• NOTA SOBRE O USO DO NATURAL:
    OS MORALISTAS E O NOVO
    MATEUS CARDOSO PERES



..CADERNOS DO ISTA

Parece claro que a nossa charla (1) terá que ver com o natural, com moralistas e com o novo. Que significa este triângulo? Do programa em desdobrável destaco duas frases que projectam alguma luz sobre o enigma: «Estaremos diante de um regresso neurótico à autoridade «paterna», à crença na natureza que é boa enquanto «divina», contra as manipulações produzidas por uma ciência faustiana dominada pelo Maligno?…O velho sonho de Marx - que a humanidade deveria passar por fim da pré-história (do estado natural) à história - renasce diante do confronto que opõe a natureza à cultura. Não será este o tema da batalha que o século que termina nos deixa para que deliberemos?». O que se segue é uma tentativa de resposta a esta charada.

Na nossa instintiva luta pela sobrevivência, estamos sempre às voltas com as relações. Porque, se a morte é alheamento, isolamento, esquecimento, a vida é relação. Desde a planta que se alimenta de um solo, purifica a atmosfera, responde à luz, bebe das chuvas, espalha o seu pólen em redor, etc. até os animais que fazem tudo isto, de outra forma, é certo, mas que, deslocando-se, multiplicam e diversificam as relações muito para lá do que os vegetais alcançam, enquanto o animal dito racional transpõe ainda mais os limites, nem aceita pôr fronteiras à sua fome de conhecer e de usar, pretendendo alcançar, pela inteligência, pela memória, pela imaginação todo o universo. Ora, em todas as relações, particularmente nas humanas, é preciso ter em conta que há um aspecto de enfrentamento com o que é outro, diferente, desconhecido, inexperimentado. Com as coisas, com os seres humanos, connosco mesmos, com o tempo (ou, se preferirmos, com os acontecimentos), com o mistério das coisas, das pessoas e do tempo a que chamamos Deus.

Na minha última charla (2) aqui neste espaço, por sinal, tentei, a partir da agressividade das nossas sociedades, reflectir, na perspectiva de fé e na base das ciências humanas, sobre a relação com os outros seres humanos. Já ninguém se lembra, nem eu, mas fui ler e francamente achei que não perdi inteiramente o meu tempo. O ponto essencial desse pequeno ensaio consiste em reconhecer que a confrontação com o outro na sua diversidade, enquanto outro (uma confrontação que, nesta era da globalização, se torna totalmente inevitável) gera em nós o pânico, desperta a agressividade. E, no entanto, é precisamente pela abertura ao outro que o ser humano cresce para a sua própria humanidade, que o mundo se torna fraterno, que nos aproximamos daquele espaço de verdade a que chamamos felicidade. Mais exactamente: a alteridade do outro pode ser para mim ocasião, causa mesmo, de nascimento e vida como pode ser ameaça de morte, ameaça quantas vezes concretizada. E não só isso, mas deve-se também reconhecer que a confrontação só gera vida se for ocasião de morte, que só me torno adulto se consentir em deixar morrer a criança que sou, que só atinjo as minhas autênticas dimensões se deixar que me ponham em questão, nas minhas experiências, opiniões, hábitos, certezas, crenças.

Hoje situo-me no quadro temporal, perante a confrontação com esse outro que é o novo, o futuro. Mas, muito do que foi dito, naquele momento, tem, creio, ainda aplicação. Como vêem, agarro o título pelo fim: pelo novo. Do novo, com as suas incertezas e inseguranças. Deverei confrontar esse risco da novidade com os moralistas, ou mais exactamente, tentar mostrar como os moralistas, reagindo contra essa ameaça, valorizam excessivamente a natureza, o natural. O que me parece impor-nos como quadro da reflexão a dimensão temporal da nossa existência: vivemos numa história e somos uma história singular no quadro dessa história. Há assim como que duas dimensões: a colectiva, da humanidade e a pessoal, de cada um de nós. Aquilo que é me sugerido é a segunda, mas penso que, para lá chegar, é conveniente dizer algo sobre a primeira.

A fé dos cristãos traduz-se numa certa leitura da história como do mundo criado. Há um sentido para a criação, um significado que, em grande parte nos escapa, que só mal e parcelarmente conseguimos formular em palavras nossas, é certo, mas apesar disso, admitimos uma razão de ser de tudo o que é, uma estabilidade e segurança que faz com que o real permaneça o que é. Não é por acaso que aquilo que nós hoje chamamos ciência nasce no espaço cultural marcado pelas referências cristãs, com a sua recusa do absurdo e do caprichoso. Afirmamos também que há um sentido para os acontecimentos em sua sucessão, para a história, embora aqui sentido signifique mais direcção do que significado. Isto é, a fé leva a encarar a sucessão dos acontecimentos como tendo um princípio e um fim, como partindo de um ponto (criação) e convergindo para outro (parusia), no qual a razão de ser dos eventos se tornará finalmente evidente para alegria dos justos e glória de Deus. Também aqui nos situamos para lá da experiência, pois muito desta visão é releitura de fé e não projecta uma iluminação esclarecedora sobre os dramas e as vicissitudes da caminhada humana. É, pois, na obscuridade da fé que os cristãos persistem em afirmar que o mundo foi criado com sabedoria e, portanto, com propósito e objectivo, e que o Criador encaminha para um desenlace final, glorioso e consolador, para a felicidade e a comunhão com Ele, todos os seres e que esta acção –a providência - está misteriosamente presente e se exerce nos acontecimentos, na história. Se é difícil aceitar as leituras que fazem convergir para a exaltação do povo eleito, seja de Israel seja da Igreja, a marcha dos impérios, ainda mais difícil me parece negar, sem negar a própria fé ou a Palavra de Deus, que tudo, na sua fragilidade, na sua persistência vai em direcção a uma realização, que mal se adivinha no futuro. A essa luz, as trevas dos tempos intermediários, os dramas da nossa experiência poderão, e deverão, ser superados, justificados, negados.

A referência a um futuro não é apenas o contexto da vida humana: o ser humano é, além disso, como parte do real, como coroa da criação, atravessado por este apelo à Vida, à Plenitude, encontra-se marcado em profundidade pela busca de um futuro que supera o presente, o qual nas suas convulsões, conduz a história para o nascimento de um mundo novo, de «novos céus e nova terra». Não é essa a esperança expressa da geração apostólica, ou de parte dela, ao dizer: «penso que os sofrimentos do momento presente não se comparam com a glória futura que deverá ser revelada em nós…sabemos que toda a criação tem gemido e sofrido dores de parto até agora. E não somente ela, mas também nós, que possuímos as primícias do Espírito, gememos no íntimo, esperando adopção, a libertação do nosso corpo» (3). No mesmo sentido, a Igreja denomina como dia do nascimento, dies natalis, dos santos, a sua morte.

Mas o futuro, o novo, é verdadeiramente o desconhecido e, por isso, desencadeia em nós os sentimentos de receio e as atitudes de rejeição a que se fez alusão. O que, tanto no plano colectivo como a nível pessoal se exprime de várias formas e conhece graduações diversas. No primeiro, há a recusa instintiva do novo enquanto tal: o novo não é novo, já estava (4). Em antropologia cultural, reaparece, com a negação do cristianismo, como em Nietzsche, uma leitura da história que resulta gravemente diminuída de sentido por se conceber o tempo fechado sobre si: é a perspectiva do tempo cíclico, o mito do eterno retorno. Ou, numa outra abordagem, a história tem um sentido só negativo, não como progresso, mas como inelutável decadência, crescente apodrecimento: é o mito da idade de oiro, posta no início dos tempos, ou ainda antes desse início; para utilizar a linguagem da parábola, só há joio, o trigo desapareceu, ou do trigo apenas resta um pouco a diminuir e o joio cresce sempre mais.

No espaço individual, na aventura de cada um de nós, da sua realização ou fracasso, reencontramos o mesmo. A perplexidade perante os problemas, o risco de errar e de comprometer o futuro e o presente, os aspectos negativos das melhores opções, tudo, faz do exercício da nossa liberdade de escolha uma actividade francamente ambígua. Será condição de crescimento e autenticidade -«o homem que se faz a si mesmo»-, mas não deixa de poder ser, e é muitas vezes, ocasião de autodestruição. Além de que viver comporta necessariamente avançar para o desconhecido, para o que não se sabe se será bom ou mau, mas terá seguramente algo de menos positivo, na melhor das hipóteses. Provavelmente, é até a percepção deste risco directo, o peso deste desafio pessoal, que mais nos pressiona a não querer avançar, a preferir não ser, e nos sugere o recuo, se possível, até ao útero materno. É este o campo da vida moral, o que vem aumentar, segundo os pensadores cristãos, a gravidade dos erros de comportamento que, não só têm consequências no imediato, mas comprometem todo o futuro e têm repercussões até à eternidade. Aqui, o novo, com o seu toque de descontrolo e de ameaça, vem da liberdade humana e da singularidade das situações em que é forçada a agir. Tem dado maus resultados, mete medo.

Como encarar esta situação? Contornar a dificuldade? Os moralistas, alguns moralistas, é claro, inquietam-se e procuram respostas. Uma seria a de defender que não há liberdade senão para o bem. Uma outra, a que nos ocupa, pretende exercer um certo controlo sobre os comportamentos, propondo como regra, a própria natureza humana.

Usando o natural

Esta tendência, que ganhou plena forma no século XVII, embora com muitos e antigos antecedentes, e se manteve em pleno até aos nossos dias, particularmente na Igreja Católica, no seu magistério e na sua produção teológica em campo ético, consiste em defender que os comportamentos dos seres humanos devem ser em harmonia com, em obediência a, o que eles são. Ou que da natureza humana, entenda-se, da essência perene do humano, se pode saber, por dedução, qual o comportamento correcto e se deve, por consequência, levá-lo à prática. Chamou-se-lhe jusnaturalismo por significar que da natureza do homem e da sociedade se deve deduzir todo o direito e toda a moral. Talvez inconscientemente, pelo menos em alguns, com esta abordagem, recuar-se-ia do indeterminado da acção - o acto humano é sempre inevitavelmente singular e contingente - do indeterminado da vida, no fundo, para o mundo das certezas essenciais, ficar-se-ia, pensa-se, em terreno mais controlado, seguro, certo. A singularidade da situação e da escolha seria superada pela certeza metafísica do princípio moral, necessariamente genérico. Não haverá em tudo isto uma tendência a negar a ética, enquanto tal, enquanto criatividade, acção ajustada ao momento e ao desafio concreto, enquanto risco? É, pelo menos, a tentativa de conter a ética na natureza.

Suspeita-se que não é estranha a esta operação uma certa preocupação de serviço à comunidade, por parte dos moralistas, dalguns moralistas, que enquanto pastores ou seus colaboradores directos, se sentem pessoalmente empenhados em assegurar o bom comportamento não tanto pessoal, mas também, mas sobretudo dos outros, incapazes de saber o que é bom, frágeis nos seus propósitos, menores, precisando de ser guiados.

Penso que se pode dizer que toda esta questão ganhou maior acuidade nos nossos dias. Porque em vários sectores significativos, a humanidade tem vindo a ganhar mais liberdade de escolha. Não nos façamos ilusões. Em muitos domínios da vida humana, a existência de alternativas, e, portanto, a capacidade de optar era até há muito pouco tempo muito diminuta. Que se pense no facto de que a medicina só na passagem do s. XIX para o s. XX ganhou carácter verdadeiramente científico (até aí era muito largamente empírica). Que se pense, por exemplo, na procriação que escapava em grande medida às intervenções humanas. Hoje já começa a ser possível não se ter filhos se não se quer tê-los, tê-los em situações de esterilidade antes irreversíveis e já se fala com alguma credibilidade em vir a ter, em futuro próximo, os filhos com as características que se desejam. E tantas outras coisas. Numa palavra, a vida humana, que foi tão amplamente dominada pelo determinismo e a fatalidade, conhece agora, graças em grande parte aos avanços científicos, um significativo alargamento da sua zona de indeterminação: o espaço de liberdade alargou-se e continuará a alargar-se. A vida cresce em aventura e risco, em responsabilidade. A conclusão é que entramos numa nova era e a ética, em larga medida, está apenas a começar agora. É possível encarar essa realidade, à luz da fé como um desafio a valorizar de forma muito positiva. “Cresce cada vez mais no mundo o número de homens e mulheres, de qualquer grupo ou nação, que têm consciência de serem os artífices e os autores da cultura da própria comunidade. Aumenta também cada dia mais no mundo inteiro o sentido de autonomia e de responsabilidade, o qual é de máxima importância para a maturidade espiritual e moral do género humano. O que aparece ainda mais claramente, se tivermos diante dos olhos a unificação do mundo e o encargo que nos incumbe de construirmos, na verdade e na justiça, um mundo melhor. Somos assim testemunhas do nascer de um novo humanismo, no qual o homem se define antes de mais pela sua responsabilidade com relação aos seus irmãos e à história” . Não será mais próprio de cristãos alegrarem-se com este acréscimo de protagonismo da criatura humana, «feita à imagem de Deus», do que entrar em pânico com o mal que se pode praticar? Ou lamentar o desaparecimento dos tempos em que a prática do mal, como a do bem, aliás, não era possível por imaturidade e ausência de liberdade?

Terá ficado claro por toda esta abordagem, quanto me dissocio e critico este insistente recurso à categoria do natural em ética. Poderia acrescentar –mas talvez não seja a melhor altura, apesar do carácter excessivamente rápido e até unilateral desta apresentação, para não nos desviarmos do que me pareceu essencial - que, entre várias outras coisas, não deixa de levantar sérias objecções lógicas a operação de fazer o ser dizer o dever-ser (falácia). Mas não seria muito honesto não reconhecer que há, no meu modo de ver, um outro sentido em que realmente se age a partir do que se é. Não no sentido em que a ética mais não é do que manifestação da essência, em que está toda contida, mas no sentido em que o ser humano, cada um de nós, está naturalmente (cá reaparece a natureza) capacitado para saber o que é o bem e o mal, para os reconhecer e identificar. Desde que tenha tido condições normais de inserção social e desenvolvimento, de maturação, chega lá. Porque Deus assim o fez, «dotado de inteligência, livre arbítrio e de domínio dos seus actos» (6). Não é isso aliás que nos ensina a Palavra de Deus: «Quando os pagãos, privados da Lei, realizam naturalmente as prescrições da Lei, esses homens, sem possuir a Lei, são para si mesmos a Lei e mostram assim a realidade dessa lei, inscrita em seu coração, de que é prova o testemunho da sua consciência, assim como os juízos interiores de censura ou elogio que fazem uns sobre os outros…» (7)?

Não será a porta aberta à arbitrariedade, ao capricho, à desordem? Mas que se conseguiu e tem conseguido com a outra aproximação de toda esta problemática?

A GS 16 toma posição sobre isto e em particular afirma que reconhecer a prioridade à consciência pessoal não instala o capricho, mas faz superar a pura arbitrariedade, revelando as normas objectivas da moralidade e, além disso, aponta para, sem nos agarrarmos a certezas, ou ao que tomamos por certo por que já adquirido, para dialogar e experimentar, ou, se se preferir, reflectir em comum, sobre as experiências.

Concluindo diria que se a referência à natureza, quando bem entendida, é algo que se impõe, mas é também perfeitamente insuficiente –a vida moral não pode dispensar a referência a um objectivo, a um ideal - por outro lado, é urgente que se admita que, nestes domínios, é pelo menos tão importante fazer o bem, aquilo que é bom, como fazê-lo bem, isto é, de forma livre, pessoal, responsável, o que comporta a coragem de viver e de avançar para o desconhecido, arriscando.

Mateus Cardoso Peres

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Notas

(1) Conferência pronunciada no Convento de São Domingos, a 17 de Janeiro de 2002, no quadro das habituais conferências da terceiras quintas-feiras, e a que se conservou o estilo oral.
(2) Viver com os outros, in Cadernos do Ista, nº 7, ano IV (1999), pp. 93 ss.
(3) Rm 8: 18, 22-23.
(4) Lc 9: 19 e Mt 16: 22-23.
(5) GS 55
(6) João Damasceno, citado por Tomás de Aquino, na Suma de Teologia, I-II, prol.
(7) Rm 2: 14-5.