Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

OS ESTUDOS BÍBLICOS HOJE:
Pluralidade dos métodos,
das abordagens e dos resultados

FRANCOLINO J. GONÇALVES

École Biblique et Archéologique Française . Jerusalém

 

C. Teologias no AT
1. Pluralismo das abordagens teológicas do AT

 
A teologia bíblica como disciplina académica independente nasceu a 30 de Março de 1787, o dia em que Johann Philipp Gabler, ao tomar posse da Cátedra de Teologia na Universidade de Altdorf (Alemanha), pronunciou uma oração de sapiência intitulada: “Discurso sobre a exacta distinção entre a teologia bíblica e a teologia dogmática e sobre a correcta determinação dos limites de cada uma delas” (1).

Desde os seus começos até à década de 1970, o estudo teológico do AT apoiou-se naturalmente na exegese histórico-crítica, a única exegese científica que se praticava. O estudo da teologia do AT teve o seu período áureo entre 1930 e 1960. Interrompida pela Segunda Grande Guerra (1940-1945), a publicação de teologias do AT recomeçou uma vez terminadas as hostilidades. Foi então o começo do que no mundo anglo-americano se chama “o Movimento da Teologia Bíblica”. Entre os seus traços pode assinalar-se a insistência na originalidade do AT, atribuída ao que se pensa ser o carácter único do pensamento hebraico. Uma das principais particularidades do pensamento hebraico seria a concepção linear do tempo, na qual assenta o conceito de história. Enquanto “Israel” teria tido desde o começo uma visão linear do tempo, os povos vizinhos estariam encerrados na visão cíclica do mesmo, sugerida pelo eterno retorno das estações do ano. Nisso assentaria a diferença fundamental entre a autêntica religião de “Israel”, essencialmente histórica, e as religiões dos povos vizinhos, mormente dos Cananeus, essencialmente naturistas.

A Teologia do Antigo Testamento por excelência e aquela que, de muito longe, maior influência tem exercido nas últimas cinco décadas deve-se a von Rad (2). Segundo este exegeta, a teologia do AT não consiste em aplicar uma série de noções para medir os textos – o que era a prática corrente – mas sim em descobrir o que o próprio Israel confessa. Essas confissões são tomadas de consciência das relações entre Iavé e o seu povo. A mais importante é: “Iavé que fez sair Israel do país do Egipto”. Outras designam Iavé como aquele que chamou os Patriarcas e lhes prometeu o país de Canaã. A fé de Israel expressou-se nos resumos da história da salvação, de que o credo histórico de Dt 26,5-9 é um bom exemplo. As relações entre Iavé e o seu Povo expressam-se assim numa trama histórica. Essa história não é a que os historiadores tentam reconstituir, mas a que Israel confessa, isto é, a história da salvação. Expressando o AT a história da salvação, uma teologia do AT deve ser de cariz histórico. A sua principal tarefa é recitar de novo a história da salvação. A teologia do AT é plural. Não existe só uma, mas várias, segundo as épocas, as tradições e os livros. As várias teologias são irredutíveis a um sistema. Tentar organizá-las num sistema implicaria privar cada uma delas da sua originalidade e da sua especificidade. Por isso, von Rad apresenta cada uma das tradições, primeiro as históricas (Hexateuco) e depois as proféticas.

Em contraste flagrante com a década precedente, na década de 1960 não se publicou nenhuma obra intitulada “Teologia do Antigo Testamento” digna de menção. A obra magistral de von Rad terá tornado inútil qualquer outra do género? O seu sucesso terá impedido qualquer veleidade de lhe fazer concorrência? É possível que esses factores expliquem em parte o retraimento na publicação de obras de teologia do AT. No entanto, vários indícios apontam antes para uma perda de confiança na teologia do AT como disciplina e um cepticismo em relação a ela. Com efeito, a ausência de novas obras de teologia do AT contrasta com a profusão de reflexões metodológicas sobre essa disciplina, cuja viabilidade é não raro posta em dúvida abertamente. Vários artigos então publicados têm como títulos: “Existirá uma Teologia do Antigo Testamento?”(3) “Será possível uma Teologia do Antigo Testamento?” (4) “Pode-se escrever uma ‘Teologia do Antigo Testamento’?”(5).

Esta busca teve um desfecho um pouco paradoxal. Por um lado, há quem negue à teologia do AT o direito à existência. Por outro lado, assiste-se à proliferação de obras intituladas “Teologia do Antigo Testamento”, baseadas umas na exegese histórico-crítica, outras em novos métodos ou abordagens.

 

(1) Oratio de juste discrimine Theologiae biblicae et dogmaticae regundisque recte utriusque finibus . O texto foi publicado, postumamente, mais de quatro décadas depois, pelos filhos do autor: T. A. G abler e J. G. G abler, D. Johann Philipp Gablers Kleinere theologische Schriften. 2 vol., Ulm, Stettin, 1831, vol. 2, pp. 179-198.

(2) G. von Rad, Theologie des Alten Testaments. Band I. Die Theologie der geschichtlichen Überlieferungen Israels, München, Chr. Kaiser Verlag, 1957; Band II. Die Theologie der prophetischen Überlieferungen Israels, München, Chr. Kaiser Verlag, 1960. Foi objecto de várias edições, de traduções em várias línguas, de numerosas recensões e de outros estudos. Assinalo dois dos mais recentes : Martin R ose, «L’Ancien Testament : Livre d’une attente. Le concept d’histoire comme clef d’interprétation dans l’œuvre de Gerhard von Rad», Revue de Philosophie et de Théologie 121 (1989) 407-421 ; Jan H olman, « La Théologie de l’Ancien Testament de Gerhard von Rad . D’où vient un tel succès ?», Sémiotique et Bible 87 (1997) 31-47.

(3) P. Wernberg-Möller, «Is There an Old Testament Theology?», Hibbert Journal 59 (1960) 21-29.

(4) J. van der Ploeg, «Une “Théologie de l’Ancien Testament ” est-elle possible ?», ETL 38 (1962) 417-434; Patrick F annon, «A Theology of the Old Testament – Is It Possible ?», Scripture 19 (1967) 46-53.

(5) R. de Vaux, « Peut-on écrire une “Théologie de l’Ancien Testament” ? », em Mélanges offerts à M.-D. Chenu (Bibliothèque Thomiste 37), Paris, J. Vrin, 1967, pp. 439-449 = R. de Vaux, Bible et Orient, Paris, Les Éditions du Cerf, 1967, pp. 59-71.

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