Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

40 Anos de Impasses em Teologia Moral
MATEUS CARDOSO PERES

 

1. Nota Prévia
2. O Concílio
3. O Pós-Concílio: Uma História Atribulada
3.2. A Razões
4. Balanço provisório
4.1. Da parte do magistério
4.2. Da parte dos autores de teologia moral
5. O que se fazia entretanto no ISTA

4. Balanço provisório
4.1. Da parte do magistério:
entre «colagem» aos integristas e discernimento entre uns e outros

Com a VS fecha-se um ciclo? Encerra-se um período que seria também o da passagem de uma grande proximidade por parte do magistério ordinário relativamente às posições integristas para o assumir de uma posição mais de discernimento entre as várias correntes, reservando-se a função de árbitro? Agrada-me pensar que sim, embora ainda seja muito cedo para se dizer. As coisas, aliás, nunca se passam de forma perfeitamente linear. De facto, depois da VS, registaram-se muito menos intervenções magisteriais, com relevo para a Encíclica Evangelium Vitae, de 25/03/1995, de cariz bastante mais consensual e positivo.

Em ordem a dar um pouco mais de conteúdo a esta hipótese –não se trata senão de uma hipótese, repito- de um ciclo que se fecha, permitam-me um paralelo. Todos temos consciência de que as questões debatidas durante o período focado se situam na área daquilo que se tem chamado a moral pessoal [vida, saúde, sexualidade], acabando por levantar, como ficou dito, a “necessidade” de clarificar algumas questões a nível de moral fundamental, o que se tentou com a VS. E que se passou com a moral social? De facto, os seus temas não deixaram de interessar e houve inclusivamente várias intervenções em matéria social (1). Mas tudo se passou de forma bem diferente: com apresentações muito menos dramatizadas, com acolhimentos muito menos polémicos (2).

É, aliás, um ponto assente que os tratamentos destas duas áreas da teologia moral, a pessoal e social, particularmente por parte dos órgãos do magistério foram, no período estudado, muito distintos um do outro (3), sendo o segundo, o social, no seu todo, menos polémico, menos dramatizado. Parece igualmente incontroverso o facto de, no campo social, a intervenção doutrinal do magistério, que se iniciou, de forma estruturada, bem mais cedo (4), ter efectuado todo um percurso que, em si mesmo, pode ser considerado elucidativo.

Não é possível fazer aqui, a esse respeito, mais do que um simples esboço, uma evocação. Nascendo como uma doutrina social alternativa face aos «erros» contrapostos do liberalismo e do socialismo, essa intervenção aparece aos olhos de muitos dos seus cultores e provavelmente na intenção do seus autores como uma «terceira via» intermédia, aproveitando de uns e de outros o que tivessem de válido, mas evitando os seus erros. Mas, de facto, enquanto proposta operativa, como doutrina sócio económica, verifica-se que a sua aplicabilidade na solução de problemas concretos é diminuta. Apesar de proposta como referência e inspiração, na área da reconstrução europeia, após a guerra de 39-45, nomeadament6e na Alemanha, a Doutrina Social da Igreja é, depois disso, submetida a duras críticas (5), a ponto de se falar com verdade da «crise da Doutrina Social da Igreja» e de praticamente não aparecer nos textos do Concílio Vaticano II. Ligada a um modelo de Igreja excessivamente hierárquico e centralizador, não reconhecendo suficientemente a autonomia das realidades sociais em tempo de secularização, sem se conseguir encontrar dados especificamente cristãos, revelados, no seu conteúdo, aparecendo a muitos como predominantemente ideológica e ineficaz no plano social, a Doutrina Social da Igreja atingiu na segunda metade do século XX uma situação de impasse (6).

Estas críticas e todo este mal-estar não nos impõem, parece-me, o abandono definitivo da intervenção da Igreja, em seu magistério, sobre o social. Na carta comemorativa dos 80 anos da Rerum Novarum, Paulo VI, ao reconhecer a dificuldade de «pronunciar uma palavra única e propor uma solução que tenha valor universal», responsabiliza as comunidades cristãs por encontrarem, na diversidade das situações concretas, as respostas possíveis a formular e a implementar (7). Sem esse tipo de intervenção, abstracto e ideológico, mantém-se, no entanto, a necessidade e a fecundidade de intervenções de outro tipo: passa se do propriamente doutrinal - embora se continue a falar, como sempre, de Doutrina Social da Igreja- a um discurso mais de caracter profético. Discurso que veicule a inspiração humana e evangélica, motivadora da intervenção social, diversificada e criativa, discurso que denuncie de forma corajosa e lúcida o desumano, apele à solidariedade. Quanto ao mais, reconheça-se liberdade de opção e de acção, em consciência, em diálogo com os homens e as mulheres nossos contemporâneos, no espírito da GaudiumetSpes, segundo as circunstâncias.

Embora não seja possível substanciar aqui, por falta de espaço, as afirmações precedentes, penso que seria relativamente fácil fazê-lo. Mas o que realmente me interessa, no contexto deste balanço, é levantar -de forma puramente especulativa, bem sei - a possibilidade de uma evolução paralela vir a realizar-se, mais, se estar a realizar, no campo da moral pessoal. Porque é que esta, e particularmente a moral sexual, tem que ser diferente? Sabe-se quantas dificuldades o pensamento católico, desde os autores na esteira de Agostinho até à casuística, encontrou no tratamento equilibrado, livre da sexualidade. É manifesto, porém, que, nas últimas décadas, algo mudou na sensibilidade ética a este respeito. Pode ter-se ido longe demais nessa evolução - em numerosos casos isso seguramente aconteceu, o que é lamentável - mas, apesar disso, é legítimo avançar especulativamente, é certo, com a ideia que um tratamento menos angustiado, deixando mais espaços à responsabilidade e à consciência pessoais, o que seria, neste campo da moral sexual como da bioética, possível, desejável e benéfico. À imagem do que se desenhou no campo da moral social. De todas as formas, caberia à Igreja, em seu magistério, alertar para as implicações do respeito da dignidade humana e denunciar os atropelos de que é vítima, estabelecer, quando possível, as balizas do intolerável, não pondo, porém, tudo no mesmo pé de gravidade e de certeza, com posições firmes, mas em diálogo aberto. Numa palavra, essa intervenção procuraria defender e propor intransigentemente os grandes princípios na sua generalidade, pois sem o seu acatamento as soluções não serão nem verdadeiras nem soluções e assim formar as consciências, mas reconhecendo a impossibilidade de dar uma solução para cada problema individual, até porque no concreto muito frequentemente se dão conflitos de valores - as opções concretas não são entre o bem e o mal, mas entre dois bens, ou valores, ambos reais mas ambos limitados-, abandonar a tarefa de se pronunciar e tomar posição sobre todos os problemas, exaustivamente, até ao pormenor, confiando aos agentes morais a responsabilidade de elaborarem eles, caso a caso, as respostas adequadas.

 

(1) Para não referir senão as intervenções dos Papas contamos, desde o Vat. II, com a Encíclica Populorum Progressio (1967) e a Carta Apostólica Octogesima Adveniens (1971) de Paulo VI, e com as Encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e CentesimusAnnus (1991) de João Paulo II.

(2) Permanece inteiramente válido o estudo de Jean-Yves Calvez, Morale sociale et morale sexuelle in Études, mai 1993 (3785), pp. 641sv.

(3) Refiro-me, como é óbvio, à Encíclica Rerum Novarum de 15 de Maio de 1891.

(4) Cfr. Marciano Vidal, Moral de Actitudes, III Moral Social, 5ª ed., pp. 49-60.

(5) Cfr. Marie-Dominique Chenu, La «doctrine sociale» de l'Église comme idéologie, Paris, Cerf, 1979.

(6) Octogesima Adveniens, 4.

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