A VERDADE EM PROCESSO


 

A CIÊNCIA E A VERDADE:
Elogio da mentira (2)


Maria Estela Guedes
TriploV. APE. CICTSUL

 

Verdadeiro é o que existe realmente.
Platão, O Sofista


Estratégias

Reduzida à humildade a minha anterior arrogância, pude formular a lei de comportamento a seguir com os naturalistas: nunca subestimes o adversário, pois ele sabe o que faz, quem não sabe és tu. E com isto passou a ser crucial, sempre que preparava uma publicação, estabelecer-lhe uma estratégia. Como um general, oriento o discurso segundo a táctica da cruz ou do triângulo, de maneira a atacar, defendendo-me ao mesmo tempo dos inimigos. Um trabalho de exposição dos erros da ciência, ainda por cima erros voluntários, não é isento de perigos. O que eu tenho feito é denunciar uma conspiração, e isso, quer eu queira quer não, equivale a um ataque à fortaleza científica, ou pelo menos a uma das suas alas, a fundamentalista.

Fundamentalismo científico é aquele que distingue entre natural e artificial, só valoriza o natural, isto é, as espécies cuja origem atribui ao acaso, e desvaloriza o artificial, entendendo por artificiais as espécies cuja origem se deve à selecção humana. Como se nota, o fundamentalismo de que falo não é aquele que toma as espécies como criações divinas, pois Deus nem sequer é levado em conta nesta hipótese. Hoje em dia, a ciência é laica, e, tanto quanto sei, a élite intelectual católica adoptou o ponto de vista laico da ciência, remetendo textos como o Génesis para a esfera da ficção. Só algumas minorias católicas e cristãs não católicas acreditam na origem extraterrestre das espécies ou de algumas raças humanas, nem todas. Ora o que há de comum nas crenças na origem devida ao acaso, a Deus e aos extraterrestres, é justamente o facto de todas serem crenças. Isto é, aquilo em que acreditam não é testável. Já é testável o que decorre da intervenção humana, e é neste campo que se insere o meu trabalho. A ciência fundamentalista convenciona que as espécies evoluiram à margem de qualquer interferência humana, e não admite a possibilidade de que os próprios cientistas tenham provocado alterações nelas.

A espécie é uma população cujos indivíduos têm caracteres razoavelmente fixos. Por contraste, essa manutenção de caracteres, nas raças, só é possível desde que controlada pelo homem. Se ele não controlar o processo, na descendência de cruzamentos, os indivíduos são todos diferentes. Vamos supor: uns lagartos de escamas verdes, com três dedos nas patas anteriores e quatro nas posteriores. Os fundamentalistas apanham no campo animais parecidos, mas com quatro dedos nos membros anteriores, e depois apanham outros com riscas vermelhas no pescoço quando antes não tinham, etc., e classificam cada indivíduo diferente do modelo, ou tipo, como espécie nova para a ciência. Nos textos dos conspiradores, os nomes dessa espécie apresentam os caracteres tipográficos alterados, mas os fundamentalistas até emendaram os erros nas citações, convencidos de que os colegas, coitados, eram um bocado tontos, e além disso não sabiam latim.

Qual é agora o drama dos fundamentalistas? Para já, foram enganados, pois a variabilidade dos caracteres é própria dos híbridos, e estes não são espécies, sim raças. As espécies novas para a ciência que tinham descrito arriscam-se a ser apenas um animal num frasco, não existe na natureza nenhuma população de animais parecidos com aquele. Por isso não querem que o caso se saiba, apesar de ser público.

Qual a gravidade do engano? Temos aqui dois problemas distintos: um é o de os conspiradores terem introduzido espécies ou alterado os seus caracteres. O segundo é o das consequências para os enganados: um trabalho realizado de acordo com o conceito de espécie originada pelo acaso, tomando como objecto de estudo animais ou plantas transformados pelo homem, é algo comparável a publicar um ensaio sobre um manuscrito encontrado no baú de Fernando Pessoa, interpretá-lo à luz da biografia do poeta, para depois se descobrir que o manuscrito é uma tradução de Fernando Pessoa de uma obra do Marquês de Sade.

Um trabalho que considerasse fruto de selecção natural os cães, mesmo puros S. Bernardo, seria ridículo. Os evolucionistas trabalham com o conceito de espécie, os conspiradores, alguns, pelo menos, com o conceito de raça. Ora quem trabalha com as raças são as ciências aplicadas, práticas: agronomia, piscicultura, silvicultura, pecuária, etc.. Estas são as ciências que fornecem técnicas para introduzir espécies e alterar os seus caracteres, cruzando-as e seleccionando indivíduos. Tudo o que comemos é desde sempre fruto de acção humana. Gosto muito de referir que o mais antigo texto que conheço sobre a selecção artificial é o que conta a história da arca de Noé.

Diz Câmara (1) que é a noção de pureza, na raça, que norteia a selecção e o melhoramento. A raça é a unidade taxonómica de maior valor na pecuária. No entanto ela é impossível de definir em termos de sistemática, porque, diz ele, "esse agrupamento de indivíduos não corresponde a nenhuma realidade biológica e é apenas um produto convencional dos Homens". Isto é, os cães, as vacas, as ovelhas, as abelhas melíferas, as flores de jardim, a hortaliça, etc., constituem agrupamentos impossíveis de classificar até como raças, porque não existiram nunca na natureza, só têm existência na cultura. Mais problemático então é classificá-los como espécies, pois a espécie é o que se convenciona ser natural, aquilo que nunca sofreu acção do homem. Os conspiradores, ao gralharem a nomenclatura de certas espécies, estão a dizer que elas são raças: não passam de agrupamentos de indivíduos que não correspondem a nenhuma realidade biológica, não existem na natureza. Não existindo, então são falsas, de acordo com o princípio platónico de que só é verdadeiro o que existe realmente.

Já agora, porque eu critico os prémios literários, e já comparei a classificação dos géneros em literatura com a classificação lineana, cito Câmara de novo: “o júri de classificação, num concurso pecuário, só pelo facto de conferir prémios, pode modificar profundamente a constituição genética das raças". Não é o prémio em si que modifica, sim o facto de os interessados nos prémios seleccionarem depois nos animais apenas os caracteres desejados: olhos cada vez mais azuis, pele cada vez mais branca e cabelos louros de uma tonalidade X.

E como se selecciona e apura? É muito simples: se queremos uma raça só de animais louros, pele branca e olhos azuis, matamos na primeira geração todos os que nasçam com pele escura e olhos castanhos, para que não possam transmitir à descendência esses caracteres desagradáveis. Só deixamos que se reproduzam animais de olhos azuis e pelagem amarela, para que transmitam esses genes à descendência. Na segunda geração, eliminamos os animais com olhos azuis esverdeados e cabelos louros arruivados. E assim sucessivamente, até conseguirmos um agrupamento de indivíduos com os tais caracteres susceptíveis de ganharem o Prémio Mundial da Pecuária.

As técnicas de selecção e apuramento dependem do modo como se reproduzem os animais e as plantas. António Sérgio Pessoa diz que a inseminação artificial permite obter híbridos de animais que não se cruzam naturalmente. Relativamente aos galináceos (2), divulga vários métodos. Para obter esperma, mata-se ou castra-se a ave e espremem-se os canais seminíferos para um recipiente apropriado. Pela técnica japonesa, coloca-se um espermo-receptor na cloaca da fêmea. Pela americana, massaja-se o abdómen do macho e recolhe-se o esperma. Uma vez conseguido o sémen, ou se introduz no ovo, depois de posto, ou então fecunda-se a galinha com uma seringa, antes da postura.

Voltando agora aos meus inimigos: quem são eles? Os que andaram para aí a inseminar artificialmente os textos com gralhas? Ou as suas vítimas?

Por extraordinário que pareça, os conspiradores, com o seu código secreto, a que chamei língua das gralhas , por o procedimento ser idêntido à língua das aves dos alquimistas, estiveram sempre do meu lado, embora eu não soubesse. E eu estou do lado deles, agora, pelo menos, visto que a estratégia adoptada para esta conferência foi a de elogiar a mentira. Como se vai notando, não é assim tão fácil absolver ou condenar, e resta saber ainda quem peca mais nesta história: os que usam as gralhas para dizer a verdade, ou os que emendam para as encobrir? Os que transformam as espécies, ou os que nos querem convencer de que elas estão hoje tão virgens de relações com os homens como antes do aparecimento de Adão e Eva no Paraíso?

Eu jamais me atreveria a considerar natural nenhuma espécie, tendo conhecimento dos transportes e aclimatações que se verificaram por todo o mundo, na sequência das colonizações europeias. Do que já se passava antes delas em regiões como a China e o Japão, não falo, porque não sei. Mas nem é preciso lembrar as árvores Bonsai. Quase todas as raças de animais e plantas úteis são anteriores aos Descobrimentos. D. Dinis é conhecido como O Agricultor . Uma das espécies que mandou vir das regiões nórdicas foi o pinheiro. Desde sempre o homem seleccionou e apurou raças. Nada disto é segredo para ninguém, todos sabem que há repovoamento periódico de trutas, de perdizes, selecção de ostras para darem pérolas de cultura, etc.. Estas operações têm regras, e uma delas é o segredo, para ninguém apanhar antes de tempo o que ainda não constitui população. O “Crescei e multiplicai-vos” pode levar muitos anos.

Ora, uma vez que as gralhas crocitam o segredo, é porque ele não é total. Se fosse, eu não o teria descoberto. Se os erros incidissem em assuntos muito especializados, eu, que sou de letras e não de ciências, nem sequer teria dado conta deles. Há aqui uma questão de timing : encobrem-se factos durante certo tempo, mas ao fim dele é preciso que sejam revelados. Tanto assim é que um dos conspiradores já se entregou ao TriploV (www.triplov.com), o site onde travo uma verdadeira batalha para apurar a verdade da mentira.

No TriploV estão publicados inúmeros textos sobre esta matéria e alguns que constituem o corpus (3). A minha mais recente estratégia foi a de pôr em campo uma colaboradora, Miss Pimb, estudante no Colégio de Pimbal. A professora de Português de Miss Pimb, a sotôra Malvácea, costuma dar-lhe textos científicos gralhados para comentar. Já lhe calhou em sorte um extracto de Júlio Henriques (4), em que este professor da Universidade de Coimbra aconselha a usar o psicómetro nos estudos de meteorologia em São Tomé. Meteorologia e não mentirologia. Miss Pimb também deu grande ajuda ao desvendar o mistério dos boletins em branco publicados nos Arquivos do Museu Bocage , em vez do resultado das observações antropológicas aos pretos exibidos na Exposição do Mundo Português – Lisboa, 1940 (5).

É caso para fazer agora o meu quarto elogio à mentira: ao publicar em branco boletins que deviam ser em preto, a ciência manifestou o seu repúdio pelo apuramento de uma raça superior entre os homens, revelando com isso um pendor humanitário, anti-racista. Nessa época, anos quarenta, em que na Alemanha se praticava a antropotecnia, seleccionando os cabelos louros, a pele branca e os olhos azuis como únicos caracteres dignos de serem transmitidos hereditariamente, foi um gesto arriscado a publicação desses boletins sem pretos.

No volume em questão dos mencionados Arquivos , o 13, também se publica o catálogo dos animais expostos no grandioso evento nacionalista que foi a Exposição do Mundo Português (6). Ora nenhuma espécie exibida era lusitanica , e nenhum cientista português foi homenageado com a apresentação de espécies de sua autoria. Realmente, e além de outras gralhas, só se apresentou aquilo que não tem valor para a ciência, as espécies vulgaris de Lineu. Diga-se que o director da parte colonial da Exposição do Mundo Português era Henrique Galvão, que um tal atentado terrorista só foi possível com a cumplicidade da comunidade científica, e ficamos a saber qual o teor do meu quinto elogio da mentira: ela é democrática, cosmopolita, repudiou no caso o nacionalismo salazarista.

Dizia eu que um dos conspiradores se tinha entregue. Sim, mas não se confessou, provavelmente por eu não ter as ordens. Refiro-me ao Prof. Gallopim de Carvalho, cujo nome aparece nas publicações ora como o conhecem, ora com duplo “l”, e em cujos textos tem alterado voluntariamente a ortografia da nomenclatura científica. Foram estes textos, gralhados de forma espectacular, que o Prof. Galopim entregou para reedição no TriploV, aceitando que o espalhafato dos erros fosse transcrito, sem erratas nem emendas, tal como na publicação original. Algumas gralhas vêm num opúsculo recente sobre o geomonumento da Rua Sampaio Bruno, em Lisboa (7).

Eis pois o meu sexto elogio da mentira: quem mente não é o nosso pior inimigo, temei, sim, os que emendam as gralhas sem dizer água vai, pois esses são apenas presunçosos. Os que mentem, além de exprimirem a verdade através da mentira, fazem-no até cheios de graça.

No Convento de São Domingos, aproveitando a vossa protecção, já apresentei um trabalho cuja estratégia foi a de acusar a ciência de fraude, e a Igreja de cumplicidade, na pessoa de padres e missionários naturalistas (8). Aliás, não é só cumplicidade, é actividade subversiva normal do naturalista, seja ele Padre Duparquet ou um missionário espanhol de Fernando Pó.

Neste ponto já devem ter notado que a subversão produz efeitos diversos: se as gralhas geográficas e nomenclaturais identificam espécies introduzidas e hibridadas, já os boletins em branco relativos à Exposição do Mundo Português resultam em agressão política. Por isso, se os resultados são esses, deduzo que correspondam às intenções. O único elemento comum nos textos gralhados é o código. Estas pessoas dispõem de um meio de comunicação clandestina, mas usam-no nas circunstâncias mais variadas e para fins que nem sempre descortino. Porém, dada a antiguidade dos procedimentos e o facto de o código ser idêntico à língua das aves dos alquimistas, até na presença frequente de marcas maçónicas nos textos, julgo que, na origem, a língua das gralhas tenha sido adoptada pela ciência para ludibriar a Inquisição.

Voltando à estratégia, por vezes adopto a de me rir, porque as gralhas são elementos de uma paródia colectiva. Já usurpei o papel dos padres fazendo sermões, o do Ministério da Defesa denunciando actos de guerra (9), já critiquei a gente das Letras, e em especial semiólogos com quem desenvolvo projectos sobre o naturalismo, por não disporem de instrumentos analíticos capazes de me darem alguma ajuda. Daí o meu sétimo elogio da mentira: a de ser tão original que, durando há séculos, ainda só mereceu denúncia da minha parte, quando qualquer Umberto Eco certamente elaboraria sobre ela uma teoria magistral.

Como estratégia, também já solicitei à ciência um esclarecimento público, para os leitores saberem que têm de estar alerta, de modo a não continuarem a ser enganados, até porque os erros não existem só no texto científico. Um dos seus grandes baluartes é uma obra de consulta geral, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Como se nota, este problema é mundial, não se cinge ao nosso país.

De modo geral, a minha atitude é de provocação, a ver se alguém reage de forma a revelar a verdade, mas receio que tenhamos de nos contentar só com algumas poucas verdades.



Notas

(1) CÂMARA, A. & J. Pulido Garcia (1942) - O conceito de raça em Zootecnia. Actas do I Congresso Nacional de Ciências Naturais, Lisboa, 1941, Livro III. Boletim da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, XIII, Suplemento III: 816-821.

(2) PESSOA, António Sérgio (1942) - Breves considerações àcêrca da inseminação artificial nos Galináceos. Actas do I Congresso Nacional de Ciências Naturais, Lisboa, 1941, Livro III. Boletim da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, XIII, Suplemento III: 861-865.

(3) Seria muito longa a bibliografia relativa a todos os casos mencionados nesta conferência, por isso remeto os leitores para o meu site “As Gralhas”, em http://triplov.com , ou para as orphan webpages “As Gralhas”, em http://gralhas0.tripod.com/ ; “Hybris”, em http://hybris.no.sapo.pt ; e “Francisco Newton”, em : http://geocities.yahoo.com.br/francisconewton/ . Citados em 2004.

(4) HENRIQUES, J. (1917) - A ilha de S. Tomé sob o ponto de vista histórico-natural e agrícola. Bolm Soc. Broteriana, 27.

(5) RICARDO JORGE, A. & BARBOSA SUEIRO, M.B. (1942) - Registo somatológico e somatométrico adoptado pelo Museu Bocage no estudo dos indígenas do Ultramar (Exposição do Mundo Português - Lisboa, 1940). Arquivos do Museu Bocage, XIII.

(6) RICARDO JORGE, A. & BARBOSA SUEIRO, M.B. (1942) - A Sala do Museu Bocage na Exposição do Mundo Português - Lisboa, 1940. Arquivos do Museu Bocage, XIII. Artigo de Maria Estela Guedes em linha no TriploV sobre a Sala do Museu Bocage na Exposição do Mundo Português .

(7) Em http://triplov.com/galopim/bryozoa

(8) GUEDES, Maria Estela (2003) - Deus não é descartável. Atalaia-Intermundos, Revista do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, 8-9, s/d (2003). Em linha no TriploV.

(9) GUEDES, Maria Estela (2000) - A ciência como arma de guerra. Asclepio, Vol. LII (1). Madrid, 2000.  

INFORMAÇÕES
Local:
Convento de S. Domingos
Rua João de Freitas branco n.º 12
(antiga Rua dos Soeiros)
1500-359 Lisboa

Horário das Conferências:
(CCD - Conv. de S. Domingos)
5ª feira – 18:30h – 20:00h
(Entrada livre)