A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

Da metafísica do fluxo
à treva luminosa:
Eckhart e a tirania da imagem (4)

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

CADERNOS DO ISTA, 15

Analogia
 

Não faltam críticos que vêm na analogia a chave do ensino do Mestre. A verdade é que o próprio Eckhart retoma esta teoria por exemplo na Segunda lição sobre o Eclesiástico, n. 53, e ao longo do processo de Colónia. A analogia permite pensar a ideia de proporção e de relação. Na analogia de atribuição extrínseca alguns nomes que convêm a Deus, dizem-se da criatura de uma maneira extrínseca. Na analogia de proporcionalidade (24), alguns nomes que convêm à criatura dizem-se de Deus de uma maneira proporcional a Deus.

A questão é saber em que sentido atribuímos a Deus e à criatura os mesmos nomes. Há duas respostas extremas: ou aplicamos os mesmos nomes a Deus e à criatura em sentidos completamente diferentes; estes nomes são então equívocos. Ou então aplicamos-lhes os mesmos nomes com o mesmo sentido, de modo que afirmamos não apenas a comunidade dos nomes, mas ainda a comunidade das naturezas; os nomes, nestas condições, são unívocos. Soluções dificilmente sustentáveis, a primeira implica a heterogeneidade radical de Deus e do mundo, torna incompreensível a sua relação de causa e efeito - como é que um mundo sem nada de comum com Deus procederia dele? - e a segunda descamba na homogeneidade absoluta de Deus e do mundo.

O Mestre prefere uma terceira via, que conserva todavia algo das duas. Na Exposição acerca do Exodo, a partir do n. 37, cita Maimónides que critica os enunciados afirmativos a propósito de Deus. Dos cinco modos de predicação que distingue, o pensador judeu só admite um no caso de Deus, aquele que incide sobre as obras do sujeito. Qualquer nome positivo acerca da essência de Deus é impróprio, mesmo se designa para nós uma perfeição. Eckhart aprova esta prudência e cita Mt 6, 7: "Quando rezardes não multipliqueis as palavras". Se não podemos dizer quem é Deus, podemos dizer o que ele não é. Mas logo observa que a privação pressupõe a possessão e que a negação se funda na afirmação. Se negamos de Deus uma imperfeição qualquer, é porque há algo em Deus que exclui esta imperfeição (25). Se é verdade que Deus e a criatura são incomparáveis, todavia há uma relação entre eles, a relação de criação: o ser da criatura procede do de Deus. A equivocidade não é portanto a última palavra. E se a univocidade está excluída entre o criador e a criatura, é a analogia que nos fará compreender a natureza do ser criado relativamente ao ser divino. Eckhart refere-se a S. Tomás, mas propõe um outro ensinamento. Peguemos na Lição sobre o Eclesiástico: aí está a solução eckhartiana (n. 52).

Quando empregamos uma palavra num sentido equívoco, trata-se de coisas diferentes; que no caso dum nome unívoco se trata de uma coisa considerada nas suas diversas espécies; que no caso dum nome análogo se trata duma só e mesma coisa encarada de modos diferentes. Na equivocidade, o nome não traz nenhuma significação comum, enquanto na univocidade e na analogia, o nome significa a mesma coisa, mas aqui sob diferentes modos e em diferentes espécies. Exemplo: "A única e mesma saúde que está no animal é ela e não uma outra que está no regime e na urina, de tal modo que não há absolutamente nada da saúde enquanto saúde no regime e na urina, como não há na pedra; mas diz-se que a urina é sã pela única razão que ela significa a saúde que está no animal, a mesma em número, como o círculo, que nele nada tem do vinho, significa o vinho." Aplica-se a saúde enquanto saúde, formalmente, ao animal apenas. Ao regime e à urina atribui-se a saúde ou o sinal em relação à saúde do animal, são sãos sob o modo da causa ou do signo. O regime e a urina não são sãos e não são nomeados como tal por uma saúde que lhes seria inerente, mas pela saúde do animal, exterior a eles, a que se reportam enquanto causa ou signo da saúde. O bebedor não encontra no círculo senão o signo do vinho, antes de entrar na taberna onde o encontrará. Deus é como a saúde e o vinho e a criatura como a urina e o círculo. O que se diz de Deus diz de também de nós, de certo modo, o do signo.

Esta é uma tese diferente a de S. Tomás no De veritate, q. 21, ª 4. quando pergunta se todas as coisas são boas pela bondade primeira. Tomás responde que as criaturas são boas em virtude duma bondade intrínseca e exprime as relações de Deus e da criatura em termos da analogia de proporcionalidade própria. O que não o impede de utilizar a analogia de atribuição extrínseca para significar a dependência das criatura em relação a Deus. Eckhart só conhece a analogia de atribuição extrínseca. É uma posição que parece favorecer a univocidade e a equivocidade, como lhe retorque, entre outros, Galvano della Volpe que o acusa de acosmismo ou ainda de niilismo ontológico, e por isto: a analogia de atribuição extrínseca implica a negação do ser próprio das criaturas. Mas tal interpretação estaria em contradição com o essencial do ensino do Mestre. Como qualquer causa, Deus produz o seu efeito fora de si (extra factum); como qualquer causa transcendente, produz um efeito que cai longe de si. A criatura tem um ser mas imperfeito, o ser ab alio e não o ser a se. A criatura como signo de Deus não se limita a indicar Deus: ela revela algo dele. Para ser o signo da saúde, a urina deve ser constituída desta ou daquela maneira; a urina é o signo natural da saúde, e como tal, é a sua imagem.

O mesmo para o exemplo do círculo como signo do vinho: se o círculo é o círculo do tonel, a sua relação com o vinho não é efeito duma pura convenção. É comum ao tonel e ao círculo, como a saúde é comum ao animal e à urina. Claro que a analogia de atribuição extrínseca não basta para exprimir a totalidade do pensamento de Eckhart: a criatura tem um ser e perfeições que lhe são próprias. Quando o ser é tomado em sentido próprio, só de Deus se diz e a criatura mantém com ele uma relação extrínseca: quando o ser é o da criatura, diz-se dela por denominação intrínseca. "Todas as coisas são ou são boas pelo ser e pela bondade de Deus" e "todas as coisas são ou são boas por um ser ou uma bondade intrínsecas". S. Tomás sustenta estas duas proposições segundo intenções diferentes. Porque não adopta então a analogia de proporcionalidade? a analogia de proporcionalidade convém a um pensamento que se eleva a Deus a partir do mundo. Proporciona ao Deus desconhecido o ser, a bondade, etc., que nós conhecemos aqui em baixo. A analogia de atribuição extrínseca convém a um pensamento que quer perder o mundo para atingir o ser absoluto através do qual o mundo existe. Mestre Eckhart encontra aqui o instrumento intelectual que exigia a sua disposição mística. Como admiravelmente escreve F. Brunner: "Sem negar o ser do criado considerado em si mesmo, a analogia de atribuição permite ao dominicano tiringiano situar o criado no seu nada original face ao criador e perceber, na noite da criatura, a luz de Deus, e a centelha da alma" (26)

 
 









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