A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

A MODA:

O MODO DA APARÊNCIA

Margarida Anjos Amaro

 

 

 


CADERNOS DO ISTA, 15

“Falar-se somente do silêncio da saúde, do maravilhoso silêncio da saúde. Do mesmo modo deveria falar-se do maravilhoso silêncio do vestuário, desse momento de graça em que o corpo e o que veste são unos, em que essa união completamente espiritual, se resume a uma palavra: a elegância. Porque, de certo modo, a pessoa a quem as suas roupas incomodam, aquela que não se adequa a elas, é uma pessoa doente.

A elegância alcança-a quem se dedica a buscar o seu próprio estilo. Tanto na vida como na moda. Do criador que não tem estilo não se dirá que é costureiro, apenas que faz roupas. Chanel, Dior, Balenciaga eram artistas por terem encontrado um estilo que só a eles pertencia”

“O negro foi a expressão das minhas primeiras colecções. Grandes linhas negras que simbolizavam o traço do lápis sobre a página em branco: a silhueta no zénit da sua pureza. Desse modo trabalhava com toda a gama de tons sombrios, salvo o vermelho, essa cor nobre e perigosa, base da maquilhagem, da pintura dos lábios e unhas, cor do sangue e da religião. Evitava as cores claras, refugiando-me no negro cada vez que começava a trabalhar um vestido branco, – e fracassava. Mas quando, imediatamente regressado de Marrocos, num tempo em que a alegria da nossa juventude revolucionava a história, foi a intensidade desses homens e mulheres com que nos cruzamos em Marrakech, esplêndida mistura de túnicas azuis, rosas, verdes e violetas, que me levaram a pensar nos esboços de Delacroix. Esse encontro seria o da minha libertação. Por fim, podia confrontar-me com a cor.

Na escola de Dior e Chanel aprendi a libertar-me da pressão do desenho, disponibilizando-me para o apelo da matéria, da cor, da música ou do corpo de uma manequim.

Sendo um “trabalhador da arte “não posso senão desejar a utilização das matérias mais harmoniosas, de igual modo que devo contar com as melhores técnicas. Só então posso pretender aproximar-me do absoluto”

Yves de Saint Laurent (1)

La mode dans toute sa tyranie, a fait son apparition; si vous le voulez bien, nous allons lui consacrer quelques instants de nos loisirs, tâcher de l'expliquer de notre mieux.”

Marcel Proust (2)

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Espectadores atentos e observadores interessados pelo fenómeno de fascínio e sedução que é a moda, atraídos pelo poder inequívoco que ela exerce sobre nós, cativados pela diversidade da produção dos criadores, ensaiamos uma aproximação a esse firmamento constituído por toda uma série ilimitada de “espelhos da Alma” desses fabricantes de sonho, fantasia e ilusão, reflexos e reflectores da vivência da sua temporalidade e do processo mundano em que se enquadram e projectam.

Perspectivamos, então, vários registos, aparentemente antagónicos, todavia complementares e paradigmáticos da mundividência nesta esfera: por um lado o esteta, em trabalho intimista na sombra do seu atelier , por outro, a tirania impiedosa da excelência da aparência, projectada e expressa pelos imperativos e estratégias desse fenómeno ao qual alguém já chamou A Conspiração da Moda (3).

Em consequência, configura-se toda uma série de interrogações pertinentes, dúvidas essenciais lançadas segundo diferentes ângulos e apontando para as agulhas da moda, em controversas indagações, como essa questão primeira de averiguar das razões profundas, pelas quais a moda atingiu proporções desmesuradas e se apossou arbitrariamente de parte das nossas vidas, contagiou a nossa aparência quotidiana, assumindo uma importância protagonista e de considerável sucesso em tramas de sociabilidade.

Importa, ainda, sondar quem são as verdadeiras personalidades que se ocultam e refugiam no resguardo da visibilidade dos nomes dos criadores, a fim de melhor veicular produtos divulgados em todo o mundo, nomes que se multiplicam indefinidamente em plurimarcas, em multipatentes, num diligente e ambicionado processo de acumulação de poder ou na plena afirmação dos reservados e assombrosamente colossais Impérios do Luxo ; a construção e o preço destes poderosos e prestigiados empreendimentos e a expressão do real domínio de influência que encerram.

Paralelamente, a moda é parte integrante e recorrente indissociável do “Showbizz” e do entretenimento em geral, ou seja, da sociedade do espectáculo para a qual tão pertinentemente já remetera Guy Débord (4).

Assim, o carisma dos criadores, o visual que adoptam e as atitudes que assumem, torna-se indissociável dos seu trabalho e quase tão importante quanto ele, no estudo e composição de uma imagem global que procuram fazer passar, discreta ou provocante, recorrendo sempre a elaboradas estratégias de marketing e em eficaz processo de mediatização.

Por seu lado, as manequins transmutam-se, rapidamente, em ícones do impiedoso “star system”, envolvendo-se numa aura enigmática que lhes confere uma notoriedade só comparável à das divas do cinema dos anos 50.

Pioneira, neste novo quadro do “ fashion star system ”, terá sido Isabella Rossellini, nascida no elitista e inquieto universo do cinema, filha de Ingrid Bergman e Roberto Rossellini, também ela actriz, que aos 28 anos começa uma carreira de manequim, encarnando a beleza e o ideal feminino dos Anos 80 e tornando-se na imagem prestígio, durante cerca de uma década, da multinacional de cosméticos Lancôme , que a dispensa diligente e rigorosamente no dia em que celebra 40 anos, com um ramo de rosas, logo da marca, e presente equívoco, veneno puro, para quem promoveu e fez vender litros e litros de “ Trésor ”, “ Poison ” mortal se de “ chez Dior ” se tratasse - porque nem a ela se lhe perdoa a inexorável barreira do tempo ou o implacável tabú dos 40, tempo inscrito mais no B.I. do que no corpo e no rosto, e que as razões do marketing não justificam pela Razão mas pelo preconceito da Tradição; Isabella que, dias antes, recebera um fax da irmã gémea Ingrid, arqueóloga de profissão, anónima investigadora de gabarito internacional, que face ao desconforto de legitimar científica e intelectualmente a opção profissional da irmã, e em cumplicidade de almas sintonizadas, lhe escreve: Isabella, “Cosmetique vient du grec Kosmos, qui signifie ordre de l'univers ..... Ordre en grec signifie également: ornement, embellissement.” (5). Os cosméticos, objecto de interesse e de trabalho de Isabella, são assim associados por Ingrid a um conceito de valor, o Cosmos.

Outra notável protagonista, ícone referencial do fashion star system da época, é Inès de la Fressange (6), herdeira directa da arredada monarquia francesa, educada entre os mais rígidos padrões de uma cultura conservadora e uma audaz irreverência, que a rebeldia da juventude dos seus pais cultivara em visitas a Lacan e a Duras e na procura de experiências algo boémias, algo libertinas, directamente inspiradas nas atitudes das personagens de Françoise Sagan; Inès, uma das primeiras manequins star da história da moda, amiga pessoal do não menos aristocrata alemão Karl Lagarfeld, director criativo substituto de Coco, é a primeira mulher morena a representar a imagem da casa Chanel, rompendo com a opção estética da própria Grabrielle em só requisitar manequins louras. Inès de la Fressange encarnará, ironicamente, a imagem/busto da République Française na comemoração dos seus 200 anos: reconhecimento ao nível oficial que lhe custará uma briga, ao abrigo dos direitos de imagem, com Karl Lagarfeld, o Kaiser da Maison Chanel, que assim vê o ícone de uma das mais carismáticas “ maison haute couture ” nas “mãos do Povo”, sendo, por outro lado, julgada pela opinião pública, que lembra e não lhe perdoa as raízes aristocráticas, considerando-a demasiado burguesa para servir de modelo a Marianne.

Já na geração seguinte, mas em identidade de postura e códigos, apresenta-se Stella Tennant, também ela herdeira de primeira linha da aristocracia inglesa no Poder, que após uma fase de rebeldia, assume com firmada personalidade e grande sobriedade o protagonismo das passerellles e, esporadicamente, faz lembrar o reinado de Inès de la Fressange “chez Chanel” ; opta para a cerimónia do seu casamento, com um fotógrafo de moda, longe das objectivas dos fotógrafos, por um vestido assinado Ungaro, personificando o espírito de um criador, intimista nos códigos estéticos e em valores como a independência criativa e a liberdade de gestão de uma empresa familiar, um dos últimos a ceder à globalização imposta pelos Impérios do Luxo, actualmente, nas mãos de uma ou duas fortunas como a de Domenico de Sole ou a de Bernard Arnault .

Nos Estados Unidos da América, assiste-se à rivalidade, claramente tradutora de padrões de beleza vigentes e díspares , entre o glamour grunge e a polémica androgenia esbelta, no limiar da anorexia, de Kate Moss e as formas generosas e atitude claramente feminina de Cindy Crawford, duelo de que se demarca a distante e distinta Jerry Hall.

Em contrapartida, as actrizes ou actores, artistas ou personalidades públicas protagonizam o guião de uma visibilidade mundana e mediatizada de Histórias da Moda, ou a saga do prestígio da imagem.

Por sua vez, quem veste o quê? Quem são os criadores responsáveis pela figura marcante, glamourosa e sedutora destas personalidades, e em que partilhas se tornam cúmplices, mesmo amigos íntimos? Hubert de Givenchy e Audrey Hepburn, Yves Saint-Laurent e Catherine Deneuve ou Loulou de la Falaise, Karl Lagarfeld e Carolina do Mónaco ou Carolle Bouquet, Girogio Armani e Claudia Cardinale ou Ornella Mutti, Alexander McQueen e Bjorg, Miúcia Prada e Sting, Jean-Paul-Gaultier e Madonna ou a Ministra da Cultura de França para o Festival de Cannes...

Depois, quem tem acesso a este ou aquele desfile, interdito a qualquer personalidade anónima, reservado a uma elite de entre as elites, os ditos Vips ou os reconhecidamente colunáveis? Para alguns outros, que não acedem, naturalmente, pela posição social ou pela beleza evidente, a regra é simples e centra-se no recurso a uma excentricidade ostensiva, arma infalível para garantir um lugar entre a “gente importante”. Na hierarquia das bancadas ou fileiras, o cosmopolita “sitting”, vigora esse código elementar de que quanto mais importante a personalidade é, mais em baixo se senta. Finalmente, quem encerra a título honorário o desfile de quem? A princesa de um faustoso e longínquo país árabe, ou já a Primeira-Dama de um aqui tão próximo..., talvez o ícone “ en vogue ”, que fará a primeira capa dos magazines “cor-de-rosa”, em tiragens que se desmultiplicam ao ritmo de um voyeurismo frívolo.

Assim, “ Com a categoria do espectáculo, os situacionistas anunciavam de algum modo esta generalização da sedução ” (7).

 
 

(1) Tradução livre de excerto do Prefácio de Yves de Saint-Laurent à obra de Maguelonne Toussaint-Samat, História técnica y moral del vestido, in Vol. 1, ed. Alianza Editorial, 1994, p.9.

(2) Marcel Proust, Écrits sur l'Art, ed. Flammarion, 1999, p. 42.

(3) Conceito base retirado da obra de Nicholas Coleridge , La Conspiracion de la Moda, ed.B, 1989.

(4) Guy Débord, La Société du Spectacle, ed. Gallimard, 1992.

(5) Isbella Rosselini, Quelque Chose de Moi, ed.Nil, 1999, p.149.

(6) A este propósito, e a jeito de memórias autobiográficas, ver Inès de la Fressange, Profession Manequin, conversations avec Marianne Mairesse, ed. Hachette, 2002.

(7) Guy Débord, La Société du Spectacle, ed. Gallimard, 1992.

 









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