• EM BUSCA DO MIROCÓRDIO
    AUGUSTO JOAQUIM


..CADERNOS DO ISTA

É apenas para tornar mais fácil. Entramos directamente no que não sabemos. Se quiserem, podemos ver nesse neologismo a união do olhar e do coração, e concluir que «olhar ou auscultar o coração» é um dos seus significados prováveis. Mas creio mais prático não partir de um significado. Vamos decidir que não sabemos do que se trata. Vamos também decidir que provavelmente existe, embora eu, pessoalmente, nunca o tenha visto. Não sou santo, nem nunca tive a oportunidade de falar com algum. Ora, em princípio, buscar o mirocórdio foi o seu desígnio específico.

Para glosar o tema, que preside a esta série de encontros, direi que, pessoalmente, estou muito interessado nas consequências naturalmente extremas a que leva a busca desse incógnito neologismo, nos vórtices que tem espalhado à sua volta, nos incómodos que tem trazido, como estou interessado em saber por que se tem revelado tão pouco nítido, tão pouco conhecido e desejado, e vem quase sempre acompanhado de tanta cinza.

Pode tratar-se de um acaso. Mas ontem haveis celebrado a quarta-feira de cinzas, dando início à Quaresma. Haveis ouvido, mais uma vez, as palavras do Génesis: «Sois pó e em pó vos haveis de tornar». E tive vontade de voltar a uma outra tradução (1) dessa palavra, e colocá-la como exórdio:

«E ao Homem ele disse:
Porque [...] comeste da árvore que eu te proibira como alimento,
por tua causa, o denso é amaldiçoado,
com dor tirarás dele o teu sustento, todos os dias da tua vida. [...]
Com o suor do teu rosto, ganharás a tua subsistência,
enquanto durar a tua estadia no denso,
mas dele foste extraído,
porque és leveza e leveza voltarás a ser”
» (Gen., III, 17-19)

Exactamente como o mirocórdio que, até hoje, tem tido tanto de denso como de leve.

Provavelmente, nunca ninguém escreveu um livro «Como Me Tornei Santo». Pelo menos, nunca nenhum dos supostos tais voltou à vida para nos contar como foi ou dizer-nos como era. Se foi, por exemplo, doloroso em vida ter andado à procura do mirocórdio, ou se, pelo contrário, foi jubiloso... e o encontrou. Se, por exemplo, achou natural ou estranhamente cultural, depois de morto, ter de fazer milagres, ver a vida espiolhada até ao mais íntimo pormenor, sentir as ideias (que eventualmente professou) esquadrinhadas pela ortodoxia. É bem possível que, se não foi heróico em vida, se tenha tornado herói, depois de tanta coscuvilhice. Alguns houve que tiveram de passar por essa prova, durante séculos, embora com muitas décadas de carência pelo meio.

O pior, no entanto, (é, pelo menos, o que imagino), vem sempre depois — a estatuária horrível, o olhar beato, as pajelas kitch, as velas, preces e promessas, enfim, o costume de capelas e santuários. Sem falar do digest muito arrumado, liso, redondo, que se vende nas bancas, narrativas devotas sobre casos da vida, com o seu nome escarrapachado na capa. «Este sou eu?», é normal que se pergunte, acrescentando, porque é humilde: «Terei sido isto?». É este o processo, é esta a definição. Sem ironia, mas paradoxalmente, é da instituição — convencida que sabe o que é o mirocórdio, como se encontra e quem, de facto, o apanhou — que recebemos a definição de «santo».

Noutro lugar (2), tentei perceber, do ponto de vista antropológico, como, desde o século XV até aos nossos dias, se foi construindo o significado potenciométrico dessa definição, a evolução que sofreu, que história veicula, etc.

Hoje, vou procurar pensar convosco, e do mesmo ponto de vista, a noção de ministério. Palavra que é cara à Instituição mas que podemos encontrar com outras designações fora do seu âmbito de influência. Para a Instituição, ministério é o elo que une duradouramente a natureza, uma dada cosmogonia histórica religiosa e a graça, no âmbito da comunidade. Para outros, esse elo ligará o processo evolutivo das espécies à palavra, e esta à «arte» específica, que é dada a cada falante, como lugar e «trabalho» no seio dos homens. Ministério é elo, responsabilidade, experiência e transmissão.

Em 1602, Francisco de Sales vem a Paris. Era de extracção nobre e fora recentemente nomeado bispo de Genebra. Não abraçara a carreira eclesiástica à procura dos benefícios, então, inerentes a esse estado. Fora apenas movido pelo mirocórdio, a que chamava «o amor inflamado de Deus». Mas pouco importa o nome que lhe dava. O que nos interessa é que era «movido a inflamação», como um seu quase contemporâneo, Espinoza, era «movido a conhecimento» — inadequado, adequado e intuição das essências.

Na sua pátria natal, a Reforma fora (e estava sendo) dura. À séria. Gente que queria, de facto, mudar a vida que, nesse tempo, era não só, mas principalmente, vida-religião. Sales compreendera que o protestantismo não era um caso de controvérsia e muito menos um caso de polícia. A seu modo, Francisco de Sales (e os protestantes convictos de Genebra) faziam parte dos derradeiros herdeiros de Erasmo. Herdeiros esses que, na sua insanável discórdia, eram igualmente a prova viva da inviabilidade desse projecto.

O erasmismo havia pensado que o Cristianismo, enquanto forma religiosa civilizacional, podia, e devia, desabrochar numa república europeia, fundada no espiritual, tolerante, atenta ao viver quotidiano dos homens, aberta à instrução e ao saber novo (e não apenas ao antigo, fosse ele revelado ou oriundo de uma Grécia redescoberta). Não era bem uma cidade de Deus sobre a terra, e muito menos uma teocracia governada por clérigos. Antes, uma sociedade de homens de consciência livre, solidários, e cuja crença comum, e diversa na sua expressão, se tornasse o lar de Deus. Era normal que o primeiro projecto de cidadania espiritual nascesse no espaço da devotio.

É verdade que, dois anos antes, em 1600, Giordano Bruno ardera no cadafalso, sinal de que esse projecto tinha muito de ideal. Praticamente, apenas um punhado de europeus se podia rever na forma política imaginada pelo holandês. Rever-se nela, por em parte terem sido educados dentro desse molde. Era o caso de Francisco de Sales, oriundo de uma região, agitada, rica, onde há muito se experimentavam formas de vida participada e democrática.

Era ainda um homem novo. Tinha 35 anos, embora não soubesse que apenas teria pela frente uns escassos vinte anos de vida. Na controvérsia que se alumiara irreversivelmente na Europa, Sales não duvidava que estivesse do bom lado, como sabia que o seu lado estava errado quanto à maneira. Nos contactos que mantivera com muitos crentes protestantes, vira com os seus olhos que estes haviam escolhido a maneira certa do lado errado. Por bons motivos e maus princípios, em suma.

O que o trazia a Paris, em pleno reinado de Henrique IV, o protestante que abjurara para ser rei de um reino maioritariamente católico? Viera tratar de política. E acabou por se encontrar com todo um círculo de gente que, como ele, pensava que era vital acertar a maneira segundo o lado. Colocar as boas razões religiosas no topo e levar os motivos a moverem-se nessa sintonia. Mudar de vida, era o único necessário, para esse pequeno círculo. E constatou que essa gente — Bérulle, a senhora Acária, Duval, Gallemant, Vicente de Paulo — se batia pelo «espiritual». Eu digo já — essa gente batia-se por imagens. Certas imagens, justamente aquelas em que se espelha, exigente e inclaro, o mirocórdio. Estavam convencidos de que, contrariamente ao que fora voz corrente durante séculos, o espiritual não se encontrava desenhado. Era preciso desenhar o seu traçado, um traçado que o mirocórdio conhecia, embora o não falasse, excepto por sinais, impulsos, gostos, vontades, inspirações, que importava de sobremaneira saber ler. Ler, no caso vertente, era traduzir esses impulsos em palavras, sinal de que o homem é homem, e o mirocórdio não o é, apesar de ter uma linguagem. Esse contacto, feito de diálogo transcriptivo, era arriscado porque, na proximidade do mirocórdio, se constatava a presença de um outro emissor de imagens, de imagens quase parecidas, salvo que, a prazo, se revelavam inimigas fidagais das primeiras. Pisavam, pois, um terreno onde as paixões eram força. Ou forças difíceis de nomear. O espiritual, como traçado de imagens, era um caminho através das paixões que exigia um grande discernimento. Não seria fácil colocar a maneira a bater certa com o lado.

Sales e os seus novos conhecidos sabiam que estavam no princípio — no primeiro pensamento verdadeiro, no primeiro bater certo do coração, no primeiro passo a dar. Ou seja, o princípio era instável, muito atreito aos mais pequenos impulsos, do mesmo modo que há constituições muito atreitas aos resfriamentos ou aos arrebatamentos da imaginação. Um início em que «quase nadas» alteravam o destino. Hoje, dizemos, condições iniciais muito sensíveis às mais pequenas flutuações. Dizemo-lo e sabemos que estamos a falar de um movimento caótico, em que pontos muito afastados repentinamente se aproximam, em que pontos irmãos à nascença tomam o rumo de um irreversível desencontro. Não é, pois, de estranhar que nesse meio viesse mais tarde a revelar-se o primeiro pensador das probabilidades — Blaise Pascal (1623-1662) —, embora a sua introdução na devotio fosse um gesto intelectual espiritualmente muito arriscado.

Era em torno de uma mulher, a senhora Acária, conhecida pelos seus arroubos místicos e êxtases, que se reunia esse círculo de espirituais «intelectuais». Historicamente, ficou conhecido, como sabeis, por «partido devoto». Não tinha, propriamente falando, uma espiritualidade — objectivos, concepções, método, regras e prática; estava, sim, ao corrente das principais experiências — a espiritualidade renana e, mais recentemente, a espanhola — que haviam florescido no seio do cristianismo medievo e moderno. E como havia entre os seus membros gente que conhecia línguas, a obra de Isabel Bellinzaga, uma mística milanesa, foi traduzida por Bérulle, os escritos de Teresa de Ávila foram traduzidos por Brétigny, enquanto Bento de Canfeld, um clérigo de origem inglesa, redigia uma Regra da Perfeição, inspirada nos mestres renanos.

Importa, desde já, notar que as duas grandes plêiadas de espirituais católicos — a espanhola e a centro-sul europeia — são quase contemporâneas. Basta reparar nas datas dos «canonizados»: João de Deus (1495-1550), João de Ávila (1499-1569), Filipe de Néri (1515-1595), Teresa de Ávila (1515-1582), João da Cruz (1542-1591), Francisco de Sales (1567-1622) e Vicente de Paulo (1581-1660).

Num primeiro tempo, o círculo oscilou entre a mística dos mestres renanos e a recente experiência teresiana, as únicas experiências, aliás, que haviam sido testadas, embora, o grau de conceptualização de uma e de outra não tivesse nem a mesma amplitude, nem a mesma profundidade. Deve dizer-se que a experiência renana fora praticamente dizimada pela Instituição. Não tinha representantes vivos. A experiência espiritual prática perdera-se, consequentemente. Sinal de que os escritos não chegam. Compreende-se, assim, que, apesar da atracção que exercia entre os mais «intelectuais» do grupo, a experiência renana, no momento em que Sales chega a Paris, estivesse a perder terreno, tanto mais que duas grandes discípulas de Teresa de Ávila tinham, entretanto, chegado a França — Ana de Jesus e Ana de São Bartolomeu.

Sales é, de facto, o mais novo de todos eles, mas não era um novato. Combatera no terreno, obtivera resultados, tinha uma visão aproximada do que se impunha fazer para pôr em sintonia a maneira e o lado, o único processo de entender adequadamente o mirocórdio que a todos atraía. Além do mais, recebera o dom de discernir e o de aprender com a experiência. Por exemplo, tendo-o a senhora Acária escolhido para confessor, é ele que, ao que consta, lhe ensina como deve confessar-se. Também é ele que reconhece a autenticidade da sua experiência espiritual «à espanhola». Razão por que insiste para que funde o primeiro Carmelo francês. O que virá, de facto, a suceder. Por outro lado, Sales, junto de Bérulle, insiste para que funde, à imagem de Filipe de Néri, um Oratório, uma associação de padres diocesanos, dispostos a apoiar-se espiritual e pastoralmente. O que também virá a acontecer.

Vicente de Paulo, pelo seu lado, esperará pela sua hora. Os dois homens virão ainda a encontrar-se.

Nestas duas iniciativas, o Oratório e o Carmelo, Sales, a ter de escolher entre os vários inícios de caminho que se apresentam, recusa a experiência renana, e apoia a teresiana, apesar de, no momento, as suas simpatias irem mais para a experiência tentada por Filipe de Néri. Mas, na realidade, nenhum desses «inícios» correspondia ao que efectivamente desejava. Era outra a imagem que o movia.

Ao regressar a Genebra (o que é uma maneira de dizer, dado estar-lhe vedado o acesso à sua sede episcopal), Sales lança-se numa vasta reforma da sua diocese — formação dos padres, instalação de uma academia literária, científica e teológica (a que, segundo a tradição suíça, associará colégios e escolas) e, sobretudo, a fundação de uma nova ordem religiosa. Todos estes instrumentos convergiam para a «concretização» de um ideal moderno e raro — a cidadania espiritual, como ministério. Um «estado» que nunca teorizou, mas para o qual tende, com todo o ímpeto, o seu radial de funções (4,5,2), de que foi um dos poucos praticantes (todos eles dos séculos XVI e XVII, excepto um que ocorrerá em finais do século XVIII). Voltarei, obviamente, a esta questão.

No seu caso, a primeira ordem que fundou foi com mulheres (que, aliás, terá escutado como poucos!). Ele queria gente contemplativa, mas sem clausura; queria reunir mulheres de várias condições e estados de saúde; queria que se dedicassem aos pobres e aos doentes; queria que agissem no «mundo», como se começava a dizer; queria que fossem o exemplo de uma vida convicta e intensa de amor, no seio de um catolicismo que, por sua vez, tinha de coexistir com um protestantismo florescente...

Queria, queria. A imagem viera. O sinal fora dado. O caminho ia escrever-se.

Enquanto se entregava a esse «queria», Sales foi forçosamente levado a conceptualizá-lo, a descrever como agia o mirocórdio que o movia e era a sua única razão de ser — O Tratado do Amor de Deus. Escreveu muito mais, mas este é o «seu» livro. E pensou-o dirigido a todos, crentes e não-crentes. Pensava que o caminho era de todos e para todos, desde que existisse um «queria».

Conto apenas um facto curioso que, na realidade, está na base do que aqui vim dizer. Ao lançar a sua primeira comunidade de Visitandinas, sob a direcção da sua amiga, Joana de Chantal —— comunidade que Sales acompanhava com três conversas semanais sobre a via espiritual que acabara por ser a sua —, além dos problemas próprios desses empreendimentos, um houve que atraiu particularmente a sua atenção. Conta a madre de Chaugy: «Pela graça divina, algumas [entre as novas religiosas] tiveram, a breve trecho, orações de quietude, orações de sono amoroso, orações de união muito elevada; outras receberam luzes extraordinárias sobre os mistérios divinos, em que se deixavam santamente absorver. Outras ainda começaram a entrar frequentemente em êxtase e a conhecer outros tipos de santos arroubos; felizmente que Deus a todas arrebatava e recebia no seu seio.» Conta ainda a madre que foi necessário pedir ao Senhor que limitasse o eflúvio dos seus próprios dons, que fechasse um pouco a sua mão, porque essas efervescências «davam nas vistas». Os fundadores pediram, assim, para as suas filhas «um grande dom de vida interior, escondida e sofredora amorosamente com Cristo na cruz».

Quis contar-vos este pequeno episódio, ocorrido algures entre 1610-1615, porque nele se espelha com uma rara nitidez uma mutação da espiritualidade. O mirocórdio provavelmente não mudara de sítio nem de carácter. Estava a mudar, sim, a maneira de o abordar. Alterava-se, mais uma vez, o diálogo-transcrição que alguns homens e mulheres têm procurado manter com «isso», ao longo dos tempos. E «isso», como estamos a ler, produz efeitos físicos, mexe com os sensores da percepção, altera os corpos e orienta as vontades para a des-medida.

O meu «queria» de hoje é passar convosco os minutos que me restam a comentar este brevíssimo resumo do trajecto de Sales. Como referi, o ministério da cidadania espiritual nunca se concretizou — foram apenas ensaiados meros erzats, como «laicado», «povo de Deus», «comunidade dos crentes» e outros mais ou menos carismáticos. Devo, no entanto, acrescentar que não foi o único ministério de base a ter esse destino. O mesmo aconteceu ao ministério da dor, ao ministério da conjugalidade e ao ministério da visão-profecia. Este último, no entanto, conheceu, a exemplo do da cidadania espiritual, o seu momento de idealização, porque os outros nem sequer essa oportunidade tiveram.

Ao definir, em termos antropológicos, o estatuto das funções eclesiais, pude não só constatar as que tinham sido efectivamente realizadas (em termos de canonicidade, entenda-se), como as que haviam sido apenas esboçadas, assim bem como aquelas que jamais puderam ser concretizadas. O mais curioso desta história é que umas supõem dinamicamente as outras, ou seja, as realizadas trazem atrás de si tanto as esboçadas como as impedidas de realização. E são os radiais de funções (três ou mais, associadas) que revelam com nitidez essa dinâmica. Ao ligarem caminhos até então dispersos, os radiais iluminam a natureza dos ministérios de base e, no mesmo gesto, criam o modo e o destino do seu exercício. E se acabei por decidir abordar este aspecto da santidade, entre outros igualmente possíveis, é porque penso que os radiais (sobretudo, os jamais concretizados) nos podem ajudar a compreender uma história que temos em comum — a do Ocidente europeu que a todos nos viu nascer e nos formou.

Começarei por chamar a vossa atenção para dois pequenos pormenores do episódio que vos contei.

�lizmente que Deus...” é uma frase que evoca uma outra: “seria uma infelicidade se Deus”... O alívio que dela transpira provém do lugar onde esses dons se manifestam, e das circunstâncias históricas do início desse tenebroso século XVII. É que havia sempre a suspeita de que esses dons tivessem origem diabólica, fossem sinais da sua presença actuante. Recordo, de passagem, que Sales era grande amigo de Camus, que, além de prelado como ele, foi um polígrafo compulsivo que, apenas à sua conta, escreveu mais de 900 novelas de um género literário, então recente — as Histórias Trágicas, que punham em cena um demónio multiforme e omnipresente (tanto como Deus). Essa escrita inseria-se na caça às bruxas em que se achavam empenhados católicos e protestantes, caçada que valeu a vida a mais de cento e cinquenta mil vítimas (sobretudo, viúvas com mais de 40 anos) e deu origem a dezenas de milhares de processos. Acresce que o embate com o diabo, um processo social, politica e teologicamente gigantesco, teve o seu epicentro na região que liga a Sabóia à Inglaterra, através da bacia do Reno, passando pela Holanda, pelo Norte da Alemanha e pelo Norte da França, o chamado crescente azul, dado a forma que ocupa no mapa lembrar um quarto crescente lunar. É, hoje, como se sabe, a zona mais rica da Europa. Foi igualmente a área de origem da ala católica mais interventora no Vaticano II. Como se vê, a procura do mirocórdio, além de decorrer num campo antropológico de forças polarizadas, revela um percurso dos mais singulares, devido à natureza caótica da sua inscrição na história.

Felizmente, para as boas das freiras, aqueles dons não eram diabólicos. No entanto, incomodavam. Como se pode deduzir do que acabo de dizer, a Sabóia (e a vizinha região de Genebra) não era propriamente a Espanha. As visitandinas viviam no meio de protestantes calvinistas que, do ponto de vista eclesial e dogmático, davam mostras de uma insanável repulsa por milagres, místicos, pretensões à santidade e afins. Os dons recebidos não eram apenas incómodos, dificultando a organização quotidiana das comunidades e a indispensável quietude teológica, eram ainda pastoralmente contraproducentes.

Sales não era contra os dons místicos, como virá a acontecer em quase toda a Europa, a partir de meados do século XVII até hoje (basta recordar os efeitos devastadores provocados pela polémica suja que opôs Bossuet a Fénelon, amigo da senhora Guyon), mas encarava alguns deles como impróprios do ministério da cidadania religiosa. Pediu então, e o mirocórdio fez-lhe a vontade — concedeu às suas protegidas o «grande dom de vida interior, escondida e sofredora amorosamente com Cristo na cruz». Só que, para que esse efeito, a espiritualidade de Sales teve de escolher entre quadrantes. E digo “teve de” porque não é crível que os dons andem «aos baldões», sendo como são fontes estáveis de imagens e de energia, e essas fontes estejam situadas num substracto sobre o qual se constróem os caminhos. Praticamente, caminhar é procurar essas fontes, e beber. Praticamente, é a sua localização que faz o mapa. Daí que, conforme os dons, assim seja o quadrante espiritual. É provável que, nesse mapa, não existam dois lugares iguais. Por outras palavras, os dons são co-extensivos ao campo de forças polarizado, seja ele encarado religiosamente ou não. Em suma, os dons são conaturais ao corpo. No meu estudo, identifiquei 36, mas garanto que são muitos mais. Devo acrescentar que, na sua grande maioria, não provocam qualquer efeito físico visível, embora transformem irreversivelmente a psicossomática. Na realidade, alteram a própria noção do que seja um corpo. Podemos ainda considerar que as chamadas ascese e mística são apenas balbuciamentos no processo da sua apreensão.

Em que consiste, no entanto, a operação de Sales? Na definição de uma linha de equilíbrio.

Vimos as iniciativas que Sales tomou, ao regressar à sua diocese. Tendo preferido a via teresiana à renana (que se havia transformado num autêntico campo de minas anti-pessoal), seria de esperar que a sua fundação religiosa seguisse o caminho traçado por Teresa de Ávila. Afinal, não podia ser. Como não seria de esperar que a formação dos padres e a sua academia formassem intelectuais renanos. Não, iria formar homens do comum, orantes e instruídos, esclarecidamente inseridos nas problemáticas do seu tempo. Razão por que a síntese que procurou acabou por ter o seu centro de gravidade na devotio e não na contemplatio, fosse ela de ordem sensível ou intelectual. Atente-se ainda em mais alguns detalhes. As suas religiosas dedicar-se-iam aos pobres e aos doentes, sem exclusivo religioso de qualquer espécie. Ou seja, o seu quadrante de acção seria a caritas, do mesmo modo que os cristãos esclarecidos, nomeadamente o seu amigo Camus, estariam pela actio presentes no mundo. Estes campos de acção, ou quadrantes, teriam na devotio o seu atractor permanente, o que não deixará de ter consequências propriamente fatais.

Temos, assim, os quadrantes do nosso substrato — devotio, contemplatio, caritas e actio. Para abreviar razões, lembrarei as designações que lhes dei no estudo referido, respectivamente: xenos, geo, etnos e gens. É um pouco laborioso, embora possível, identificar os dons próprios desses quadrantes. Limitar-me-ei, no entanto, a indicar, para cada quadrante, o seu pólo negativo e o fundamento bíblico mais frequente.

A devotio é o lugar do Nome, cujo fundamento podemos encontrar em Êxodo, 3, 14. A actio é o lugar do Vivente Humano (ver Génesis, 2, 3). A caritas é o lugar da Ressurreição (ver Ezequiel, 37). Finalmente, a contemplatio é o lugar da Visão Dialogante e Prospectiva com a Paisagem (ver Cântico dos Cânticos). Dado tratar-se de um campo polarizado, a cada um deles corresponde, como referi, um inimigo, respectivamente, o demónio, o mundano, a dor e a carne, tradicionalmente considerados (à excepção da dor) como os inimigos do homem.

Esta descrição pode ser topologicamente imaginada sobre uma folha de papel, dividida em quatro. Cada quarto apresentar-se-á então como uma montanha, separada das demais por vales profundos. As montanhas caem nos vales através de colinas deslizantes. Colinas, vales e montanhas que terão, certamente, para vós, ressonâncias semânticas e simbólicas sobejamente conhecidas.

Neste substrato polarizado e topologicamente diferenciado, conatural ao corpo (que, com outras designações, podemos encontrar em Espinoza, como já antes em Aristóteles e, depois, nos moralistas franceses e ingleses ate à psiquiatria), a busca do mirocórdio, a santidade, cria des-medida. Aliás, a configuração que, actualmente, podemos observar nesse campo é integralmente fruto da luta que se trava entre a santidade e a Instituição que a pretende medir e condicionar. Basta pensar que as linhas geodésicas que, por definição, indicam os declives de menor esforço, são encaradas pela santidade como os caminhos menos seguros. E compreende-se que assim seja. O atractor da des-medida situa-se nos cumes das montanhas.

A des-medida pode ser lida de dois modos. Como um excesso relativamente a uma norma ou, mais simplesmente, como a anulação da norma, ou seja, da medida. Depende, obviamente, do ponto de vista. Para o corpo potenciométrico, a santidade é sempre um excesso relativamente à medida estabelecida (a esse título, a santidade não faz parte da panóplia do humano comum). Para a santidade, pelo contrário, é a medida que não tem razão de ser, dado o mirocórdio estar presente no humano e, ao mesmo tempo, o extravasar por toda a parte. A ser assim, a santidade é o destino específico da espécie, o destino que decorre da sua natureza, dado não ser possível aplicar aos dons e à sua acção qualquer medida estável e de fundamento seguro. Sales hesitou entre estas duas posições. O equilíbrio que acabou por encontrar foi fatalmente um compromisso entre as exigências da santidade e os limites admitidos pelos grupos estratégicos. No cômputo final, a santidade continuou a ser um excesso, cuja prática ficava reservada a uns tantos raros. Esse compromisso impossibilitou que, algum dia, o ministério da cidadania espiritual pudesse concretizar-se.

Estas questões têm obviamente outros lados.

A santidade não sendo um fenómeno estruturalmente religioso, mas espiritual, dá-se o caso curioso de, na nossa civilização, ter surgido uma Instituição de natureza religiosa que, desde sempre, embora de modo compassado, se empenhou, em regime exclusivo, no seu cultivo e promoção, de tal sorte que quase tudo o que sabemos sobre o mirocórdio a ela o devemos. Trata-se de um facto da maior relevância. Não apenas por se ter conservado a memória de algumas experiências humanas fulcrais (que, de outro modo, se teriam perdido), mas igualmente por se ter instalado a identidade entre santidade e religião, o que acarretou uma visão parcial do fenómeno.

Esse facto não nos deve, no entanto, obnubilar quanto ao essencial — a Instituição sempre reconheceu que a santidade ocorre no universo da medida humana (apenas os seres humanos são canonizáveis), e que essa ocorrência o extravasa. Por outras palavras, o mirocórdio não é conatural ao corpo entrópico destinado à degenerescência e à morte, mas ao corpo que se ergue contra esse destino. Ou seja, no mirocórdio, há algo de não humano, e esse «algo» nem sempre é benigno. Os sobreviventes dessa viagem são bem mais raros do que os inúmeros despedaçados que foram engolidos pelas bermas do caminho.

É esta a raiz de onde florescem os critérios que a Instituição criou e aplica para reconhecer as travessias com êxito, a que estão associadas as funções a utilizar na captação dos dons. No nosso estudo, servimo-nos de oito funções — propagandista (2), pastor (4), educador (5), contemplativo (6), eremita (7), hospitalar (8), assistencial (9) e ecumenista (10). Do ponto de vista da Instituição, essas funções balizam empiricamente os caminhos espirituais transitáveis. São painéis informadores da rodovia.

Convém deixar claro o seguinte: se é indiscutível que os dons transformam os corpos (e os tornam capazes de vencer a entropia), os radiais das funções interferem na história. A santidade, reconhecida ou não, não é jamais um fenómeno privado.

As funções interferem, na história humana, de duas maneiras — por um lado, captam e organizam a energia dos dons (reunindo em conjuntos articulados dons distintos), por outro, ao serem dinamicamente mutáveis, geram conflitos permanentes entre caminhos novos e caminhos já experimentados. Esses conflitos alteraram profundamente a topologia do substracto dos dons, alguns dos quais se tornaram sobreabundantes, enquanto que outros são raridades praticamente inacessíveis.

Vejamos rapidamente estes dois aspectos.

Quando observamos as regiões europeias e nos interrogamos sobre se nelas a santidade foi um fenómenos esporádico ou se teve continuidade e, caso tenha sido contínuo, se existiram radiais de funções e, em caso afirmativo, qual foi a função charneira (o que tem a sua importância, dado os radiais não se terem mantido constantes), constatamos uma surpreendente interdependência entre os radiais de funções e o historial político e económico de cada região europeia, quer tenham guardado laços com o xenos cristão, ou derivado para uma espécie de xenos pagão, ou evoluído para um etnos a-religioso. Constatar que as regiões onde os laços se mantiveram, a santidade desapareceu, ao mesmo tempo que economicamente estagnaram e evoluíram para regimes fascistas ou autoritários. Constatar que onde a santidade desde sempre existiu e teve continuidade, se assiste a uma evolução para um etnos a-religioso, onde predominam tendências sociais liberalizantes de tipo socialista ou social-democrata. Constatar que nas regiões onde predominaram, nos séculos XIX e XX, os radiais 8,9,5 e 6,9,5, mas onde nunca antes existira santidade, evoluíram maciçamente para o comunismo. Constatar que na única região, a Alemanha (com a Áustria, Polónia e República Checa), onde predominou o dom da conversão e foram canonizados, sobretudo, mártires, foi justamente a região que evoluiu francamente para um xenos pagão...

É impossível falar de cada região, de per si. Podem-me, no entanto, acreditar. É impressionante a interdependência que se constata. Mas sabeis, não admira. Ao longo destes cinco séculos em análise, a Instituição confinou-se, cada vez mais, no espaço da devotio, que lhe fora apontado por Sales.

Reparem. Nos séculos XV e XVI, houve 26 santos no quadrante devotio, contra 12 no da contemplatio, 6 no da caritas e 2 no da actio, num total de 46 santos. Nos últimos três séculos, sobre 100 santos, 67 situavam-se na devotio, contra 6 na contemplatio; e 21 na caritas contra 6 na actio. O radial 4,2,5 e associados não só nunca deram à luz o ministério da cidadania espiritual, como fagocitaram todos os outros possíveis.

Como explicar este resultado?

Basta olhar para a distribuição das funções.

A função 5 (educador) surge 79 vezes, a função 10 (ecumenista) 3 e a função 7 (eremita) 9. Pelo meio, surgem as restantes funções, com frequências da ordem das 45-50 vezes. Faça-se o esboço topológico. O que surge é uma espiral irregular — parte de um ponto escarpado, assenta momentaneamente num planalto, para, finalmente, cair a pique na função 5, o único atractor de toda a dinâmica. Um único móbil — fazer adeptos, tendência que o actual pontificado tem acentuado com uma indesmentível persistência. O que nos deixou a todos um campo de força profundamente distorcido.

E, no entanto, o início, nesses primórdios do século XVII, parecia tão prometedor. Muitos pensaram, então, numa esperança que perdurou até meados do século XVIII, que tinham à sua frente uma página em branco, que iria ser possível desenhar sobre ela um novo início.

Peguemos na folha amarrotada que temos à nossa frente. De tão amarrotada, já quase se não notam os cumes das montanhas nem as linhas dos vales. Seja como for, é a nossa folha. Os dons não distinguem entre crentes e não crentes, apenas olham os corações à espera dos que se disponham a dar continuidade ao imemoriável diálogo-transcrição. Os dons existem. Sem as suas imagens puras, o homem não será, e o vivo tomará fatalmente outros rumos. A menos que aprendamos a reconhecer a sua presença na nossa palavra, nos nossos sensores perceptivos, nos nossos desejos e aspirações, no nosso desespero e dor, na nossa vontade de dar ao universo da matéria um destino que não se reduza à fornalha cósmica e consumitiva a que parece reduzir-se. Continuamos a ignorar a natureza do mirocórdio. Muitos dos que voltaram traziam na boca palavras que as teologias não entendem, certezas inadmissíveis para os racionalismos reinantes. Na prática, o mirocórdio não se deixa domar nem instrumentalizar por qualquer instância canonizante. Sabemos ainda que vão ser necessárias outras funções. Sabemos, finalmente, que a nossa espécie falante precisa de elos, de pontes entre traçados, de caminhos que lhe permitam subir aos cumes das montanhas. Nos elos experimentados, surgirão voluntários para guardar a passagem e transmitir a experiência. Acolher, em suma, todos quantos quiserem subir ao alto da montanha. Deixarão para trás a folha amarrotada que temos à nossa frente.

Uns subirão ao alto da montanha da dor, da tristeza e da depressão, é possível que Ezequiel ou Nietzsche os acompanhem, talvez vejam nos ossos calcinados de todos os valores, a exigência do carbono a pedir quem o fale, e voltem para nos dizer sem medo as palavras da ressurreição. Virão de olhos enegrecidos a brilhar.

Outros subirão ao alto da montanha do vivente, é possível que o narrador do Génesis ou Rilke ou Hölderlin os acompanhem, talvez contemplem pasmados que o que existe poderia não ter existido, e voltem para nos dizer que o mundo deseja conjugalizar-se com o humano, na aceitação mútua e na curiosidade comum pelos caminhos percorridos. Quando os olharmos, veremos, talvez, que o mundo quer ser carne da nossa carne vivente.

Outros ainda subirão ao alto da montanha da visão, é possível que subam à montanha saltitando de versículo em versículo a encosta escarpada do Cântico dos Cânticos, quem sabe?, talvez Teresa ou João ou Eckhart os acompanhem, e no cume contemplem a inenarrável beleza da terra e, ao regressarem, nos digam que a Paisagem tem um sonho, o de nos ver, de novo, meninos com uma serpente na boca.

Outros ainda subirão ao alto mais temível, ao alto da montanha do nome que, quem sabe?, jamais nos será dito, que voltem a ouvir de novo esse nome que não divide, mas congrega, «onde soçobrares, eu soçobrarei contigo», é possível que o leiam na narrativa do Êxodo, ou nas imprecações de Müntzer, ou nas teses sobre a história de Benjamin, ou nos diários admiráveis deixados por tantos judeus que sabiam que iam ser gazeados, e não amaldiçoaram.

É possível.

É minha convicção que os dons nos convidam a esse destino.

Augusto Joaquim
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Notas

Paul Nothomb, L’Homme Immortel – Nouveau regard sur l’Eden, p. 187, Bibliothèque de l’Hermétisme, Albin Michel, 1984.

Augusto Joaquim, «Estratégia do papado e mutações da santidade», posfácio a Georges Daix, Dicionário dos Santos, pp. 239-333, Terramar, Lisboa, 2000.