• ISRAEL
    A GESTA DAS MATRIARCAS?
    MARIA JULIETA MENDES DIAS



 
Introdução

Ao escolher para tema de ensaio Israel no tempo dos Patriarcas, do chamado Mundo Pré-clássico, tinha em vista debruçar-me sobre a acção das suas respectivas mulheres: Sara, Rebeca e Raquel. Sempre me fascinou a leitura dessas narrativas e chegava sempre à mesma conclusão: estes patriarcas são muito pouco patriarcais. As suas mulheres é que decidem e lhes indicam o que devem fazer. Não seria mais adequado chamar também, a esse tempo, o tempo das matriarcas?

Tentarei mostrar o papel fundamental das mulheres – destas mulheres – nas “narrativas de origem” do Povo de Israel: o Tempo da Promessa. Antes, porém, convém apontar os conceitos de História e de Teologia narrativa, como pressupostos de leitura.


PRESSUPOSTOS

A Bíblia, nomeadamente, no Pentateuco – conjunto dos primeiros cinco livros: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio – oferece um quadro de história completamente delineado pela fé e, por isso, de índole confessional.

O modo como a fé entende os acontecimentos históricos tem características próprias: uma grande parte destas tradições de Israel devem ser consideradas poesias, sendo, assim, produto de uma clara intenção artística. No entanto, para os povos antigos, a poesia é muito mais do que um simples jogo estético: é a expressão de um desejo insaciável de conhecer os acontecimentos históricos e naturais do mundo circundante. Só a poesia se prestava a falar das experiências da história do povo de forma a actualizar, plenamente, o seu passado.

Até ao séc. VI a.C., não se podia prescindir da poesia na concepção de história. A fé (não só a fé de Israel) precisa dela porque, nestes materiais da tradição, não é possível desligar o acontecimento histórico da interpretação teológica que os atravessa em todos os sentidos.

No caso de Israel, este tipo de narrações tem uma relação indirecta com a realidade histórica, tendo, no entanto, um contacto muito imediato com as verdades da fé israelita. Os acontecimentos salvíficos eram actuais em todas e para todas as gerações futuras com uma actualidade indiscutível que, hoje, é difícil explicar com exactidão.

Como diz Georg Fohrer, «o Antigo Testamento não procura apresentar objectivamente a história, pois os factos históricos como tais representariam apenas insignificantes abstracções para os israelitas. Tais relatos constituem muito mais o fundamento de uma interpretação religiosa e teológica, ligando-se a ela. O facto histórico e a sua interpretação estão indissoluvelmente ligados e dependentes entre si. (...) Na realidade, a história não é narrada por si mesma, mas pela interpretação religiosa e teológica do relato» (1)

É histórico determinado evento que se torna problemático concretizar e se encontra na obscura origem da tradição respectiva. Porém, também é histórica a experiência de que YHWH transforma a maldição do inimigo em bênção e mantém a sua promessa apesar das faltas do destinatário (2).

Como diz W. Dilthey, «a poesia não é a cópia de uma realidade preexistente...; a arte é uma força capaz de produzir um conteúdo que transcende a realidade e não pode traduzir-se em ideias abstractas; é um poder que cria uma nova visão do mundo» (3).

Posto isto, constatamos a dificuldade em distinguir, através dos conceitos actuais de história e de teologia, onde termina uma e começa a outra. Pelo contrário, estão de tal maneira entretecidas que, facilmente, tomamos uma pela outra. A meu ver, o importante é ter sempre presente que estamos perante um tecido feito com fios de história e com fios de teologia.

Nestas narrativas – Gn 12-35 – podemos ler as origens de um povo e da sua fé. A história deste povo é inaugurada com um homem que acredita, assim como a sua família, no Deus que aceita ser chamado “seu Deus” e que permanecerá o “Deus de Abraão”, mesmo quando a sociedade e o pensamento de Israel se encontrarem já muito afastados destas imagens arcaicas.

Portanto, ainda hoje, somos convidados a ler, nestes começos inacessíveis, a nossa própria origem, o início do devir para todos os que se põem a caminho porque ouvem um apelo de Deus. É por isso que só um leitor que se sinta implicado nestas narrativas é capaz de atingir o seu verdadeiro sentido (4).


TEMPO DA PROMESSA: Gn 12-25
Uma terra, uma aliança, uma posteridade


Hoje em dia, os exegetas situam a redação destes capítulos da Bíblia bastante tardiamente, por volta dos séc. VI-V a.C.. Pelo seu contexto literário e pela sua configuração, consideram-na posterior à historiografia deuteronomista.

Como já foi esboçada, em termos de narrativa bíblica, a origem do povo de Israel assenta na “história” de um homem – Abraão – que obedece à ordem de YHWH para sair da sua terra, pois acredita que a Promessa feita no seguimento dessa ordem será cumprida:

- promessa de paternidade de um povo (12,2)

- promessa de uma nova relação com Deus (aliança/bênção: 12,3)

- promessa de uma terra dada à sua descendência (12,7).

Esta Promessa tridimensional é o arcabouço que suporta e unifica todo o material da tradição reunido nestas grandes composições narrativas.

A Promessa faz da época dita patriarcal a instituição destinada a preparar, cuidadosamente, o nascimento e a vida do povo de Deus (5).

Vamos, então, tentar ver como as suas mulheres amadas assumiram a fé na Promessa. Para tal, seguirei a sequência dos capítulos 12-35: Sara/Abraão, Rebeca/Isaac e Raquel/Jacob (Israel).


A. SARA, Gn 12-23

Sara é apresentada como uma mulher muito bonita e Abraão tem consciência disso, o que o leva, por duas vezes (12, 11-13; 20, 1-13), a pedir-lhe que se faça passar por sua irmã. E isto porque teme pela sua vida, sabendo os outros que era sua mulher. Sara aceita, sem reservas, ser o garante da sobrevivência do seu marido.

Estará ela de tal maneira possuída pela fé na Promessa que não hesita em ser o escudo do eleito de Deus?

O certo é que não só lhe salvou a vida como foi causa do seu enriquecimento material, podendo, assim, voltar para a terra que Deus lhe indicara (12, 16ss; 20, 14ss) (6).

A fé de Abraão não visa o seu presente, mas uma realidade futura. No entanto, para que haja futuro, é imprescindível que algo aconteça já. Algo que demora a chegar: um filho.

Sara é estéril e Abraão nada faz senão questionar YHWH (15, 2-5) e esperar. É ela que toma a iniciativa de “apressar” o cumprimento da promessa de uma descendência: Vê, eu te peço: YHWH não permitiu que eu desse à luz.Toma, pois, a minha serva. Talvez, por ela, eu venha a ter filhos. E Abraão ouviu a voz de Sara (16, 1-4).

Perante a sobranceria da serva grávida, Sara sente-se humilhada, acusa o marido pela injúria de que é alvo e convoca YHWH como juiz entre eles (16,5). Abraão dá-lhe liberdade absoluta para fazer o que bem entender. Sara de mais nada precisa: maltrata a serva a ponto de a “obrigar” a fugir (16, 6), embora regresse mais tarde.

Entretanto, YHWH reforça a Promessa, a promessa de fazer de Abraão o pai de uma multidão, o destinatário da aliança e da sua descendência o possuidor da terra que habita (17, 1-14). Sara é envolvida, explicitamente, neste reforço. YHWH muda-lhe o nome – como já tinha feito a Abraão (17, 5) – pois chamava-se Sarai. Abençoa-a e renova, mais uma vez, a Promessa a partir dela: dela te darei um filho... ela se tornará nações... dela sairão reis e povos (17, 15-16).

Este envolvimento só podia provocar riso, pois YHWH estava a revelar-se como um Deus cheio de humor: um homem velho, uma mulher velha, conceberem? Só podia ser brincadeira.

Aliás, Sara tem a mesma reacção quando se apercebe, também, como alvo de eleição, como destinatária e veículo da Promessa. Desta vez, para cúmulo, o seu cumprimento não é apresentado num futuro indeterminado, mas em data marcada: no próximo ano (18, 9-15).

Brincadeira à parte, a promessa cumpriu-se no tempo previsto: YHWH visitou Sara, como dissera, e fez por ela como prometera. Sara concebeu e deu à luz um filho a Abraão já velho, no tempo que Deus tinha marcado... Isaac (21, 1-3).

Ao ver crescer seu filho juntamente com o da sua serva, novos receios a invadem. Serão os dois herdeiros da Promessa? Mas só ela e não a serva foi abençoada e escolhida para dar início à sua realização. Não pode ficar de braços cruzados. Vê, apenas, uma solução: expulsar a serva com o filho. Em Sara, a acção acompanhava sempre o pensamento e isto mesmo pediu a Abraão que ficou muito infeliz (21, 8-11). YHWH, no entanto, tranquilizou-o, pois o que parecia, à primeira vista, uma desgraça não o era. Sara tinha razão. Ele não tinha mais do que fazer tudo o que ela lhe pedisse porque ela via para além dos acontecimentos (21, 12-14).

Sara volta a ser referida por ocasião da sua morte (23, 1-2. 19) e uma última vez, depois de Isaac ter amado Rebeca. Este amor consolou-o da morte de sua mãe (24, 67).

Não há dúvida que os narradores destes textos não estão interessados na fé de Sara, mas tão só na de Abraão (por exemplo, em Gn 22 – um texto fundamental para provar a fé de Abraão – Sara não é tida nem achada) (7).

Porém, o seu marido reconhece a autoridade dela sobre a situação em várias ocasiões como foi apontado.


B. REBECA Gn 24-28

Embora Isaac seja o herdeiro das grandes promessas de Deus a Abraão e à sua posteridade (17,91-21), a sua história é breve e parca de acontecimentos exteriores. Podemos, pois, considerá-lo como “figura de transição” a quem pertence a responsabili-dade de transmitir a Promessa.

Uma leitura apressada da brevíssima descrição a seu respeito pode levar a pensar que se trata de uma personalidade passiva, visto que foram sempre os outros a decidir no que lhe diz respeito (sacrifício, pedido de casamento, engano na transmissão da bênção...) (8). Esta conclusão é, também, facilitada pela personalidade enérgica da sua mulher, Rebeca (9).

De facto, Rebeca é a actriz principal desde o primeiro momento. Mesmo antes de ser conhecida, na preparação do plano de casamento de Isaac, é-lhe atribuído o poder de decisão de abandonar ou não a casa de seu pai (24, 5-8. 39-41), enquanto ele é esquecido completamente: ninguém se preocupa em saber o que pensa ou o que pretende.

Depois de ser reconhecida como a “indicada” por Deus (24, 11-21. 42-48), toma a iniciativa de providenciar pousada em sua casa, sem saber de quem se trata (24, 23-27).

Perante o motivo que trouxera aquele estranho, o “chefe de família”, irmão de Rebeca, aceita o pedido de casamento, mas reclama um tempo de espera. Face à urgência do regresso e, consequentemente, à recusa desse tempo de espera, remetem para ela a decisão final. Rebeca não hesita em partir imediatamente e ninguém interfere (24, 56-61).

Para além da capacidade de iniciativa, de acção, Rebeca tinha mais duas marcas que a tornam muito semelhante a Sara: era muito bonita e estéril.

A beleza levou-a a sentir na pele a mesma experiência de Sara: passou por irmã de seu marido, pelas mesmas razões, que também assumiu pessoalmente, e com as mesmas consequências (26, 7-13).

Na esterilidade não teve de recorrer às escravas porque Isaac implorou por ela a YHWH e foi ouvido. Rebeca ficou grávida (25, 20-21).

Porém, a sua gravidez não foi normal. Sentia algo estranho dentro dela que, num primeiro momento, a levou a desejar a morte (25, 22a). Mas depressa ultrapassa a angústia e virou-se para YHWH, consultando-o (25, 22b). Uma vez mais YHWH atendeu e mostrou-lhe o que estava a acontecer. Revelou-lhe os seus insondáveis desígnios, o que ela assumiu sem reservas: Isaac preferia Isaú (o primeiro)... mas Rebeca preferia Jacob (25, 23-28).

Ao sentir a morte a aproximar-se, Isaac chamou Isaú, seu filho mais velho, e pediu-lhe uma boa refeição com o produto da caça para, em seguida, o abençoar. Rebeca sempre atenta, sempre no lugar certo e na hora oportuna, ouviu as intenções de seu marido (27, 1-5).

As “revelações” que recebera durante a gravidez nunca tinham caído no esque-cimento e, agora, ganharam sentido. Chegara o momento de perceber que o seu cumprimento passava por ela. Não perde tempo. Chama, imediatamente, Jacob, conta-lhe as intenções do pai e traça um plano de acção para que este se antecipe ao seu irmão a fim de receber a bênção que lhe estava destinada (27, 6-10).

Perante os receios de Jacob, a mãe assume, pessoalmente, todas as maldições, no caso de existirem, e executam o plano traçado (27,11-71).

Tudo correu como o previsto e Isaac, apesar da emoção forte, não mostrou grande pesar ao constatar o engano: o que fiz está feito, não posso voltar atrás (27, 30-40).

Não aconteceu o mesmo com o irmão que procurou vingar-se. Ao saber disto, Rebeca toma, de novo, o comando da situação, planeando a fuga com o estratagema do casamento (27, 41ss).

Isaac não descobre os verdadeiros receios de sua mulher e aceita, plenamente, a sua versão, dando ordens a Jacob nessa mesma linha, tal como Rebeca esperava, isto é, a mãe transforma a fuga de Jacob em cumprimento da ordem de seu pai (28, 1-5).

Rebeca termina, assim, as suas funções de matriarca, obtendo a bênção para o seu preferido e salvando-lhe a vida, garantindo que a Promessa feita a Abraão se perpetuasse.


C. RAQUEL Gn 29-35

A vida de Jacob poderia, facilmente, ser incluída no género literário “Aventura”. Tem de fugir à ameaça de vingança do seu irmão Isaú; compromete-se a trabalhar sete anos para poder casar com a rapariga amada (Raquel); é enganado pelo sogro que lhe dá a mais velha e, para não renunciar à desejada, terá de trabalhar mais sete anos; luta com Deus e, finalmente, regressa à sua terra através de nova fuga. É uma “história” de fraudes, mas também a do homem que se sente protegido por Deus (28, 10ss) e que, por sua vez, se ocupa de Deus, lutando com Ele para ser abençoado. Luta que o ligou de tal modo e para sempre, a Deus, a si próprio e ao povo a quem deu o nome que Deus lhe dera: Israel (32, 22ss).

Apesar de tudo isto ou por causa de tudo isto, percebe-se que estamos perante um homem profundamente crente, cuja oração é de grande valor teológico, que nunca tinha sido atingido. Além do valor teológico, esta oração é como que o ponto aglutinador das “histórias” dos três patriarcas: Abraão, Isaac e Jacob (32, 01-13) (10).

Raquel é a sua amada por excelência, desde a primeira hora. No entanto, tem de pagar um alto preço para fazer dela sua mulher: é ludibriado e obrigado a dobrar o tempo de contrato (29, 18-30).

Como as suas “antecessoras”, é estéril. A sua estratégia é semelhante à de Sara, começando por dar a sua serva a Jacob para deles obter filhos (30, 1-8), passando pelo acto de pagar a sua irmã Lia para conceber mais um filho em seu nome (30, 14-15). Por fim, YHWH lembrou-se de Raquel: ele ouviu-a e tornou-a fecunda. Deu à luz José por meio do qual dizia: Deus retirou a minha vergonha... e que YHWH me dê outro (30, 22-24).

Quando Jacob percebe que é alvo de invejas e ódios, decide fugir, depois de ouvir o Anjo de Deus (31, 11-12) e confia o seu plano a Raquel e Lia que o assumem, porque percebem que está de acordo com a Promessa de YHWH (31, 1-18).

Raquel, porém, antes de sair de casa de seu pai, rouba-lhe os “deuses domésticos”. Embora o texto bíblico seja muito lacónico, a literatura rabínica é vasta na interpretação deste episódio (11).

São cinco os versículos que relatam o sucedido: Raquel roubou os ídolos domésticos (12) que pertenciam ao seu pai (31, 19); Labão pergunta a Jacob, por que roubaste os meus deuses? (31, 30b); Jacob ignorava que Raquel os tivesse roubado (31, 32b); Raquel tomara os ídolos domésticos, pusera-os na sela do camelo e sentara-se por cima (31, 34a); Labão procurou e não encontrou os ídolos (31, 35b).

Inclino-me para a interpretação, segundo a qual, Raquel já tinha percebido que não tinham valor perante YHWH, o “Deus dos pais” de Jacob e, por isso, quis ajudar Labão a desligar-se da idolatria, da feitiçaria e da magia (13). Quando aceita a saída da sua terra tem consciência que estão a obedecer à ordem de YHWH (31, 16b).

Por outro lado, também faz sentido, para mim, que Raquel, mais audaciosa que Lia, roubasse o que lhe pertencia por direito – mesmo já não tendo valor religioso – dado que seu pai as tratava como estrangeiras (31, 15) e os terafim deviam ser transmitidos ao herdeiro, segundo o costume. Seja qual for a interpretação, não há dúvida que se trata de um gesto arrojado e consciente.

Raquel é referida pela última vez no momento em que, simultaneamente, dá à luz o seu segundo filho e morre (35, 16-20)(14).


GESTA DAS MATRIARCAS?

Se as Matriarcas souberam tornar-se disponíveis, vigilantes, à voz de Deus que apela à ruptura, então, a Promessa, longe de ser apanágio dos homens, sob o cuidado e o dever, exclusivamente, masculinos, está ligada, em cada etapa da sua realização, à sublimidade do casal humano, à esperança da santidade de ambos (15).

Graças às suas Matriarcas, Israel chega a ser um povo numeroso e abençoado. Sara assegura a herança de Isaac face à ameaça de Ismael. Rebeca torna possível que Jacob obtenha a bênção. Raquel, rivalizando com Lia para darem filhos a Jacob, edifica a casa de Israel (16.)

Para além de todas elas serem as esposas amadas e mulheres activas que assumem a condução da família, muitas vezes sobrepondo-se aos maridos, têm ainda uma outra característica comum: são estéreis.

Nas narrativas de origem é fundamental que a fecundidade esteja ligada à divindade. Os descendentes, os destinatários da Promessa, não podem ser engendrados pela simples vontade humana. É necessária a acção directa de Deus. Ora, é preciso que a mulher seja reconhecida como estéril – uma vida a tentar conceber – para se perceber, existencialmente, que só o poder divino seria capaz de fazer nascer o filho da Promessa.

Sara morreu de velhice; da morte de Rebeca nada é dito; a morte de Raquel não poderá ligar-se à esperança de uma unificação dos filhos de Jacob/Israel, visto que aconteceu, precisamente, no parto do décimo segundo filho, completando, assim, as doze tribos de Israel?


Conclusão

A gesta patriarcal/matriarcal conta os caminhos imprevisíveis e desconcertantes dos antigos com a sua parte de sombra e luz. É feita de tudo o que pode acontecer entre o nascimento e a morte: amores, casamentos, invejas e ódios entre irmãos, fraudes...

Se estas narrativas falam aos crentes não é, apenas, por causa da humanidade que os habita. No conjunto formado pelo Pentateuco, têm a originalidade de pôr em cena personagens singulares e de contar experiências individuais de crentes, homens e mulheres. Sara/Abraão, Rebeca/Isaac e Raquel/Jacob(Israel) vivem experiências humanas e religiosas que podem servir de referência a cada um dos crentes (17). Por isso, as suas vidas, como objecto de escrita, surgem numa época bastante tardia e como narrativas são remetidas para a origem de um Povo que nasce da fé sem Lei (embora se organize como povo a partir da lei sinaítica); de um Povo que, antes de ter uma lei, se apoia em YHWH. Em hebraico, crer, ter fé, significa apoiar-se, fiar-se.


Bibliografia

* L’ÄPPLE, Alfred, Mensagem bíblica para o nosso tempo, EP, Lisboa, 1968.

* AYNARD, Laure, La Bible au Féminin. De l’ancienne tradition à un christianisme hellénisé, Cerf, Paris, 1990.

* CHALIER, Catherine, Les Matriarches. Sarah, Rébecca, Rachel et Léa, Cerf, Paris, 1985.

* FOHRER, Georg, Estruturas Teológicas do Antigo Testamento, EP, São Paulo, 1982

* KELEN, Jacqueline, As Mulheres da Bíblia, Âncora Editora, Lisboa, 2001.

* RAD, Gerhard von, Teologia del Antiguo Testamento, Vol. I, Sígueme, Salamanca, 1978, pp. 147-229.

* RUSSELL, Letty M., Interpretación feminista de la Biblia, Desclée De Brouwer, Bilbao, 1995.

* Rev. Lumière & Vie, nº 188 (Set. 1988)


......Notas

(1) Estruturas Teológicas Fundamentais do antigo Testamento, EP, São Paulo, 1982, p. 275

(2) Gerhard von RAD, Teologia del Antiguo Testamento, Vol. I, Sígueme, Salamanca, 1978, pp. 150-155.

(3) Cit. por Gerhard von RAD, op. cit., p. 155, nota 9.

(4) Editorial, in Revista Lumière & Vie, nº 188 (1988), p.4.

(5) Gerhard von RAD, op. cit., p, 224

(6) As citações bíblicas são tiradas da Bíblia de Jerusalém.

(7) Catherine CHALIER, no seu livro, Les Matriarches. Sarah, Rebeeca, Rachel et Léa, Cerf, Paris, 1985, diz que «os sábios não pararam de estabelecer uma relação entre o fim de Sara e a dor do sacrifício de Isaac: não hesitam em falar de uma morte por desgosto, desolação e, também, traição» (p. 67). No entanto, o texto bíblico nada diz a esse respeito.

(8) Alfred L’ÄPPLE, Mensagem Bíblica para o nosso tempo, EP, Lisboa 1968, p. 206.

(9) No entanto, Isaac, longe de ser um homem apático, pode ser apresentado como o Patriarca piedoso, que guarda a bênção recebida com uma fidelidade serena e reconhecida: és um abençoado de YHWH (26, 29).

(10) Gerhard von RAD, op. cit., pp. 225-226 e Alfred L’ ÄPPLE, op. cit., pp. 209-220.

(11) Catherine CHALIER, op. cit., pp. 204-209.

(12) Terafim, em hebraico.

(13) Catherine CHALIER, na sua op. cit., fala do Midrach que dá ao roubo o sentido do medo de Raquel, pois sabia que seu pai iria consultá-los para os poder localizar e impedir a fuga (p. 205). Esta interpretação ainda supõe a fé nos terafim. O facto do texto bíblico utilizar sempre o termo ídolo nas acções de Raquel leva-me a pensar que talvez não seja esta a interpretação mais adequada.

(14) É ainda Catherine CHALIER, na op. cit., que apresenta o midrach que relaciona a morte prematura de Raquel com o roubo dos ídolos, devido à sentença de Jacob (31, 32), p. 211.

(15) Eliane Amado LEVY-VALENSI no seu Artigo, Les patriarches ou de la transmission. Une lecture juive, Rev. Lumière & Vie, nº 188 (1988), pp. 69-79, trata, precisamente, este assunto, dizendo a determinada altura : «Le couple humain s’inscrit dans cette histoire comme condition, non seulement de l’engendrement proprement dit, mais du message qui cherche à être transmis ou qui se cherche depuis le premier homme jusqu’à nos jours, en passant par les prophètes, mais déjà en s’inscrivant dans la vie des patriarches comme piliers d’un édifice que l’histoire tour à tour ébranlera ou viendra consolider» (p. 77)

(16) Letty M. RUSSELL, Interpretación feminista de la Biblia, Desclèe De Brouwer, Bilbao, 1995, p. 95.

(17) Alain MARCHADOUR, Le récit patriarcal et l’intrigue du pentateuque, Rev. Lumière & Vie, nº 188 (1988), pp. 16-17.