CIÊNCIAS E CRENÇAS (3)
Ana Luísa Janeira

 

A CIÊNCIA-ESPECTÁCULO

 


O conhecimento equivale a uma relação entre sujeito e objecto do conhecimento, mediados pelas formas a priori do espaço e do tempo, e pelas categorias do entendimento, a partir de Emmanuel Kant.

Na sequência de um processo onde a razão e a ciência procuraram desde sempre formas de optimização, os percursos englobantes do avanço científico e industrial criam condições e requerem meios para compreender o grau de maturação de certos discursos ou para legitimar a emergência de outros.

Com efeito, seja porque as ciências exactas e experimentais atingiam características de previsão e aplicabilidade, seja porque as ciências sociais e humanas já balbuciavam dificuldades de existência, o imperativo de as fundamentar assumiu formas novas e peculiares, desde o século XIX.


A circunstância geral era promissora de mais saber e poder no futuro. Todavia, os tempos comportavam sucessos e indecisões. Por um lado, adquiridos espectaculares e, por outro, complexidades cada vez maiores.

A globalização técnica - telégrafos, telefones, pontes, cabos submarinos, automóveis, aviões, cinema, fotografia - trazem para o género humano utopias optimizadas pelas Grandes Exposições:
Londres (1851,1862), Paris (1855,1867,1878,1889, 1900), Porto (1865), Viena (1873), Rladélfia (1876), Barcelona (1888), Chicago (1893), Bruxelas (1897).

Pense-se na Europa como núcleo dinamizador, acrescente-se-Ihe um continente americano que vai aderindo, juntem-se-Ihe as colónias olhadas como fornecedoras de matérias primas e mercados potenciais, salpique-se o conjunto de orientalismos transformados em moda. Temos, assim, os horizontes geográficos mais densos, por onde fervilham os gabinetes governamentais, as associações industriais com peso, as academias com maior dinamismo, os grupos intelectuais ou artísticos e as tertúlias mundanas que fazem as grandes exposições do século XIX.

Países, muitas vezes em guerra, procurando formas de união, reais ou ilusórias, para exorcizar os conflitos. Porque assim é, festejavam a Igualdade, Liberdade e Fraternidade (Paris 1889) ou a chegada de Colombo às Américas (Chicago 1893). Símbolos contraditórios, é bom lembrar, de aproximações históricas, nem por isso menos relevantes.

Capitais dimensionadas pela 2a revolução industrial, mantidas por urbanismos cheios de marcas tradicionais precisando de área para crescer. Razão, entre outras, porque os majestosos pavilhões, mesmo de encantar, sejam construídos nos limites de uma condenação quase imediata: a demolição ou o fogo. Elites enebrecidas pelas novidades que parecem sem termo, embora a grande maioria das gentes continue, no quotidiano, à margem das palmas efusivas das inaugurações. Daí que estes espaços mostrem à evidência como se podem montar, com grandiosidade, beleza e sucesso, as forças e fraquezas de um determinado esquema civilizacional. É bem verdade que estes eventos nascem de uma quantidade de conceitos fragilizados, passíveis de serem ligados a tantos outros, como fantasias efémeras, sonhos perecíveis, projectos megalómanos. Associações acontecendo com propriedade e rigor. Não obstante, passam por aqui, não se duvide, mostras efectivas do que de melhor se produziu em criatividade, à escala maior, entre 1851 e 1900. E também passam por aqui formas maiores do primado demagógico do ver.

Este mundo, repita-se, é uma circunstância global predominantemente europeia, com algumas saídas e entradas para o além-mar. A Europa está assombrada pelos adquiridos científicos e técnicos, na sua expressão industrial mais viva. Lado-a-lado, o engenho teórico-experimental, com os aparatos laboratoriais respectivos, sempre envolvidos por umas tantas engenharias. Lado-a-lado, sequências do sistema produtivo, no que ele tem de mais avançado, ou de produtos já acabados, espacializados segundo modelos classificativos, onde prevalece o objecto distribuído por grupos e sectores.

Por toda a parte, o estigma maciço das máquinas, com especial relevo nos pavilhões que as acolhem com estatuto de presença privilegiada. Por toda a parte, a mensagem da produção, identificada com o lucro, sem esquecer certas preocupações de ordem social.

Facto individualizado que possibilita uma visibilidade própria: o percurso expositivo está montado para que a energia produtiva, a nível do emissor, transmita um dinamismo propulsivo e optimista ao receptor.

Por isso, o público - elite financeira, turista intelectual, cooperação operária, visitante lúdico, etc. - completa a visita com uma sensação muito especial: ser homem é pertencer a uma comunidade geradora de futuro, destinada a progredir na redundância do êxito. A visibilidade do sucesso futuro já pertence ao presente.

Paradoxalmente, ou talvez não, a mística do trabalho em posição de destaque. Este modo como o racionalismo investe na ocupação do tempo, quando o domestica pela disciplina normativa de horários rígidos ou sirenes, retira das grandes exposições, também chamadas "festas do trabalho», momentos de culto com ritmos especiais. O culto constrói-se no interior de pavilhões = catedrais, com comissários reais/ imperiais = oficiantes, embelezados por espaços veneráveis = estéticas religiosas, numa sequência periódica = ritos entre trabalhos e dias.

Os regulamentos e relatórios, catálogos, notícias, recortes publicitários ou panfletos, que abundam em qualquer circunstância, exprimem a contextualidade dos eventos e suas repercussões. Junte-se ao demais belas-artes sobranceiras, artesanatos sofisticados, vidros requintados, ourivesarias e porcelanas, mobiliários sugestivos, e ter-se-á uma outra vertente - o mundo artístico e decorativo, o conforto e o belo útil, entre a tela imensa de Delacroix e a jóia art nouveau.

Neste particular, o mundo das formas veículado pelas grandes exposições mostra facetas buriladas pela criatividade mais sublime, enquanto que a sucessão dos estilos é interpretada, um tanto distorcidamente, como nota de progresso. Se os Palácios de Cristal cintilam por fora, entre superfícies de vidro e estruturas férreas, por dentro cintilam os resultados máximos a que chegou o género humano. Não admirará, por certo, que se lembre quanto esta situação não é inteiramente pacífica, pois foi merecendo posicionamentos diferentes, por parte do espírito crítico, ao longo dos anos. Na verdade e apesar da tendência contra só poder ser pensada nos limites impostos pelo sistema epistémico dominante, o espírito crítico do século XIX concretizou várias atitudes de
discordância e cepticismo face a estes espectáculos. Apesar de tudo, Charles Baudelaire não deixa de se interrogar.

Justificações de carácter económico, razões de Estado, polémicas urbanísticas, querelas artísticas, denúncias da classe operária, sempre acompanharam os projectos arquitectónicos, as inaugurações faustosas, as recepções das representações estrangeiras, com discursos mordazes: bailes, congressos, reuniões culturais, espectáculos foram motivo de chacota. Soam assobios e pateados por parte de muitos. A ponto de não haver exposição que não tivesse sido desrespeitada e achincalhada. No entanto, lá continuaram a ser planeadas e executadas, mesmo quando o país de acolhimento vivia uma grande crise, a paz mundial estava em perigo ou o bom-senso comprovava o seu contrasenso. Porquê?

Porque o capitalismo emergente percebia quanto tratavam a mercadoria multiplicável como um meio de onde poderia retirar dividendos; percebia igualmente como o cenário concertado e controlado, logo diferente da espontaneidade popular, evoca emoção nas multidões, melhor ainda quando têm o cenário de comemorações e centenários. Percebia, finalmente, porque se jogavam ali atributos adequados à especificidade da memória colectiva, sempre que ela se servia do passado para justificar historicamente as leis do mercado a que obrigava o presente.

Do interior são sistemas de pensamento, interesses financeiros, estádios sociais, discursos empolgados, um conjunto de coisas e palavras que acabam por actuar como condicionantes, ou modelos, intervindo por força de planos associados ao ideário positivista.

Deste ideário ressaltam orientações de princípio em torno do sempre invocado género humano. No abuso, a época expressa ou deturpa, com imensa frequência, a ideia alargada de próximo. No meio de tudo isto, Lagrange, Rousselot, Teilhard de Chardin entre muitos mais. Move-os a coerência e autenticidade de quem se mete na crise modernista e luta afincadamente para encontrar argumentos de peso, no sentido de coroar todo este optimismo com a coinciliação entre ciência e crença.



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