei nos recreios, que consegui ficar amigo dele. E somos amigos até hoje, apesar de Marta odiar a nossa amizade.

Eu não sei qual é o verdadeiro motivo do ódio de Marta. Eduardo nunca me falou, mas, que eu saiba, nunca quis namorá-la. Marta é que, uma vez, me disse que ele a quis namorar. Mas eu não acredito. Que eu saiba, Eduardo nunca teve namoradas, teve casos. Mas casos todos têm, eu tive, Marta teve e até Belizário também teve, e ainda tem um feio com a Jaqueline dos Melões.

Conheço Eduardo desde menino, mas ainda hoje é difícil falar dele. Devia ser fácil, afinal, ele é meu amigo e eu sei que sou o melhor amigo dele. Mas é difícil. E não é por Marta não gostar dele. A minha relação com Marta é suficientemente racional para não me deixar misturar o que deve ser com o que tem ou pode ser. Principalmente, no que diz respeito a Eduardo. Mas, a verdade, é que é difícil falar dele. Nós somos muito diferentes.

Para ser sincero, eu sei por que é que tenho dificuldade de falar de Eduardo. De certa forma, é até humilhante para mim. Na verdade, eu sempre quis ser o que ele sempre foi, um homem que dizia sim ou não com a maior convicção. Eduardo não é contador pela mesma razão que eu não sou advogado, a diferença, é que eu só deixei de ser advogado depois da morte de meu pai e Eduardo, apesar da imposição do pai dele, nunca foi contador. Por isso, é que ele sempre escreveu noPlano Inclinado e vai continuar escrevendo. Marta não gosta. Diz que Eduardo não teria servido nem para repórter da Rádio Peão, nas greves e nas passeatas de 68, mas eu não ligo. Marta é assim mesmo. Também não gosta de Belizário e Belizário não discute com ninguém, nem escreve no Plano Inclinado.

Às vezes, é difícil conviver com Eduardo. Mas, valha a verdade, conviver com Marta também não é fácil. E eu não só convivo, como vivo com ela. Marta adora discutir. Há anos que me diz que não suporta viver em Belo Horizonte, que Belo Horizonte é um buraco perdido no cu do mundo, mas não sai daqui nem à força. Quando diversos dos nossos amigos foram presos no Rio de Janeiro e eu lhe propus irmos até lá, ela não quis nem escutar. Marta é assim. Você acha que eu ia sair daqui, agora, e deixar os nossos companheiros na pior? Se quer ir, vai você. E não esquece de levar também o seu amigo. Pelo menos, é menos um dedo-duro que fica por aqui. A verdade é que Marta tem medo de sair de Belo Horizonte. Pelo menos, aqui ela é o que é, os companheiros a conhecem e ela gosta de ser reconhecida.

Eduardo nem comentou, quando lhe contei o que Marta tinha dito, apenas riu. Mas ele estava certo, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo. Por eu fazer sempre aquilo que acho que é certo é que ainda continuo com Marta e edito o Plano Inclinado.

Agora, sobre a morte de Eduardo, é como lhe digo, faz tempo que não o vejo, para ser sincero, estive com ele pouco antes de casar, mas não acredito que tenha morrido. Por quê? Ora, porque se Eduardo tivesse morrido, realmente, você acredita que todos os jornais desconheceriam o fato, tratando-se de um escritor que sempre escreveu na maior parte deles? Sinceramente, essa morte de Eduardo só pode ter sido inventada por alguém. E alguém que não é do nosso meio, entendeu?

7

Na terça-feira passada entrei, pela primeira vez, no Belas Artes Liberdade, sem saber que tinha bar. Sabia que na Rua Gonçalves Dias, quase esquina com a Rua da Bahia, tinham sido inaugurados três cinemas, e que na Sala Belas Artes estava passando O Marido da Cabeleireira. Mas só sabia isso.

Eu gosto de cinema. Mas gosto de cinema como gosto de livros. São os diretores que me interessam, não os gêneros. Nunca tinha visto nenhum filme de Patrice Leconte, mas a sinopse de O Marido da Cabeleireira fascinou-me. Um menino deslumbra-se com a dona do salão de beleza da cidade onde vive e decide, quando crescer, casar com uma cabeleireira. E casa.

Parecia argumento de novela mexicana, mas a firmeza daquela decisão tocou-me fundo. Quando era menino, eu também decidia a minha vida.

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Jaqueline, menina, deixa de ser boba, o coroa não morreu, não. Jaque, se tivesse morrido já tinha saído no jornal, ou você pensa que jornal é bobo, hem? Bobas somos nós, isso sim.

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Mas de jeito nenhum. Eduardo da Cunha Júnior não morreu, nem em dezembro do ano que passou, nem nunca, viu? Vai ver, foi essa desgraçada dessa Marta que inventou essa mentira, eu conheço Eduardo melhor do que ninguém. Ela é que sempre teve raiva dele e eu aposto, aposto mesmo, viu?, que foi ela que inventou essa besteira. Sabe o quê que ela me disse, logo que eu conheci Eduardo e ele me apresentou pro pessoal, lá no Vaca Atolada? Lúcia, esse sujeito não presta, é um reaça. E, além de reaça, é um machista. Você sabe como é que ele classifica as mulheres? São as putas, que dão pra todo mundo, são as filhas da puta, que só dão pros outros, e são os bagulhos, que só dão pra ele. Na classificação dele eu sou a maior filha da puta, entendeu? Não, não entendi. Não entendi e aposto que Marta bem que gostaria de ser um bagulho. Aliás, bagulho ela já é. Sempre foi. Só que não é, e nunca vai ser, um dos bagulhos que só dão pro Eduardo. E, enxerida como é, não sei nem como é que Maurício consegue agüentar. Uma vez ela não chegou a dizer que Eduardo dedurava todo mundo porque nunca teve peito de enfrentar a milicada, feito que nem ela? Ô mulherzinha sem moral.

Eu não sou muito chegada a cinema, teatro é muito mais a minha praia, e foi o destino que me fez conhecer Eduardo, só pode ser. Conheci-o já faz mais de oito anos, numa mostra de filmes portugueses na Sala Humberto Mauro, ali no Palácio das Artes. Apesar de meu pai ser filho de português, eu nunca tinha assistido um filme português e fiquei a fim de ver como é que era, sabe como?

Aí, no dia, antes de ir pro hospital, eu dou plantão no Pronto Socorro do Odilon Beherens, passei no Palácio das Artes e comprei a entrada. E foi até bom, sabe como? Na hora de começar a sessão foi aquele empurra-empurra, eu querendo segurar o meu lugar na fila e o pessoal querendo passar na minha frente, e, de repente, alguém tropeça e me agarra, e eu fiquei danada, pê da vida. Fiquei mesmo. Se tem coisa que eu não admito é falta de educação ou de respeito, seja de quem for, entendeu?

Mas nem deu tempo de xingar. O sujeito logo, logo, pediu desculpas, me olhando de um jeito que me deixou até sem jeito, sabe como? Aí, já viu, um olhar daqueles, fazer o quê no meio daquele empurra-empurra? Fazer de conta e pronto. Vai assistir? Aí, ele sorriu, não, infelizmente, não posso, e aquele sorriso foi a conta. Foi mesmo. Mandei o filme àquele lugar e dane-se, eu também não posso, diz que esgotou a lotação. Aí, pronto, saímos da fila, mas continuamos do mesmo jeito, olhando um pro outro, feito que nem dois bobos. Só que, de repente, ele olha pro chão e diz, bem, e foi a conta outra vez. Mas, desta vez, conta mesmo, sabe como? Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, eu cortei a volta e dane-se, vamos tomar um chope?

Fomos prá Cantina do Lucas, ali no Maleta, ficamos lá a noite toda, mas ele quase não falou. E, sempre que falava, não falava, perguntava, sabe como? Aí, já viu, eu falei que falei. Só não falei, mesmo, foi que não tinha ido ao cinema por causa dele, o resto, falei tudo. Que me chamava Lúcia, que tinha vindo do Rio de Janeiro há dez anos, que era médica da Secretaria Municipal de Saúde, que tinha trinta e sete anos e era separada há quase nove, e que era totalmente independente. Quando eu falei que era totalmente independente, foi a única vez que ele falou e disse que era muito difícil encontrar alguém que fosse independente, mas que era ótimo, mesmo que não fosse totalmente, sabe como?

Eu não entendi o que ele quis dizer com aquilo, mas deixei. Tem hora que é melhor a gente dar uma de sim-senhor do que dar murro em ponta de faca, entendeu? Aí, pra não dar aquela bandeirada, pedi o jantar, frango grelhado com arroz à grega e cerveja, me lembro como se ainda fosse hoje, e comecei a falar das minhas metas. Eu sempre falo das minhas metas, é bom a gente falar das metas da gente, dá firmeza, e, além de dar firmeza, também mostra como a gente é, sabe como? Eu tenho três metas, que seguro até na maior barra, escrever um livro sobre medicina social, acho importantíssimo, a medicina social no Brasil não existe, fundar um grupo de teatro, também acho importantíssimo, chega da porcaria das novelas da TV Globo mostrarem um Brasil que não existe, e a coisa mais importante, fazer do Partido dos Trabalhadores a maior força política do Brasil, entendeu?

Cada um acredita no que quer, mas eu acredito em mim e não abro mão disso, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo, entendeu? Mas só depois que separei é que pude começar. Infelizmente, o meu ex-marido não pensava como eu e foi por causa disso que a gente separou. Mas não foi só por causa das minhas metas que a gente separou, não. A gente separou por mil motivos, sabe como? Um deles, por exemplo, ele odiava Belo Horizonte, eu adoro, entendeu? Realmente, eu adoro Belo Horizonte. Belo Horizonte é uma cidade onde as pessoas ainda se interessam umas pelas outras, não é como no Rio de Janeiro, onde ninguém conhece ninguém e ninguém se importa com ninguém, eu sou carioca e sei muito bem o que digo. Mas não é só isso, não, em Belo Horizonte, se a gente quiser, a gente ainda pode ser feliz, entendeu? E foi isso que meu ex-marido nunca quis entender, sabe como?

Não vou jurar, não, mas tenho certeza que ele gostou das minhas metas, e olha que quando eu bebo, eu bebo pouco, mas quando bebo dano de falar. Falo mesmo. Você sabe o que é que mais falta no Brasil? Hem? É vergonha. Responsabilidade, entendeu? E respeito. Respeito pelos direitos, pela cidadania, pelo espaço de cada um, e por aí vai, eu danando de falar e ele calado, só escutando, escutando e me olhando. Mas nem liguei. Eu sou assim, quando me empolgo, não quero nem saber, falo o que penso e o que não penso, e não tou nem aí. Troço que vem lá dos meus avós, cruza de português com galego, sabe como?

Eu não sei se você já reparou, mas eu mexo muito quando falo, deito na mesa, encosto na cadeira, cruzo os braços, tá vendo?, é um mexe-mexe danado, eu sei disso, e, como o meu busto é muito grande, os meus seios danam de balançar. E você sabe onde o danado tinha os olhos enquanto eu falava que falava? Pregados nos meus seios. Eu só percebi quando me calei, mas eu ligo, ligo nada. Desde menina que os meus seios são assim e eu nunca tive esse negócio de complexo, essas besteiras, antes pelo contrário, quando eu vejo que alguém repara neles me babo toda. Babo mesmo. Me diga, qual é a mulher que não gosta de ser admirada? Tem algumas que dizem que não gostam, mas é frescura, pode crer que é frescura. Aliás, eu sei de uma que diz que até detesta. Mas Marta diz que detesta porque é mais lisa do que tábua, sabe como? Se não fosse, duvido que detestasse. Duvido, duvidêódó, entendeu?

Mas, aí, entendeu?, quando ele percebeu que eu tinha percebido, ficou até sem graça. Mas eu fiz de conta que nem vi, enchi os copos outra vez e acendi um cigarro. Com aquela empolgação toda tinha até esquecido de fumar. Eu fumo pouco, mas, às vezes, um cigarro até que ajuda. E ajudou, ele sorriu, acendeu também um cigarro e ficamos assim, olhando um pro outro, calados, outra vez feito que nem bobos, sabe como?

Ficamos um tempão assim e, como eu senti que ele não ia falar nada, aí, já viu. Peguei firme e botei-o na roda, sabe como? E você? Até agora, você não falou nada. O que é que você quer que eu diga? Aí, eu não agüentei, tive que rir. Pode começar pelo nome, o meu você já sabe. Eduardo. Eduardo de quê? Da Cunha Júnior. E a sua vida? Ai, o danado trancou. Trancou, assim. Trancou, mas olhou pra mim e sorriu. Sinceramente, não sei se foi a forma como ele me olhou ou se foi a forma como ele sorriu, sabe como?, mas que mexeu comigo, isso mexeu. Mexeu mesmo. Me senti, assim, como se ele fosse um menino que precisasse de colo e tivesse medo de pedir, entendeu?

E, aí, já viu, não teve jeito, peguei na mão dele e pronto, eu gostei de não ter ido ao cinema. Eu também. Aí, já viu, foi a conta. Foi mesmo. E quando ele meteu a mão no bolso e tirou uma entrada, aí a vaca foi direta pro brejo e não deu nem pra pensar. Nem pra pensar, nem pra falar, nada. Peguei a bolsa, mostrei também a minha entrada e foi aquela gargalhada.

Mas foi bom, sabe como? Ele dormiu no meu apartamento e foi ótimo. Nunca dormi na casa dele, mas também nunca me importei. O importante, pra mim, não era dormir na casa dele, entendeu? Era saber que tinha um companheiro, sabe como?

Agora, tem uma coisa. A gente separou e tudo mais, mas uma coisa eu lhe digo, e digo sinceramente, Eduardo não morreu. Aquela vaca daquela Marta pode até jurar que Eduardo morreu, mas não vá nessa, não, Eduardo não morreu. E sabe por que é que ele não morreu? Porque, e disso eu tenho certeza absoluta, a gente separou mas ainda vai voltar. Pessoas como nós são assim, tem hora que precisa respirar, mas respira e volta, entendeu? Escreva o que eu tou lhe dizendo, que eu conheço Eduardo melhor do que ninguém, a gente separou, mas a gente vai voltar, mesmo que aquela vaca daquela Marta mande rezar até missa de sétimo dia, entendeu?

10

O Marido da Cabeleireira estreou no dia 1 o. de setembro, mas só fui ao Belas Artes no dia 21, segunda-feira. Passei todos aqueles dias pensando no que, realmente, teria feito aquele menino para cumprir o que tinha decidido. E, por mais que forçasse, não conseguia esquecer. Mas não era por curiosidade que lembrava. Era por medo. Ao pensar naquele menino era em mim que pensava. E não gostava do que pensava.

Foram três semanas fodidas. Todas as vezes que pensava ir, não ia. E o pior é que ainda justificava o meu medo. Ou via filmes que jamais teria visto, ou lia livros que também jamais teria lido. Mas nem assim conseguia esquecer. O medo de confrontar o que tinha sido, e o que era, com o que iria ver no Belas Artes não me deixava esquecer.

Não gosto de suspense. Me sinto conduzido, manipulado. A realidade é transformada em aparência e as causas são, sempre, condicionadas aos efeitos. Mas, naquelas três semanas, até o suspense me serviu de argumento. A TV Minas ia iniciar, no dia 5, um ciclo de filmes de Hitchcock, e, embora não gostasse, decidi assistir todos. Pelo menos, enquanto estivesse em casa não poderia estar no Belas Artes. E não estando no Belas Artes, não seria obrigado a comparar a firmeza da decisão daquele menino com a minha própria covardia.

Cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo. Só que o certo, agora, era errado, e eu sabia.

 

Cunha de Leiradella nasceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.

Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

Cunha de Leiradella
Casa das Leiras . São Paio de Brunhais
4830-046 - Póvoa de Lanhoso
Portugal
Telefone: 253.943.773

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