Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

OS ESTUDOS BÍBLICOS HOJE:
Pluralidade dos métodos,
das abordagens e dos resultados

FRANCOLINO J. GONÇALVES

École Biblique et Archéologique Française . Jerusalém

 

b. Pluralismo dos estudos teológicos do AT

A grande maioria dos especialistas admite não só a legitimidade do estudo da teologia do AT, mas também a sua conveniência. Existem, no entanto, grandes diferenças relativamente ao seu objecto e, por conseguinte, também ao seu estatuto epistemológico e aos seus métodos. A maioria das obras de teologia do AT continuam a basear-se na exegese histórico-crítica e seguem os modelos clássicos.

Umas são de orientação doutrinal, procurando sistematizar o conteúdo teológico do AT. Reproduzem em geral modelos tomados das teologias sistemáticas cristãs, dependendo por isso da teologia dogmática do autor e, em definitivo, da sua confissão. Os autores destas teologias impõem assim ao AT uma grelha de leitura exterior, que pode não lhe ser conatural. Mesmo as teologias que mais se libertam do modelo dogmático, raramente escapam à busca do que, seguindo os alemães, costuma chamar-se o “Centro” (Die Mitte) do AT, isto é, o tema fundamental que unificaria o AT e serviria de fio condutor. As duas últimas tentativas de que tenho conhecimento procuram identificar o centro dos dois testamentos. Para Janowski, seria a Xekiná, termo judaico pós-bíblico que designa a habitação divina ou a imanência (1). Para Spieckermann, seria o amor fiel de Iavé (hesed) (2). Apesar de todos os esforços para o encontrar, o “centro do AT” parece tão inaccessível como o Santo Graal. Na minha opinião, é ilusório procurar um só fio condutor do AT dentro dele próprio. A sua chave hermenêutica vem-lhe do exterior: do NT ou, melhor dito, de Jesus Cristo, para os cristãos; da Torá oral, para os judeus.

Outras teologias continuam a servir-se do conceito de “História da Salvação” como chave de leitura do AT. Também elas são redutoras. Por razões que não têm nada a ver com o próprio AT, privilegiam em excesso a história em detrimento da criação/natureza. Ora, tudo indica que a criação, com cujo relato começa o AT, ocupa nele um lugar fundamental, como ocupa nas demais religiões do Próximo Oriente antigo, pelo menos nas demais religiões semíticas.

O estado-unidense Brueggemann, um dos autores mais prolíficos na matéria nas últimas duas décadas, propõe uma teologia baseada numa análise retórica (3). Para ele, o AT é de uma ponta à outra um discurso sobre Iavé (Deus). Empregando a metáfora forense, Brueggemann vê no AT o testemunho que Israel dá de Iavé, distinguindo nele quatro formas:

- “O testemunho nuclear de Israel” (Israel’s Core Testimony). É constituído pelos textos que louvam a Iavé pelas suas acções a favor de Israel ou de um indivíduo. Trata-se de textos usados no culto, acções de graças, hinos, etc.

- “Contra-testemunho de Israel” (Israel’s Countertestimony). É formado por textos em que Israel ou os judeus se lamentam dos males que os afligem ou reflectem sobre a ambivalência de Iavé, que pode ser uma fonte de mal. Trata-se de Salmos, textos proféticos e sapienciais.

- “Testemunho espontâneo de Israel” (Israel’s Unsolicited Testimony). É um testemunho indirecto. Está contido nos discursos sobre as relações de Israel com Iavé, nomeadamente a relação de aliança e outras formas de “parceria”.

- “Testemunho incorporado de Israel” (Israel’sEmbodied Testimony). São os textos relativos às diferentes formas de mediação: Lei, Rei, Profeta, Culto, Sábio. Essas mediações possibilitam a experiência de Iavé em diferentes manifestações intelectuais e culturais.

Segundo Brueggemann, a teologia do AT é essencialmente a análise retórica desses diferentes tipos de testemunho que Israel dá de Iavé. O seu objectivo é saber o que Israel diz da realidade e do carácter de Deus, e também como o diz. A análise retórica deixa de lado as questões históricas, que sempre dominaram a teologia do AT, assim como as questões dogmáticas, que nela desempenharam geralmente um papel importante.

Menciono, por fim, as teologias que assentam numa leitura canónica do AT. O seu principal expoente é outro estado-unidense, Childs, autor muito prolífico sobre a questão (4). Numa perspectiva assumidamente cristã, estas teologias interpretam cada uma das passagens bíblicas à luz do conjunto das Escrituras cristãs, Antigo e Novo Testamento. Prescindindo do sentido e da função originais, as teologias canónicas ficam privadas de uma boa parte da dimensão humana dos textos. Por conseguinte, empobrecem-lhes a capacidade reveladora. Com efeito, dado o princípio da incarnação, fundamental no cristianismo, é através da experiência humana que Deus se revela.

 

(1) Bernd Janowski, «Theologie des Alten Testaments. Plädoyer für eine integrative Perspektive», em A. L emaire (ed.), Congress Volume Basel 2001 (SVT 92), Leiden– Boston, Brill, 2002, pp.241-276.

(2) Hermann Spieckermann, «God’s Steadfast Love. Towards a New Conception of Old Testament Theology», Bib 81 (2000) 305-327.

(3) Menciono só o seu opus magnum sobre a questão: W. B rueggemann, Theology of the Old Testament: Testimony, Dispute, Advocacy, Minneapolis, MN, Fortress Press, 1997.

(4) Assinalo só os títulos mais importantes: B. S. C hilds, Biblical Theology in Crisis, Philadelphia, Westminster Press, 1970; Id., Introduction to the Old Testament as Scripture, London, SCM Press, 1979; Id., Old Testament Theology in a Canonical Context, London, SCM Press, 1985; Id., Biblical Theology of the Old and New Testaments: Theological Reflection on the Christian Bible, Minneapolis, Fortress Press, 1993.

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