A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

Da metafísica do fluxo
à treva luminosa:
Eckhart e a tirania da imagem (2)

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

CADERNOS DO ISTA, 15

Originalidade
 

Mestre Eckhart resume perfeitamente a fortuna do trabalho dos “intelectuais na Idade Média”. E porquê? Dêmos a palavra a Alain de Libera: “Porque ilustra a invenção medieval do racional, a novidade e a fecundidade das relações que podem entretecer a teologia e a filosofia, com a condição de serem repensadas. Porque confirma, no quadro da relação de determinados homens e mulheres, a existência dum projecto de vida total, de um desejo de ‘bem viver’, em que, fora da universidade, o ideal universitário tem uma parte iminente”5. Como Siger de Brabant, Eckhart é um sábio, um universitário - se dele se diz que é “mestre” é porque deve este título à Universidade de Paris.

A originalidade de Mestre Eckhart reside principalmente na reformulação e no enriquecimento metafórico dos ensino dos Padres da Igreja, bem como dos “mestres pagãos” da Antiguidade. “Se não houvesse nada de novo, nada haveria de antigo”. Em Eckhart a “originalidade” consiste em tornar a origem (origo) viva. “Tornar novo” não significa “tornar diferente” mas simplesmente “tornar vivo”, conforme às exigências do mestre de vida (Lebenmeister). O teólogo é ao mesmo tempo Lesemeister (mestre de leitura) e Lebemeister (mestre de vida). À teologia de S. Boaventura foi buscar a noção de “niilidade” bem como a teoria da humildade como dominação do criado; ao intelectualismo aristocrático dos filósofos a noção da magnanimidade como virtude do homem segundo o intelecto. O Turíngio foi sobretudo um “passador” de ideias em que se cruzam os nomes de todas as virtudes num nome que as resume a todas, “desapego” ou “despossessão” (abgescheidenheit). O pensamento de Eckhart oscila entre Agostinho e Denis. O nosso Mestre apoia-se em S. Agostinho para indicar que há dois tipos de conhecimento, um superior ao outro: “quando se conhece a criatura em si mesma, é um conhecimento vesperal, e então vemos a criatura através das imagens com múltiplas distinções; mas quando conhecemos as criaturas em Deus, este conhecimento chama-se e é um conhecimento ‘matutinal’ e então contemplamos a criatura sem qualquer distinção, desapropriada (desimaginada) de qualquer imagem e aliviada de qualquer semelhança no Um que é o próprio Deus” (6). Esta distinção vem associada às duas ocorrências do verbo entbilden sobre os dez que comporta o "Benedictus deus". É agostiniano também o tema da re-formação do homem na "conformidade com Cristo" atingida pelo regresso da alma a si própria, o regressus animae, a dobra sobre a interioridade verdadeira, o "homem interior", a Verdade, o Verbo. É agostiniana também a ideia que concerne os sete graus do homem nobre. Por outro lado, a “Entbildung” corresponde à noção dionisiana de aphairesis, a prática da "negação abstractiva", da ultrapassagem das imagens e dos pensamentos, fazendo sair o homem de si próprio (é o tema do "êxtase") para deixar Deus entrar nele.

Encontramos este tópico em várias passagens do Livro da consolação divina e do Sermão sobre o homem nobre que a comissão de Colónia pôs em causa. E em causa estará sempre um certo emanatismo bebido em Avicena, mesmo se O Mestre transpõe o filosofema que se aplica ao domínio da natureza para o da graça (7). O que hoje se retém de Mestre Eckhart é fundamentalmente isto que Alain de Libera resume: "Conceber que, debaixo de doutrinas tão diferentes se esconde uma mesma verdade - a unidade da alma e de Deus no "único Um" que precede qualquer diferenciação entre Deus e a alma, e na própria alma, entre o fundo da alma e as suas potências -, tal é a intuição que governa o trabalho filosófico e teológico de Eckhart: uma intuição que ele repete sem se cansar a seus auditores alemães, "os grandes mestres de Paris não a compreenderam" (8).

 









ISTA
CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO
R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 - 1500-359 LISBOA
CONTACTO: jam@triplov.com