Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

FERNANDO OLIVEIRA,
O CONSTRUTOR DO MITO DE PORTUGAL

José Eduardo Franco

 

“Não estudamos o passado como um objecto dado, matéria de observação, mas sim, sempre, como objecto construído, e a reconstrução só com materiais do presente se pode efectuar”. Magalhães Godinho (1)

 

1. Considerações preliminares
2. Évora na ideografia mítica de Portugal
e a crítica a André de Resende

3. A ideia de Portugal
3.1. Um reino de fundação e direito divino
3.2. A identidade essencial da nação portuguesa

3.3. O mito das origens e a utopia do destino
de Portugal

1. Considerações preliminares

Fernando Oliveira (1) (c. 1507-c.1582), formado em Évora no Convento dos Dominicanos, foi um dos mais originais e mais multifacetados escritores do Humanismo português. Esta figura cimeira da intelectualidade de Quinhentos, cuja competência no campo da engenharia de construção naval, da arte de pilotagem marítima e da estratégia da guerra no mar chegou a ser reconhecida internacionalmente, destacou-se na escrita de obras pioneiras no quadro da cultura e da ciência nacionais (2).

Além de ter redigido os primeiros tratados de navegação e de construção naval, contribuiu para o estudo e codificação da nossa língua com a elaboração da primeira Gramática de Língua Portuguesa (1536), sendo esta também a primeira obra da sua carreira intelectual. Já no fim da sua longa vida de labuta profissional, política e intelectual empreende, no quadro do pleito sucessório de 1580, a elaboração de um ambicioso projecto historiográfico de escrita da história global do reino de Portugal, a que acaba por dar o título pioneiro de História de Portugal (3). Esta que é a primeira história do reino assim nomeada (editada criticamente por nós há poucos meses), foi escrita para tomar posição no quadro da crise dinástica desencadeada após Alcácer-Quibir, através da consignação de uma peculiar ideografia de Portugal. Revelando-se um dos livros mais significativos do proto-nacionalismo português, esta obra historiográfica edifica um verdadeiro mito de Portugal, a fim de definir e afirmar a sua identidade essencial como nação e a sua missão no mundo, num contexto europeu mais alargado de afirmação das nacionalidades.

Nesta perspectiva, Fernando Oliveira inscreve-se na tradição dos historiadores das denominadas “histórias gerais”, que assentavam e partiam do paradigma fontal e estruturante da perscrutação da historiogénese das nações. A este programa historiográfico típico desta época, Donald Kelley chamou “a obsessão pelo problema das origens”(4). A obra historiográfica deste humanista português, orientada para cumprir fins político-ideológicos que se denunciam serem bem precisos, está eivada, em certa medida, dos traços característicos do pensamento mítico. E o pensamento mítico "é inseparável de uma exaltação de todos os primeiros começos" (5). Portugal é inserido na história do mundo, na óptica universal que é dada pela historiogénese consignada no primeiro livro da Bíblia. A história de Portugal é assim colocada em relação com a história do mundo e situada na génese primeira da destinação universal dos povos e das nações, decidida por Deus e concretizada através de Nóe e dos seus descendentes.

O historiador Fernando Oliveira inscreve-se na corrente historiográfica europeia, que padecia de um deslumbrado fascínio pelas origens, e que empreendeu a construção dos mitos das nações. É especialmente a partir do século XVI que se desenvolve uma espécie de mercado europeu dos imaginários nacionais ou das mitologias nacionais. A partir desta literatura histórica pode-se escalpelizar e distinguir uma tipologia dos mitos das origens das nações que, nessa época, foram delineados com grande envergadura nos círculos culturais da maioria dos países europeus, de que se conhece exemplos comparativamente interessantes, particularmente na Espanha, na França, na Alemanha, nos Países Baixos, na Hungria e na Rússia. Os estados e os reinos recentes ganham, no dealbar da modernidade, a consciência e a convicção de que têm uma origem muito antiga, inscrita nos primórdios genesíacos da humanidade. Assim sendo, configuram uma idade de ouro que distingue em excelência a primeira idade das nações. Neste processo estabeleceu-se uma dicotomia entre esse passado fulgurante e a história actual. Essa dicotomia é demarcada pelo optimismo que caracteriza a visão das origens e o pessimismo em face da avaliação das condições do presente. E em todas estas obras historiográficas dos diversos países, a exploração do tema das origens é orientado para fins políticos mais ou menos imediatos (6).

 

(1) A oscilação da ortografia do nome deste autor - Fernão de Oliveira ou Fernando Oliveira - deve-se à confusão típica da sua época quanto ao modo de grafar estes onomásticos, pelo que optámos pela grafia mais moderna deste nome, sendo esta, aliás, aquela que é usada na sua obra historiográfica, conforme defende Paul Teyssier. Ao mesmo tempo esta confusão é o testemunho da evolução linguística que se estava a operar no século XVI. Cf. TEYSSIER, Paul, L´«História de Portugal» de Fernando Oliveira d´après le Manuscrit de la Bibliothèque Nacional de Paris, Separata das Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Lisboa, s.n., 1959, p. 359

(2) Cf. Francisco Contente Domingos, Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XVI: os Tratados de Fernando Oliveira, Lisboa, Instituto de Investigação Tropical, 1985.

(3) Esta que é a primeira História de Portugal assim nomeada juntamente com o seu esboço que a precedeu chamado Livro da Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal encontravam-se até há pouco tempo manuscritos e inéditos no Fundo Português da Biblioteca Nacional de Paris (ms. nº 12). A primeira edição crítica desta obra feita por nós veio a lume recentemente. O nosso trabalho aqui apresentado é o resultado de uma parte desse trabalho de investigação e análise crítica: cf. José Eduardo Franco, O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal e a sua função política, Lisboa, Fundação Maria Manuela e Vasco de Albuquerque d’Orey/Roma Editora, 2000.

(4) KELLY, Donald R., Foundations of Modern Historical Scholarship. Language, Law, and History in the French Renaissancy. New York/London, Columbia University Press, 1970, p. 302.

(5) BACKER, Jean-Louis, "Mythe et ideólogie", in Mythes, images, representations - Actes du XIV Congrès de la Sociète Française de Litérature Generale et Comparée, Paris/Limoges, Trames, 1981, p. 22.

(6) Cf. BRUHNS, Hinnerk & BURGUÈRE, André (Org.), Historiographies et représentations nationales en Europe (Table Ronde Internationale, 19 de Junho de 2000), Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales - Textos Policopiados, 2000 ; e Walter Benjamin, «Theses on the Philosophy of history» in Hannah Arendt (org.), Illuminations. Essays and relfections , New York, 1968, pp. 253-264.

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