MOISÉS MARTINS
O REGIME DISCURSIVO DA CRENÇA (2)

 

2. CRER É FAZER

 

A este primeiro andamento da minha reflexão, que associa o crer a um dizer, acrescento agora um segundo, assim entendido: o dizer em que radica todo o acto de crença supõe e visa necessariamente um fazer. É desta associação entre crer e fazer que eu passo a ocupar-me.

"Creio que virás". Ao fazer esta profissão de fé, o crente situa-se entre dois mundos, no lugar suspenso que separa aquilo que ele faz daquilo que o outro fará. E que é que ele faz? - podemos perguntar. Muito simplesmente, crê. E que é que o outro fará? Há-de vir - é tudo o que temos para responder.

Um dizer ocupa então este espaço de não coincidência entre o que falta e o que se espera venha a chegar. Mas este dizer supõe e visa sempre um fazer. É que se eu creio, comporto-me como um
crente. Quem crê em alguém, põe as mãos no fogo por ele. Quem não crê, livra-se de o fazer. A prática é assim a transparente objectividade de uma crença.

Pode dizer-se que o dizer se inscreve no fazer pela expectativa, e também pelas práticas, ou seja, tanto pela esperança, como pelos comportamentos, atitudes e condutas a que dá origem. Pela expectativa: eu digo que acredito em alguém, porque o outro me garante e me vale, embora esta garantia e este valimento sejam uma prática expectante - é essa a minha esperança. Pelas práticas: eu vou mesmo meter as mãos no fogo por alguém, eu sacrifico-me a esse ponto, prescindindo da minha auto-suficiência e autonomia, porque não tarda um outro virá e preencherá esta insuficiência do presente. Também esta é uma prática expectante -na vinda de um outro reside a minha esperança.

Dizia Charles Sanders Peirce (1993: 398) que "a essência da crença é a criação de um hábito e que diferentes crenças se distinguem pelos diferentes modos de acção a que dão origem". Modos de acção, hábitos, quero dizer, práticas (comportamentos, atitudes e condutas) que são regulares e duráveis. A crença cria práticas regulares e duráveis, porque é um compromisso de relação, é uma aliança social, é uma prática contratual.

Quando me pergunto, será que ainda acredito nisto, no céu, no inferno, no purgatório, no limbo, constituo a crença como um objecto intelectual independente do acto que a confirma como relação, como aliança, como compromisso. Fazendo-o, deserto do campo da crença. Com efeito, ao dissociar a crença da relação, do compromisso, da aliança, isolando-a, fixo-a num mero enunciado (no caso, um enunciado declarativo interrogativo), fixo-a num dizer. Sem compromisso relacional, a crença deixa de ser crença: é um dizer que nada faz.

A nossa modernidade, nascida da vitória do verdadeiro conhecimento sobre o falso, do conhecimento científico sobre as superstições, concorreu decisivamente para o isolamento do dizer, embora esta separação seja apanágio clássico do farisaismo. Com a modernidade, no entanto, o dizer não pára de desertar de fazer.

Penso que esta deserção aconteceu pela dissociação das próprias práticas em duas metades: uma nobre e uma outra degradante. Digo degradante, porque constitui um real perigo de contaminação para a primeira. Refiro-me, por um lado, às práticas que se identificam com as expectativas mútuas, e que hoje são dadas como um vestígio do passado que compromete o presente. E penso, por outro lado, nas práticas dotadas da operatividade, que se constituem como objecto de uma racionalização técnica. Visando a eficácia, esta última metade das práticas pôr-se-ia a salvo da contaminação entrópica, pelo isolamento que se impõe de tudo o que não é tecno-instrumental.

Distribuem-se então as práticas por dois blocos incompatíveis. De um lado ficam as "crenças", assim chamadas porque já não acreditamos nelas, já não as vemos funcionar como alianças sociais.

Do outro lado, ficam as condutas objectivas, sejam elas médicas, comerciais, industriais, judiciais, educativas ou culinárias, que têm o estatuto de técnicas e se justifica serem tratadas como séries de gestos relativos a operações de fabricação. É pois um facto que o dizer desertou do fazer e se isolou, embora de modo algum possa ser isolado. É o que procurarei demonstrar no terceiro e último andamento da minha reflexão.

 

3. O CRER COMO "ACTO COMPLETO DO DISCURSO "

 

Passo a analisar quatro enunciados, que me parecem esclarecer bem esta necessária interligação do dizer e do fazer no acto do crer. Os dois primeiros enunciados são referidos por Michel de Certeau num texto de 1981, intitulado "Croire: une pratique de Ia différence", texto esse que me inspirou aliás noutros passos desta reflexão. O terceiro enunciado é-nos transmitido pela tradição bíblica neotestamentária. O último remete para o nosso quotidiano.

De Certeau (1981: 7) atribui a Benedetto Croce o seguinte enunciado sobre o mau olhado: "É falso, mas acredito nele". E atribui a Madame Du Deffant (que viveu no fim do séc. XVIII) o enunciado seguinte: "Não acredito em fantasmas, mas tenho medo deles". O  terceiro enunciado inspira-se na atitude reservada de S. Tomé, diante da notícia da ressurreição de Cristo: "ver para crer". O último enunciado é um conhecido aforismo sobre as bruxas: "Não acredito em bruxas, mas lá que elas existem, disso não tenho dúvidas" .

Comecemos pelo primeiro enunciado: "É falso que haja mau olhado, mas eu acredito nele" .Do que aqui se trata é de uma crença exilada do saber científico. O saber científico é que fala em termos de enunciados verdadeiros e de enunciados falsos. A hipótese do mau olhado não resiste à prova, pelo que é falso o enunciado que postula a sua existência. "Mas eu acredito nele". A crença, já o dissemos, articula um dizer e um fazer, ou por outra, a crença é um dizer que gera um conjunto de hábitos, um conjunto de práticas regulares e duráveis.

No entanto, a crença de que aqui se fala é muito modesta, porque "o mau olhado" é um parente pobre, um parente deserdado do sistema oficial de crédito, é uma relíquia de uma cosmologia passada, uma sobrevivência, um vestígio. Pouco importa, todavia, o anacronismo e também a heterodoxia cultural, a confiança feita no mau olhado permanece indissociável das coisas a não fazer: não se entra em campo com o pé esquerdo, dá azar entrar ou sair do campo, assim como chutar à baliza, mesmo que para fora, sem se benzer e sem beijar um dedo da mão.

Permanece também indissociável das precauções a tomar não esquecer os amuletos, por exemplo. Segundo enunciado: "Não creio em fantasmas, mas tenho medo deles". É claro que as acções que o meu medo me proíbe de fazer, indicam aquilo em que ainda creio, diga eu o que disser, ou mesmo por muito que eu diga o contrário. E eu digo que não creio em fantasmas. Há de facto crença, uma vez que existe uma prática, ainda que ela seja inferida de um sentimento, o medo. Se eu digo "não creio em fantasmas", digo-o porque no regime oficial de crédito que é o nosso, ou seja, no discurso "esclarecido" que é o nosso e que é suposto definir o acreditável, que o mesmo é dizer, o pensável, os vestígios de um crer clandestino e ilícito obrigam sempre a umas tantas práticas. No entanto, estas práticas excluídas de regime oficial de crédito, limitam a crença e bloqueiam-na diante dos fantasmas.

Terceiro enunciado: "Ver para crer, como S. Tomé". Dissemos na abertura desta reflexão que o acto de crer não coincidia com o acto de ver. O acto de ver unifica o presente de um modo totalizante, elimina o compasso de espera de um tempo diferido, em que toda a crença radica, e impõe-nos a coincidência imediata entre o dado e o recebido. A tradição cristã propõe-nos uma pedagogia da fé em que a figura de S. Tomé tem um carácter exemplar. Segundo a narrativa evangélica, este discípulo caiu na tentação de reduzir a crença a um saber feito de evidências: "Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma acreditarei" (João, 20,25). A crença assim entendida não se furta ao regime do mesmo e dos seus simulacros, não abre a nenhuma alteridade. Crer é, no entanto, obedecer, é retomar um dizer que não viu, mas que espera, um dizer que apenas conhece porque confia.

Daí que na narrativa evangélica S. Tomé acabe por fazer acto de obediência ("Meu Senhor e meu Deus" (João, 20,28), sem precisar de meter as mãos nas chagas de Cristo.

Finalmente o enunciado sobre as bruxas: "Não acredito em bruxas, mas lá que elas existem, disso não tenho dúvida". O regime oficial de crédito não admite a possibilidade de eu acreditar em bruxas. As bruxas são aqui também um parente pobre, um parente deserdado, enfim, a relíquia de uma cosmologia passada, uma sobrevivência, um vestígio. "Mas lá que elas existem, disso não tenho dúvida".

Existem, é verdade que existem. Este conhecimento não me é dado pela ciência. Aí, fazem-me saber que não há lugar para as bruxas que eu digo existirem. E no entanto, as bruxas existem, porque eu vejo que elas existem. Juntei os pauzinhos todos, e não me sobrou outra conclusão. Na nossa modernidade, ver e o saber andam associados. Eu sei que não há bruxas, porque no regime do olhar que é o meu, esclarecido e civilizado, não há lugar para elas. Mas eu que saí de casa pela manhã cedo e escorreguei logo ali nas escadas e caí e me aleijei seriamente, eu que me arrastei para o carro mas dei com a bateria em baixo e que saí disparado no carro da minha mulher, mas bati com ele logo na primeira rotunda, eu que deveria estar na Universidade às 10 horas porque tinha umas Provas académicas, cheguei apenas ao meio-dia, tendo as Provas sido adiadas, eu, nestas circunstâncias, só posso concluir que há bruxas.

E no entanto, não acredito nelas. Nada no meu comportamento e na minha conduta autoriza essa certeza. Não Ihes faço qualquer confiança, não movo uma palha por via delas, nada há de regular e de durável no meu comportamento que sustente uma conclusão nesse sentido. Amanhã, sairei de casa como sempre saí, confiante num bom dia de trabalho: espero não cair nas escadas e que a bateria do meu carro esteja em ordem, espero não ter qualquer azar na estrada e tudo leva a crer que as Provas académicas marcadas para as dez horas terão mesmo lugar à hora fixada.


Moisés de Lemos Martins
(Universidade do Minho)

 

BIBLIOGRAFIA


Bastide, Roger, 1935, Eléments de sociologie religieuse, Paris, Ed. Armand Colin.
Benveniste, Emile, 1969, Le vocabulaire des institutions indo-européennes, II - Pouvoir, droit, religion, Paris, Ed. Minuit.
Certeau, Michel, 1981, "Croire: une pratique de Ia différence", in Documents de travail et prépublications, n. 106, Urbino, Universitá di Urbino.
Eribon, Didier, 1991, Michel Foucault, Lisboa, Livros do Brasil.
Jacques, Francis, 1985, r:espace logique de I'interlocution, Paris, PUF.
Jacques, Francis, 1987, "De Ia signifiance", Revue de Métaphysique et de Morale, n.2.
Peirce, Charles Sanders, 1993 (1878), Como tomar as nossas ideias claras, Covilhã, Universidade da Beira Interior (tradução de António Fidalgo).
TOB (Traduction Oecuménique de Ia Bible), 1978, Nouveau Testament, Paris, Cerf (especificamente, João, cap. 1; ).
Vattimo, Gianni, 1998, Espérer croire, Paris, Seuil.

 


NOTAS


1 M. Foucault, cit. por Didier Eribon (1991: 45).
2 Sobre o primado da relação na construção do sentido, veja-se Francis Jacques (1985 e 1987).

 
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