• MATEUS CARDOSO PERES, OP
    JESUS - UMA REFERÊNCIA ÉTlCA
    NECESSÁRIA



..CADERNOS DO ISTA

Tema algum, parece-me, poderia ser mais actual e urgente. Tem-se, com efeito, a sensação, difícil de quantificar, sem dúvida, mas persistente, de que vivemos numa Igreja, fechada sobre si, que se ocupa (e preocupa) predominantemente de si mesma e acaba por falar muito menos de Jesus Cristo que dela própria. Há, pois, sérias suspeitas. Se um défice cristocêntrico na Igreja que somos o que, como desvio à sua «graça e vocação própria... à sua mais profunda identidade1», torna muito mais difícil encontrar soluções para os nossos problemas. Mas passemos ao nosso tema específico.

Que Jesus seja uma referência ética parece ser uma evidência. Isto é, que, tanto dentro como fora da Igreja (e das Igrejas), no espaço crente como no espaço secularizado e humanista, o ensino e o exemplo, a figura e a própria vida de Jesus, são interpretadas como tendo significado, e grande significado, ético. Por outras palavras, mesmo aqueles que reconhecem em Jesus aquele que, de origem sobrenatural, abre aos homens e ao mundo o acesso a esse mundo supra sensível, meta-histórico, divino, admitem nele uma contribuição decisiva, em termos de proposta ética, para esta nossa vida presente, terrena; quanto mais não seja, por traçar as vias responsáveis de acesso à vida futura - unindo assim vida presente e vida futura, dando portanto ao tempo presente uma relevância de eternidade, delineando uma ética, em perspectiva de salvação. Para nós, os crentes, isto é realmente importante porque corresponde a tentar ver como e em quê Jesus, o Jesus concreto e histórico, é relevante para as nossas vidas, na medida em que somos nós a construí-las em referência a Cristo e à esperança cristã. Os outros, menos sensíveis aos valores supra-terrenos, ou mesmo recusando-os, sentem muitas vezes, como uma inspiração e como uma referência, o atractivo da figura de Jesus, da sua não-violência e da sua fraternidade, da sua coerência face aos poderosos e aos simples.

Este consenso, esta evidência necessitam, no entanto, de ser repensados porque a unanimidade aparente esconde (ou coexiste com) muitas divergências de interpretação. Estamos todos de acordo, na aparência: Jesus é uma referência ética necessária. Mas todos em desacordo, na realidade, sobre o sentido a dar a essa referência: que contributo concreto terá dado Jesus para a causa da autenticidade humana?

Penso que há desentendimento e polémica sobretudo a dois níveis. Num primeiro tempo enfrentam-se as posições daqueles que poderíamos apelidar de fundamentalistas ou de inclinados à atitude fundamentalista com as dos que se situam em perspectiva de utopia. Para os primeiros, Ele, Verbo de Deus feito carne, imagem perfeita do Pai e homem perfeito, exprime para a humanidade, como Modelo e como Mestre, a verdade, o caminho [Jo 14:6], o dever-ser dos seres humanos. E só Ele o pode fazer, dado o estado de perdição e perturbação a que o pecado submete a espécie humana. Há nesta posição um certo monofisismo, uma abordagem predominantemente «descendente», uma certa desvalorização do criado e da razão que, com razão, se atribui, na história do pensamento teológico ocidental, aos aspectos menos positivos da herança agostiniana. Em contraste, estão aqueles que, a partir de pressupostos bem diferentes, vêem em Jesus o camarada de anarquistas e socialistas utópicos, o sonhador ineficaz, a testemunha e vítima do anseio pela justiça, como os profetas de todas as tradições religiosas e humanistas e o seu contributo inserindo-se, como o de outras grandes figuras, na universal e perene busca moral da humanidade, inspirando, apontando ideais, mais do que normas, na linha da fraternidade universal2.

Haverá alguma possibilidade de aproximação e de entendimento entre posições tão divergentes? O contraste entre elas, aliás, enquadra-se num confronto de grandes proporções e importância e bem presente nas orientações do Concílio Vaticano II, o da relação Igreja-Mundo. A opção em favor do diálogo, por parte da Igreja, comporta desde logo a correcta valorização da criação, do humanismo e da experiência terrena, no serviço da Revelação e do crescimento da fé, como comporta uma adequada equação do esforço colectivo, da história e da construção da terra, face ao horizonte «dos novos céus e da nova terra». Essa atitude, em última análise, abre-nos à consideração de Jesus e da sua contribuição ética na perspectiva de uma humanidade que, nas suas grandes figuras, busca a autenticidade do humano e constrói laboriosamente a paz e a justiça.

As grandes coordenadas aqui evocadas não são para esquecer, pois constituem o contexto da nossa questão, o enquadramento que lhe confere toda a sua importância, mas hoje, em Igreja impõe-se, penso, abordar esta questão no quadro bem mais preciso de toda a polémica em torno da moral e da teologia moral, do seu estatuto, da sua relação com o magistério. Metodologicamente, é imperativo ver primeiro claro na referência ética a Jesus, em sentido preciso e teológico, para poder ver claro, tanto quanto possível, nessa polémica interna à Igreja, em torno das exigências do objectivismo face ao perigo do relativismo, para depois, enfrentar a primeira questão levantada. As duas estão, aliás, relacionadas: num caso como noutro confrontam-se duas perspectivas, uma que vê a ética como algo de já feito, acabado e estático e que se deve conhecer para aplicar, enquanto a outra vê a ética como um discurso em aberto, passível de busca e de criatividade. Com esta questão se prende a dos métodos: como conhecer? Por revelação? Isso, além de levantar complicados problemas de interpretação dos textos bíblicos, seria reduzir a influência da verdade moral objectiva e necessária às dimensões da fé da Igreja, o que manifestamente lhe retira universalidade. Pela razão natural, de que, em princípio, toda a criatura racional se encontra dotada? Mas esse processo banaliza e diminui a autoridade específica da Igreja nestas questões. Provavelmente por um recurso às duas fontes, revelação e lei natural, numa simbiose e convergência ainda largamente por explicar. Como, além disso, proceder? A dedução a partir dos grandes princípios universais parece ser, no primeiro caso, a regra de procedimento, deixando para a segunda abordagem o processo que, partindo dos comportamentos e da experiência reflectida descobre, por indução, os valores.

Mas não é só isso. A questão das dificuldades experimentadas reciprocamente no diálogo entre teólogos-moralistas e órgãos do magistério ordinário da Igreja, nomeadamente a Congregação para a Doutrina da Fé - de que as oposições levantadas a Marciano Vidal e recentemente vindas a público são mais um penoso exemplo -, radica, segundo creio, em divergência de linguagens. Ou, pelo menos, tem também essa dimensão. Falam-se "línguas" diferentes, entende-se a ética em registos diferentes, visam-se objectivos e resultados diferentes, de um e outro lado da confrontação.

Para explicar, e até tentar justificar, essa diferença, julgo esclarecedora a bem conhecida e tantas vezes citada intuição de Max Weber [1864-1920] que distinguiu e caracterizou dois tipos de sistema moral, a ética da convicção [Gesinnungsethik] e a ética da responsabilidade [Verantwortungsethik]3. A primeira consiste em põr-se incondicionalmente ao serviço de um fim, independentemente dos meios a utilizar para o realizar e da avaliação das possibilidades de êxito ou de insucesso, assim como das consequências, previsíveis ou não. É a atitude do crente, do religioso, do revolucionário, de todo aquele que, por fidelidade às suas convicções, obedece unicamente à força atractiva do valor a promover, sem transigir, sem aceitar concessões. É o caso do pacifista que, à margem de qualquer análise política, se consagra a fazer reinar a paz, arriscando, se necessário, a própria vida. Há aspectos admiráveis nesta atitude, como o poder da sinceridade e o sentido da dedicação, mas muito frequentemente ela exprime o fanatismo e a intolerância. Os fracassos que os seus partidários experimentam são por eles atribuídos à estupidez dos outros, incapazes de compreender a grande causa, mas dão-se porque eles próprios são em geral destituídos de sentido crítico. A ética da responsabilidade, pelo contrário, prende a atenção do agente moral nos meios disponíveis, avalia não só as consequências como as possibilidades de êxito ou de insucesso, a fim de agir da forma mais eficaz e mais racional possível numa dada situação. Se for necessário fazer compromissos, serão avaliados tendo em conta as falhas humanas possíveis e as tensões ou conflitos que podem provocar. Terá em consideração as consequências do empreendimento e, se for caso disso, se devem comprometer o fim a atingir, renunciar-se-á à acção, por mais nobre que seja o seu objectivo. Trata-se da atitude de quem se esforça por ser lúcido e avalia o alcance das opções a fazer. Impõe-se, porém, reconhecer que ambas as maneiras de fazer moral devem coexistir. Já a ética, como reflexão sobre o facto moral, pode mais facilmente fazer abstracção de uma ou de outra. Qualquer exclusão unilateral é perigosamente redutora. No concreto do agir, não é possível fazer a economia dos princípios, das convicções, da fé, como do realismo, do sentido prático que mede as consequências dos actos humanos, opta pelo mal menor, adopta, sem excessivas intransigências, a via reformista, constrói, pouco a pouco, a melhoria das pessoas e das sociedades. Uma verdadeira ética terá que ser de «convicção» e de «responsabilidade». Sem a primeira é mero oportunismo, sem sentido porque sem princípios, e portanto sem conexão com um ideal, sem projecto para o ser humano. Mas sem a segunda acaba por também não ter sentido, visto que paira acima da vida, do real. Não encarna no concreto, no existencial. Esta exigência de integrar as duas modalidades raramente se alcança e o que acontece as mais das vezes é põr o acento tónico de tal modo numa delas que a outra parece inteiramente ausente.

O magistério, na sua oposição sistemática ao relativismo moral, tem-se vindo a situar predominantemente na área da convicção e dá, frequentemente, a impressão de não chegar a entender o propósito por parte dos teólogos de pesar as consequências dos princípios - e não só dos princípios mas também da intransigente unilateralidade invocada para a sua aplicação, como se o acto humano pudesse ser alguma vez a mera aplicação de um e só de um princípio. Chega-se a interpretar desfavoravelmente a teologia moral feita com preocupações de serviço ao povo de Deus, concreto, marcado pelo pecado e pela fragilidade, e chamado, no entanto, à santidade. A intenção pastoral, entendida em sentido genérico, apesar de presente na teologia moral dos Penitenciais à Casuística, passando pelos Manuais de Confessores, é denunciada pelo Magistério, chegando a ser nomeada e criticada na Encíclica Veritatis Splendor, embora essa sua apresentação possa ser considerada pouco exacta, ou mesmo caricaturada4. Por outro lado, nem sempre os teólogos-moralistas sublinham suficientemente a autoridade dos princípios morais e a sua fecundidade para as decisões concretas, podendo dar aos fiéis alguma impressão de oportunismo e, consequentemente, algum escândalo. Mas, honestamente, há que reconhecer que a dificuldade vem mais frequentemente do lado do magistério e dos teólogos que, na sua defesa dos princípios morais considerados ameaçados, não conseguem ver, por um lado o específico da acto humano com o seu espaço de indeterminação e de liberdade, com os seus conflitos de interesses e a exigência de «responder» pelas consequências, e, por outro, a necessidade imperiosa de dialogar, sem trair o Evangelho, com a «cultura de autonomia e responsabilidade»5, que é a do nosso tempo. No primeiro caso, quando se adopta a linha da uma defesa dos princípios, exclusiva de outras considerações, a Igreja acaba por não ter nada que dizer face aos problemas concretos que se levantam na prática. Assim, seguramente o abuso do álcool ou da droga é altamente reprovável, mas a pura reprovação é obviamente incapaz de eliminar o alcoolismo e a dependência da droga; perante isso, que fazer? Apenas repetir a condenação? Como dialogar com a realidade, como ajudar as pessoas, como tentar introduzir na sua caminhada a esperança da salvação, a correcta apreciação das suas tentativas e fracassos, à luz da Boa Nova? No segundo caso, acaba-se por também não se saber o que dizer, em plano ético, por não se ter proposta, em nome do Evangelho e, portanto, por retirar a este a sua dimensão de ponto de partida radical e revolucionário para todo o humano. De um lado, predomina um discurso que serve sobretudo para rotular os comportamentos, que, confinando-se no que é, acaba por se refugiar nas grandes certezas de ordem metafísica ou em máximas atribuídas abusivamente à autoridade divina, numa postura de tendência fundamentalista. Do outro lado, correr-se-ia o risco de, no limite, apagar a distinção absolutamente essencial entre bem e mal, entre humano e desumano, entre realizar-se e destruir-se; mais frequentemente, sem chegar tão longe, gera-se confusão quanto aos valores, a sua pertinência, a sua autoridade.

O recurso a Jesus Cristo, como referência, parece ser o único processo de superar esta crise, pelo menos entre cristãos confessos. A nível da polémica interna da Igreja parece indiscutível que só a confrontação com a sua figura e a sua mensagem podem fornecer critérios vinculativos para os cristãos; quanto ao debate mais geral da busca em torno de um verdadeiro humanismo, Jesus é, se não uma norma, pelo menos uma referência. Uma referência necessária, portanto.

Concentremos, pois, a nossa atenção sobre o exemplo, fundador e normativo, de Jesus. Como ponto de partida, considere-se que, assim como para os profetas de Israel o compromisso da Aliança deverá traduzir-se na prática da Lei, também para Jesus, a proclamação do Reino, da sua urgência e transcendência, deverá normalmente traduzir-se também ela em mudança de vida, em exigências de conduta moral. Isto de maneira nenhuma nos autoriza a fazer da mensagem de Jesus nem da dos profetas anteriores uma leitura redutora, reduzindo a Revelação a uma moral. Há, nessas mensagens, dimensões de memória e de esperança, relações com a história como salvação e com a natureza como presença e revelação de Deus, o Deus dos antepassados e da criação, com o Seu agir e com Suas promessas, que não sendo de conteúdo ético, são da máxima importância porque servem de contexto, de fundamento, de razão de ser a qualquer visão judeo-cristã da moral. Os cristãos não podem fazer coincidir a fé com uma moral; não é que, em termos práticos, tal não tenha acontecido, pois temos de reconhecer quanto o moralismo, que é precisamente essa leitura redutora, marcou e marca ainda hoje a pastoral das Igrejas cristãs. Mas não são só os cristãos a fazê-Io. Há também a proposta de retomar o conteúdo ético do cristianismo, por parte de alguns não-cristãos nossos contemporâneos, para quem, inclusivamente, o cristianismo deveria ser desembaraçado dos aspectos que consideram «míticos», como a ressurreição de Jesus e a salvação do mundo, para se poder apreender, em toda a sua pureza, a ética universalista de que é portador6 .Não esqueçamos, no entanto, aqueles outros, que, como Nietzsche, recusam frontalmente o cristianismo, sobretudo por causa da sua moral considerada negativa e culpabilizante. No fundo, embora em extremos opostos quanto à valoração da moral da mensagem cristã, coincidem na sua leitura exclusivamente em termos éticos.

Mas uma tal leitura, como aliás aquela que está implícita no moralismo de muita prática eclesial, é de recusar porque não é correcta, porque não dá conta de todos os dados e acaba por sacrificar o essencial da mensagem; concentrando-nos apenas nos textos do Novo Testamento, vemos claramente que algumas das suas dimensões essenciais, como a gratuidade do dom e o perdão, impedem essa coincidência entre a Boa Nova do Reino e uma moral. Que se pense na mulher adúltera7 ou no episódio dito do Bom Ladrão8 e vê-se que não é possível eliminar pura e simplesmente a dimensão, tão central no Novo Testamento, da Graça, em toda a sua densidade teológica. Que se pense, por exemplo, na parábola do trigo e do joio9 , que nos ensina não tanto que o ajuste de contas com os «maus» se fará só no fim dos tempos, mas sobretudo que não é connosco, o que deveria «Iibertar-nos da paixão ética da justiça que, por excesso de virtude, leva tantas vezes, neste mundo ambíguo que é o nosso, ao terror e à hipocrisia»10; que se pense na denúncia que Jesus faz do zelo dos escribas e fariseus pelo bem11 e que conduz, pelo rigor moral e seus efeitos sociais, ao efeito contrário do que se pretende, pois em vez de banir a violência acaba por instituí-Ia: é manifesto que Deus em seu Enviado se separa deste zelo, pois não castiga nem retribui12, perdoa13. Para uma visão mais total deveria referir-se, com algum pormenor, toda a polémica de S. Paulo contra os judaízantes, visados pelas Epístolas aos Gálatas e aos Romanos, como fazer alusão à algumas das lutas contra a mesma tendência na história da Igreja, nomeadamente o combate de Agostinho contra Pelágio e os seus seguidores em favor da Graça. Fico-me por uma mera evocação desses debates. Parece-me claro, no entanto, que em todos eles, se teve a percepção de que a exagerada atenção às coordenadas morais, ao esforço humano, ao culto da Lei se traduzia por um certo menosprezo da iniciativa de Deus, do Deus que se incama e que dá a vida pela vida do mundo, a ponto de, em termos práticos, tal tendência ter o seu quê de ateísmo, além de que põe em segundo plano a novidade evangélica, esvaziando a mensagem do que tem de mais original e específico.

De facto, é precisamente aqui, na relação da mensagem moral com o que a ultrapassa, mas lhe dá contexto e sentido, que encontramos a contribuição original de Jesus. O seu ensino consistiu em pôr acima de tudo Deus e o Seu projecto para o mundo, e em particular para os seres humanos, como um absoluto face ao qual tudo o mais é relativizado. Mais concretamente, em consequência dessa afirmação do absoluto do plano de Deus, vai pôr tudo em questão, exigir que tudo seja relativizado e, por conseguinte, convenientemente reformulado; a moral, como é óbvio, não escapa a esta operação.

Em primeiro lugar, Jesus não se identifica com a ética vigente, aceite tanto pelos que se consideravam justos como pelos que se consideravam pecadores. Além dos já mencionados episódios da mulher adúltera e do Bom Ladrão, lembremos que foi acusado de frequentar pecadores e mulheres de má reputação e de ser ele próprio um pecador por ter curado um cego de nascença a um sábado14. Parece claro que encontrou nos «puros» do seu tempo os seus adversários mais irredutíveis, tendo-os desautorizado a todos, ao proclamar que aos moralmente condenados seria mais fácil a entrada no Reino de Deus15. No que diz respeito à moral objectiva, socialmente aceite, foi extremamente incómodo, porque no seu ensino, a todos, justos e pecadores, desaloja das suas seguranças e não cessa de pedir a conversão. «Não vim trazer a paz, mas a espada»16, essa espada que divide os homens, pelas suas diferentes atitudes face ao Enviado, que uns reconhecem e outros negam. O verdadeiro objectivo prosseguido por Jesus, na sua acção, é proporcionar o reconhecimento do Absoluto de Deus, na atitude radical da fé, que compromete toda a vida para com Deus, presente em Si e na Sua acção, com vista à salvação. Compromete toda a vida e, portanto, necessariamente terá repercussões revolucionárias sobre os comportamentos, sobre a moral.

É esse objectivo que nos fornece a chave de leitura daquilo que se tem considerado a recolha do ensino moral de Jesus, a sua proposta aos discípulos de uma «justiça maior que a dos escribas e fariseus17». O Sermão da Montanha tem, com efeito, espantado muitos pelo seu «exagero», pelo seu irrealismo utópico18, e levantado, ao longo da história da Igreja, enormes dificuldades de interpretação. Isso se deve em grande parte à tendência de tudo, em moral, reconduzir à categoria de norma e de não reconhecer valor nem utilidade ao que o não for. Mas o texto resiste a esse tratamento. Não podem, de facto, entender-se como normas de valor absoluto, como as prescrições do novo Moisés, estabelecendo o código de leis da Nova Aliança, passagens -totalmente ausentes, aliás, dos escritos joânicos e não retomadas pelo conjunto das epístolas- onde se diz ser preferível arrancar um olho, ou a mão ou o pé a ser arrastado para a queda por um desses órgãos, onde se proíbe a repudiação, o juramento e toda a linguagem para além do «sim» e do «não», onde se ordena que não se resista ao agressor, mas que se estenda a outra face, que se dê tudo aos que pedem e mais do que pedem, que se odeie pai e mãe por Ele, que se viva despreocupado como os lírios do campo e as aves do céu, que se despreze o dinheiro, etc. Poderá talvez dizer-se que, em termos práticos, acabou por prevalecer a leitura eclesial que, perante a impossibilidade de tomar tais afirmações como normas e de as tentar aplicar na vida, não lhes encontra significado teórico ou prático. A única excepção, como é sabido, é a que se refere à proibição do repúdio, entendida como norma em sentido estrito, mas que, curiosamente, é precisamente aquela de que se encontram excepções nos escritos do Novo Testamento19.

De facto, as exigências de Jesus, expressas no Sermão da Montanha de forma muito viva, à base de imagens, quase parabólicas, transpõem a exigência radical do compromisso face ao Absoluto de Deus para o campo ético, mas terão que ser repensadas e traduzidas para outros contextos culturais. Essa delicada operação em nada Ihes deverá sacrificar a radicalidade da opção, antes consistirá no encontrar de uma expressão existencial que as encame e Ihes dê vida. No fundo, a perspectiva aqui afirmada, a da submissão de toda a vida humana, e portanto da moral, ao que a transcende, ao Reino, apresenta-se como absolutamente indiscutível, mas ao mesmo tempo como necessitando de ser completada, desdobrada em normas e modelos de acção. Jesus, no seu ensino moral, reivindicou dos seus discípulos essa referência ao que transcende a moral, mas, sem em nada diminuir a exigência, acrescentou-lhe a obrigação de encontrar os processos de trazer ao concreto de cada vida a expressão pessoal da opção estruturante e radical. Assim também, a referência à transcendência, a esse ponto de apoio exterior à moral, dando sentido a tudo, vai permitir a hierarquização das verdades morais20. E na mesma linha, do ponto de vista das opções e dos comportamentos, ponto de vista propriamente ético, resulta claro que observar a Lei, cumprir os mandamentos não é suficiente: acima disso há o seguimento, a exemplaridade de Jesus, que se traduz na caridade21.

Não é suficiente, mas nem por isso deixa de ter interesse, mais, de ser em verdade necessário. Pode dizer-se que o ensino moral de Jesus, no que tem de mais autêntico, postula, na sua radicalidade, uma ética da convicção, mas exige igualmente, numa lógica que tem a ver com a própria incamação, uma ética de responsabilidade. Baseia-se todo ele na submissão ao princípio absoluto e defendido intransigentemente de uma identificação com Jesus, em termos de seguimento e imitação; e vai traduzir-se imperativamente numa responsabilização, num advento do sujeito moral, que se exprime na prioridade da intenção22, na caridade, único necessário23, interpretada não como preceito mas como mandato, e no apelo ao discemimento24 , numa palavra, na responsabilização expressa e sugerida pela parábola dos talentos25.

O ensino moral de Jesus, por ser simultaneamente fundamentado na obediência da fé (convicção) face à transcendência do Reino e criatividade responsável na invenção pessoal de um caminho de seguimento e imitação do Senhor vem apoiar a percepção de que convicção e responsabilidade reciprocamente se completam e exigem. Não há a menor contradição, nem pode haver, entre a atitude de submissão radical na fé e o assumir o protagonismo de, em liberdade cristã, conduzir a própria vida, visto que o projecto divino a que se adere é o da salvação, libertação e realização dos seres humanos e ficaria truncado, e até desfigurado, se não incluísse a sua colaboração, o seu empenhamento consciente, se apenas o tivessem que acolher passivamente e não o construíssem. A fecundidade da proposta ética de Jesus situa-se, pois, no ter centrado a vida moral na verdade da sua referência ao divino, de lhe ter estabelecido um sentido, em metodologia teleológica, ou seja uma meta, e um estatuto de liberdade, uma via aberta e, ao mesmo tempo, balizada pelo Seu exemplo, expresso no primado do amor, ou seja um caminho, um meio. Do mesmo modo se vê que qualquer unilateralismo, ao sacrificar uma das duas vertentes, afasta da autenticidade cristã.

O reconhecimento efectivo desta autenticidade contribuirá para superar algumas das dificuldades intra-eclesiais antes mencionadas. Assim, se a defesa intransigente dos princípios morais em si mesmos se passar a fazer sobretudo no seu fundamento, a transcendência do Reino que Jesus anunciou e em que os cristãos põem a esperança, se, além disso, se admitir que o facto da conversão, a aceitação desse mesmo Reino impõe, por si mesmo, o compromisso de conduzir responsavelmente a própria conduta e introduz os seguidores de Jesus num espaço de verdadeira, mesmo se condicionada, liberdade26, se esta nova abordagem se impuser, muito da incompreensão do debate actual se desvanecerá e se concentrará nas verdadeiras e prementes questões que se nos põem.

Ousamos pensar que o reconhecimento destas verdades na vida interna da Igreja -já que a verdade liberta -contribuiria para que o seu testemunho superasse muitas das incompreensões em que vivemos. Em particular, ao impor uma outra visão da Igreja, situando-a no terreno em que a liberdade é apreciada e defendida, ajudaria a recuperar algumas das coordenadas de diálogo com a cultura contemporânea propostas pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes, esse diálogo que, dez anos depois, o Papa Paulo VI, com enorme coragem e lucidez, lamentava não existir27. Prolongando o mesmo reconhecimento do apelo da transcendência e do espaço de liberdade com os de fora, a Igreja, vivendo o compromisso de escutar e aprender com o Mundo, de respeitar as suas autonomias28, não poderá deixar de encontrar a oportunidade de Ihes anunciar Jesus, o Salvador .

Falar-se de Jesus como uma necessária referência ética significa que toda a busca da verdade neste campo, tanto no diálogo interno da Igreja como por parte dos cristãos face aos que o não são, não pode deixar de se referir à verdade do seu ensino e testemunho e dela partir: Ele é a Verdade, o Caminho e, portanto, a Vida.

_____________________________

NOTAS

1 Cf. Evangelii Nuntiandi, 4.

2 A título de exemplo, recordemos a bela página de Eça de Queirós em A Cidade e as Serras, Obras de Eça de Queiroz, Porto, Lello e Irmão, vol. I, p. 429: «...eis pois esperança da terra novamente posta num Messías... Um decerto desceu outrora dos grandes Céus; e para mostrar bem que mandado trazia, penetrou mansamente no mundo pela porta dum curral. Mas a sua passagem entre os homens foi tão curta! Um meigo sermão numa montanha, ao fim duma tarde meiga; uma repreensão moderada aos fariseus que então redigiam o Boulevard; algumas vergastadas nos Efrains vendilhões; e logo, através da porta da morte, a fuga radiosa para o Paraíso! Esse adorável filho de Deus teve demasiada pressa em recolher a casa do Pai! E os homens a quem incumbira a continuação da sua obra, envolvidos logo pelas influências dos Efrains, dos Treves, da gente do Boulevard, bem depressa esqueceram a lição da Montanha e do lago de Tiberíade - e eis que por seu turno se revestem de púrpura, e são bispos, e são papas, se aliam à opressão e reinam com ela, e edificam as duração do seu reino sobre a miséria dos sem-pão e dos sem-Iar! Assim tem de ser recomeçada a obra da Redenção. Jesus, ou Guatama, ou Cristna, ou outro desses filhos que Deus por vezes escolhe no seio duma Virgem, nos quietos vergéis da Ásia, deverá nova- mente descer à Terra da Servidão. Virá ele, o desejado? Porventura já algum grave rei do Oriente despertou, e olhou a estrela, e tomou a mirra em suas mãos reais, e montou pensativamente sobre o seu dromedário? Já por esses arredores da dura cidade, de noite, enquanto Caifás e Madalena ceiam lagosta no Paillard, andou um anjo, atento, num voo lento, escolhendo um curral? Já de longe, sem moço que os tanja, na gostosa pressa dum divino encontro, vem trotando a vaca, vem trotando o burrinho?»

3 Esta caracterização das duas éticas deve-se fundamentalmente a Julien Freund em Weber (Max), in Encyclopedia Universalis, vol.16 , p. 973.

4 Cf. VS 56.

5 GS 55.

6 Cf. Christian Duquoc op, Speciftcité chrétienne de l'approche éthique, in Revue d'éthique et de théologie morale «Le Supplément», 217 (juin-juillet 2001), p.71- 85, sobretudo pp. 72-75.

7 Jo 8:1-8.

8 Lc 23: 39-43.

9 Mt 13: 24-31.

10 Chr. Duquoc, loc. cit., p. 84.

11 Mt 23: 1-37.

12 Mt 20: 1-16.

13 Lc 23:34.

14 Jo 8:11.

15 Mt 21:32.

16 Mt 10:34.

17 Mt 5: 20.

18 Não esqueçamos que ele constitui para M. Weber, o exemplo clássico da ética da convicção.

19 Cfr. Mt 5:32; 19:9; 1 Co 7:15.

20 Mt 23:23.

21 Lc 18: 18-22 (particularmente v. 22) e paralelos.

22 Mt 5:20; Mc 7:18-23.

23 1 Co 13:1-3.

24 Rm 12:2; Fil1:10; Ef. 5:8-10; 1TeI5:21.

25 Mt 25:14-30.

26 Gal 5:1,13.

27 Ao escrever na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (1975): «A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama do nosso tempo» (n. 20).

28 GS 36.