MARIA ESTELA GUEDES
(CICTSUL, ISTA)
S. Frei Gil, um santo carbonário
1. Uma história de S. Frei Gil

Era uma vez um rapazinho muito dotado intelectualmente, filho de gente da corte - o pai, alcaide-mor de Coimbra, fora da roda de D. Afonso Henriques, nosso primeiro rei. Tão dotado era que, diz Eça de Queirós, mal aprendeu a ler, logo devorou os 33 volumes que constituiam a bem dotada livraria do mosteiro de Santa Cruz. Depois disto, nada mais teria o mosteiro para lhe oferecer, de modo que pensou partir para estudar medicina na Universidade de Paris. Nesta decisão lhe foi favorável o próprio rei, D. Sancho I, que muito desejava ter médicos no reino, e para tanto, em 14 de Setembro de 1199, destinou 400 morabitinos para bolsas de estudo aos escolares do mosteiro de Santa Cruz que quisessem ir doutorar-se a França. No tempo de Gil Rodrigues, ainda só havia um médico em Santa Cruz, doutorado em Paris, Mendo de nome.

Gil Rodrigues partiu com os criados. Ao chegar perto de Toledo, sai-lhes à frente um belo jovem montado a cavalo que indaga quem ele é, para onde vai e com que intenção. Gil responde e o cavaleiro argumenta que sim, a medicina não era mau futuro, mas para alcançar glória, riqueza e poder, ali em Toledo havia mestres muito melhores. Nas Covas de Toledo podia tirar o curso completo de Magia Negra. Gil Rodrigues deixa-se convencer, e entra na escola de nigromantes, cujas aulas se davam debaixo da terra. Findo um ano, o Grão-Mestre dos Demónios chamou-o de lado e fez-lhe a seguinte proposta:

“Se daqui para a frente, Gil, desejas permanecer connosco mais tempo, é absolutamente indispensável que faças uma profissão de vida mais estrita; é que, quem pretende possuir esta ciência tem que dar ao demónio um documento feito com o próprio sangue, pelo qual lhe sujeita o corpo e a alma e renuncia junto de Deus à sua justificação, assim como a Deus, à fé e ao baptismo, e se a alguém mais tem apreço é necessário renegá-lo” (Frei Baltasar de S. João, p. 30).

Gil escreveu e assinou com sangue, e o Demónio guardou o documento. Sete anos passou Gil na universidade subterrânea de Toledo, sem comer nem beber, pois tal não era necessário, substuído o alimento pelo contínuo êxtase. Já mestre nigromante, segue então para França. Em Paris correram-lhe tão bem os estudos de Medicina que breve ficou famoso pelas extraordinárias curas que realizava. Mas Gil dedicava grande parte do tempo à libertinagem, de modo que certo dia apareceu-lhe em visões um cavaleiro que lhe apontou ao peito a espada: "Muda de vida, homem! Muda de vida, se não, morres!" – avisou. À primeira, Gil Rodrigues não acreditou na visão, pois lhe tinha parecido que era de pedra o cavaleiro. Porém à segunda encheu-se de medo e determinou que não haveria terceira aparição. Logo ali começou a arrepender-se, decidindo regressar a Portugal, pois já tinha o grau de doutor em Medicina.

Ao passar por Palência viu os frades dominicanos a erguerem com as próprias mãos as pedras do seu conventinho, e pressentiu que o seu lugar era naquela Irmandade. Pediu ao prior que o deixasse ajudar os frades pedreiros e o prior acedeu. Gil penitenciava-se dos seus pecados, que eram muito mais que sete, apesar de só ter durado sete anos a penitência. Flagelava-se, jejuava, e até um cinto de ferro colocou no corpo, deitando fora a chave, para não ceder às tentações da carne.

Findos os sete anos de provas, voltou a Portugal, entrando no convento de Santarém. Neste tempo já ele ia sendo conhecido, não só pelas curas milagrosas como pelas visões e êxtases que tinha. Também era frequente elevar-se-lhe o corpo no espaço, como se não pesasse mais que ligeira pena de avestruz. Um dia em que estava mais absorto elevou-se mesmo até ao telhado, e por mais que os frades fizessem não conseguiram puxá-lo para o chão. De outra vez, um membro da Inquisição, ao presenciar a cena, bem quis testar se era de fraudulenta ou verdadeira levitação, queimando-lhe as mãos com a chama de uma vela, mas Frei Gil não as recolheu para junto do tecto, onde o corpo flutuava, assim ficando provada a autenticidade do fenómeno.

Gil era agora uma pessoa muito diferente do que fora, e já todos o consideravam santo. Mas ele não pensava assim: se o corpo lhe era tão leve que a aragem o impelia para junto de Deus, na alma sentia um peso que o enterrava nas profundas dos Infernos. Dedicava neste lance a Nossa Senhora do Rosário grande parte das suas orações. O maldito documento que rubricara com sangue atormentava-o, por estar nas mãos do Demónio. Ao fim de muito rezar a Nossa Senhora, ela ouviu-o. Certa manhã, estava ele de joelhos na capelinha, a desfiar o rosário, eis que nos raios de luz que obliquamente desciam do céu, vinha esvoaçando o contrato celebrado com o Diabo.

Livre agora e para sempre, Frei Gil dedica-se a Deus e aos doentes do hospital, lavando-os, dando-lhes de comer, rezando por eles. E ia obrando muitos milagres: a uns livrou de morrer com espinhas cravadas na garganta, a outros de ossos entalados na glote, a outros de tumores na boca. A uns curava impondo as mãos, a outros rezando. E ainda fazia milagres por interposta pessoa, se muito lhe rezasse, ou tocasse o enfermo com um objecto seu. Os milagres de S. Frei Gil, que ainda não chegou a santo, continuam a realizar-se, prova de que a crença é mais forte do que a morte. E tanto assim é que milagres bem conhecidos dele são a salvação de dois meninos caídos numa fonte de águas termais. Sabendo-se que um deles, além de morto havia horas, tinha ficado cozido na água a ferver. É de todos conhecido que S. Frei Gil tem poder para ressuscitar os mortos.

Mas voltemos aos seus estudos, pois Gil foi toda a vida um escolar, ou porque aprendia, ou porque ensinava. Pela segunda vez volta a Paris, agora a tirar o curso de Teologia. Em datas incertas, cito de Jorge Custódio, “é nomeado segundo prior da Ordem dos Dominicanos, e por duas vezes”.  

Como Provincial de Espanha, visitou várias cidades da Europa. De uma vez, dirigia-se às Baleares, para presidir a um capítulo. No cais, cheio de gente que ia embarcar, ouve-se o estrépito de um espirro. Pior sinal não podiam ouvir os marinheiros, um aviso daqueles, saído das cavernas da boca e do abismo do nariz, anunciava tempestade e com ela naufrágio certo. Determinaram não soltar amarras nesse dia. Porém S. Frei Gil mostrou-lhes e aos viajantes como era indigno de cristãos acreditar em tais superstições.

“…absit, inquit, fratres mei, a nobis superstitio haec, nec enim, mihi credite, christianos tale decet augurium, sapit nam paganismus” (Frei Baltasar de S. João, p. 61-63).

Convencidos, partiram. Iam no mar alto, sobrevém aterradora tempestade. Frei Gil pede a Nossa Senhora que os deixe alcançar Palma de Maiorca, e a tempestade, contrita, desfaz-se em lágrimas. Desembarcados sãos e salvos na terra de Raimundo Lúlio, ficam a saber que um outro barco, carregado de dominicanos que também iam ao capítulo, tinha naufragado. Morreram todos afogados.

Já velho, coxo, porque os ossos tinham perdido o cálcio da mocidade, Frei Gil conversava certa tarde com o rei D. Afonso III, que viera visitá-lo ao seu jardim. Ajudara-o a sentar-se no trono, tal como ajudara à deposição de D. Sancho II, seu irmão. D. Afonso III sofria de gota, por isso andava mal das pernas, dorido e trôpego. Então disse ao amigo: “Frei Gil, o vosso bordão parece bem melhor que o meu. E se trocássemos?” Sem esperar resposta, trocou os bordões. E a verdade é esta: D. Afonso III logo ali começou a andar escorreitamente e sem nenhumas dores, mal apoiou o corpo ao bordão de S. Frei Gil, que já fora o bordão de S. Domingos.

E ao santo também o bordão rejuvenesceu e curou as pernas, pois no Colóquio comemorativo de S. Frei Gil de Santarém, realizado em 1990 pela Associação Portuguesa de Arqueólogos, três antropólogos foram solicitados para examinar um relicário do santo, que contém uma tíbia. Em resultado dos exames, os três cientistas declararam que a tíbia, devidamente identificada com a inscrição “B. Aegidii”, pertencera a um homem de idade inferior a sessenta anos, com os ossos perfeitamente sãos.

Na corte, era tal a influência do santo, e tão forte a lembrança dos seus milagres, entre os quais se contava o bom sucesso nos partos, que as princesas e rainhas grávidas costumavam encomendar-se a S. Frei Gil. Entre outros bons nascimentos, foi assim que veio ao mundo El-Rei D. Sebastião.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>Nemo ou Todos-os-Santos?