CIÊNCIAS E CRENÇAS (4)
Ana Luísa Janeira

 

ÍDOLOS TOMBADOS

 

Entretanto, por diferenças entre objectos e métodos, o mundo científico e técnico passou a abrigar uma diversidade cada vez maior. Esta ausência de unidade e homogeneidade requer uma descrição e uma crítica interdisciplinar sobre lógicas intrínsecas e potencialidades extrínsecas, pois implica a urgência de as rever, quer pelo passado, quer pelo estatuto e instâncias de legitimação.

Por outras palavras, o universo teórico comporta problemáticas de fundo que implicam identidade epistemológica, responsabilidade ética e institucionalidade social.

Além disso, o trabalho em torno do impacto das ciências e técnicas/tecnologias implica uma reflexão sobre o modo como elas têm recebido, concretizado e transmitido determinados valores, de acordo com as circunstâncias materiais onde se constróem e os efeitos sociais que têm em vista, no decurso da sua evolução interna ou de mudanças para o exterior do seu universo teórico e experimental.


Aferir o progresso em termos exclusivamente económicos gera equívocos de bem-estar e efeitos de ilusão. Gera ainda mal-entendidos com as exigências da crença. Defender que cientistas e técnicos nada têm a ver com estas questões equivale a retirar-Ihes liberdade e responsabilidade. Por isso, precisamos de fazer opções reflectidas, pois só assim contribuiremos de modo decisivo para um desenvolvimento com qualidade de vida e de onde os valores não se ausentem. A pertinência desta forma de enquadramento, importante para o melhor conhecimento do presente, acentua problemáticas associadas a fins cognitivos e pragmáticos, interesses económicos e políticos, circunstâncias institucionais e grupais, com implicações no universo axiológico e ético.

Pede ainda que se integrem as várias expressões da produção no interior de estratégias responsáveis, montadas em prol das exigências de diálogo entre a comunidade científica e o público em geral, ou seja, maior participação e mais opções conscientes.

 

A TRAMA DO VER PARA CRER

 


Em Filosofia, importa conceptualizar as formas por que foram acontecendo relações diferentes quando se confrontam ciências e crenças. Para isso é preciso identificar as suas condições de existência, passadas e presentes. Ou seja, delimitar o modo de ser da instância perceptiva-cognitiva e modalidades respectivas; especificar a táctica operatória actuando no exercício do acreditar ou do conhecer; dilucidar as estratégias nos actos de fé e nas provas.

Caso particular da maneira como o devir psicológico e o processo histórico contrariam a mesmidade, as nossas ligações ao natural e ao sobrenatural não têm tido a mesma identidade e expressão, ao longo dos tempos, colectivos ou individuais. Com efeito, elas não só apresentaram, desde sempre, mudanças nos comportamentos e no agir, como também representaram vários ritmos de estar-no-mundo. A existência do universo teórico e experimental obriga a que lembrem as diferenças entre conhecimento empírico = percepção das aparências = universo dos fenómenos e conhecimento científico = construção conceptual = universo fenomenológico = factos científicos, bem como a distinção entre observação espontânea, observação dirigida e experimentação sistemática. Por sua vez, a existência do mundo das crenças exige que se questionem a falsidade destas identidades: crença = medo de saber = demissão do entendimento = fantasia?

Ao longo deste texto, atenderam-se a alguns prolegómenos quando se procuram as configurações vigentes no sistema epistémico moderno. Sendo ele a matriz, percebe-se melhor, agora, como somos tributários deste sistema, pelo que remanesce dele, nas possibilidades e limites que nos permitem e proibem de pensar ou crer.

Com efeito, os jogos em questão do entendimento, abordados no interior da dialéctica entre sujeito e objecto do conhecimento, são passíveis desta sequência: transmissão centrada sobre o(a) autor(idade) e o comentário; conhecimento dependendo da via perceptiva e de certo formalismo conceptual; inteligibilidade inserida num dispositivo teórico e numa estrutura lógico-matemática. Por outras palavras e sob uma perspectiva «gnosiológica» e «cronológica», os prolegómenos às epistemologias modernas encontram-se com estas figuras paradigmáticas: ouvir e ler, olhar e ver, observar e experimentar. Assim sendo, foi contra ou dentro destas figuras paradigmáticas, no todo ou em parte, que emergiram três tipos de relação entre ciência e crença: relação de disputa - modernidade, defesa da complementaridade - crise modernista, reconhecimento da dualidade - postmodernidade.

Seguidamente, indicam-se algumas afirmações que merecem ser reflectidas e, porque não?, levadas para o próximo milénio.

Ciências e crenças estabelecem entre si interrelações culturais, no meio de umas tantas formas de relativismo cultural. Apesar disso, convém distinguir: a figura da crença-fé está relacionada com a figura do ouvir-escutar; a figura da razão-ciência relaciona-se com as figuras do olhar-ver e observar-experimentar. Emergindo dentro de ordens diferentes, parece não se justificar a necessidade, e utilidade, de qualquer esforço de uniformidade entre figuras fundamentadas e autónomas. Por isso, a postmodernidade tende a consignar o estigma do saber, a imagem, num lado, e o estigma da sabedoria, a palavra, no outro.

A crença não é um medo de saber, demissão do entendimento, fantasia. Sem anular procuras e inseguranças, resulta de um conhecer partilhado no interior de uma comunidade reconhecida de
fieis, sua garante. A ciência não é só audácia, racionalidade, crítica. Apesar da parcialidade e da possibilidade de erro, ela faz crer por via de uma argumentação tendendo para a persuasão, seja através de demonstrações ou provas. Prova absoluta é impossível.

Radicalizadas monoliticamente, quer a ciência - cientismo -, quer a crença - fideísmo - representam mundos fechados que tendem para ideologias ou apologéticas.

Em cada época, há áreas determinadas em que (não) se pode pensar. Também por isso, não podemos conhecer tudo. A consciência dos limites do conhecimento não equivale a uma paralisia mental, devendo, quando bem orientada, servir como acicate para a inteligibilidade. Por isso, os sonhos que nos levarão para o século XXI vão passar pela consciência de que a parte como disciplina científica, o particular como especialidade profissional, a análise como atomicidade, a desharmonia como falta de qualidade, a viagem como excursão turística rodearam-nos de um mundo que só será diferente quando voltar a incluir a metamorfose de certos valores. Isso acontecerá, por certo, no contexto de utopias onde a identidade-desejo-necessário-essencial-diverso concorra para superar a massa-produto-supérfluo-secundário-uniforme.

Só assim reduziremos estas perdas: perda da analogia em favor da diferença, perda da harmonia em favor do domínio da natureza, perda da segurança ontológica em favor da instabilidade gnosiológica, perda do todo em favor da especialização absurda, perda do intocável em favor de tudo é possível, perda do fruto proibido em favor do acesso a tudo, perda do transcendente em favor do imanente, perda do limite, perda do próximo em favor do distante, perda do real em favor do virtual, perda de ser em favor do ter.



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