Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

FERNANDO OLIVEIRA,
O CONSTRUTOR DO MITO DE PORTUGAL

José Eduardo Franco

 

“Não estudamos o passado como um objecto dado, matéria de observação, mas sim, sempre, como objecto construído, e a reconstrução só com materiais do presente se pode efectuar”. Magalhães Godinho (1)

 

1. Considerações preliminares
2. Évora na ideografia mítica de Portugal
e a crítica a André de Resende

3. A ideia de Portugal
3.1. Um reino de fundação e direito divino
3.2. A identidade essencial da nação portuguesa

3.3. O mito das origens e a utopia do destino
de Portugal

3.2. A identidade essencial da nação portuguesa

A identidade essencial da nação portuguesa e da constituição ontológica do reino perdura independentemente da continuidade ou ruptura das linhas dinásticas. Com efeito, as formas históricas de exercício do poder, como a monarquia hereditária ou eleita, não fazem parte da dimensão ôntica do reino. Não são essenciais, mas apenas são do domínio do acidental. O que é essencial é a ordem inicial, de carácter sagrado da sua constituição configurada num território basilar, e encarnada num povo que transporta de geração em geração esse legado nacional, a vontade nacional, que é, em suma, um poder jurídico-político totalizante com capacidade para defender, ordenar e governar a nação com base num discernimento especial, consoante as circunstâncias históricas. Escreve Oliveira, nesta linha, explicando que a extinção de uma linha dinástica real não equivale à ruptura da continuidade do reino, enquanto entidade política e social, enquanto onticidade nacional: “E posto que a linha de sucessão daqueles reis antigos quebrasse, morrendo eles reis sem herdeiros, ou tirando-os o povo por seus excessos e tirania, como se fez em Roma, não se perdeu, por isso, a república portuguesa, como se não perdeu em Roma a Romana. Nem se perdeu a gente portuguesa, nem perdeu a posse desta sua terra de Portugal, nem a liberdade do reino”(1).

Junta-se ao povo e ao território configurado primigeniamente a nomeação do reino que identifica esta onticidade desde as origens. A antiguidade do nome é testemunho da perenidade da existência da gente portuguesa, da sua autonomia e inviolabilidade da soberania da sua terra:

“Pois da gente portuguesa se lê, como fica provado nos capítulos precedentes, que foi sempre senhora desta terra desde a primeira povoação dela; e mais, sempre foi livre e não foi jamais senhoreada por gente alguma estrangeira, segundo mostra este nome Portugal que lhe puseram os Galeses, ditos primeiros povoadores dela, o qual dura até agora e não podia durar se ela fora senhoreada por estrangeiros”(2).

O que define o reino é uma determinada concepção de soberania (liberdade) do território e da capacidade do povo autodeterminar-se e garantir um governo justo, discernindo e intervindo em conformidade com as circunstâncias históricas, independentemente das formas políticas: “Ainda que não haja rei na terra, se a gente é livre e governa-se por suas próprias leis, não se deixa de chamar reino, como se não deixou de chamar reino dos romanos a terra que eles governavam, posto que não tinham reis, porque reino diz que é governação livre e justa” (3).

No sentido de defender uma ideia de Portugal para além das aporias e hiatos da sistematização lógica da história, o autor advoga que a perenidade da herança ontológica do reino de Portugal continuou incindível. Esta teria resistido a todas as tentativas de dominação e subsistindo sempre num resto essencial (matricial) de território e/ou num resto de Portugueses, que mesmo ocupados e sob a administração de outra potência estrangeira, permanecem livres, como se depreende desta passagem de sabor jurídico: “E se alguns eram mortos, não era morta a nação e república portuguesa, a que principalmente o direito e senhorio delas pertencia”(4). Portanto, professa uma ideia de nação suprema com contornos míticos, sublinhando que enquanto existirem Portugueses e o território originário onde se formou o reino, existe Portugal. Entende que todas as formas de dominação e usurpação do reino por parte de outros reinos, sem a legitimação da vontade outorgatória do povo livre, são consideradas espécimes de tirania, portanto, um senhorio ilegítimo, como estatui o historiador: “Reino é governação espontânea e não constrangida por alguma via. E se por força, ou engano, ou suborno alguém senhoreia, o tal senhorio é tirania”(5).

O autor desenterra e edifica miticamente, de entre todos os escombros da história e vicissitudes e descontinuidades do tempo, um Portugal antigo, sediado na matriz bíblica da tábua das nações, donde brota a nova humanidade pós-diluviana, investido como reino por encomendação divina, e feito povo a partir de um radical da geração de Noé. Povo que é destinado a uma missão universalizante de carácter religioso e, neste sentido, predestinado para gozar de uma glória que o superioriza perante as outras nações da terra, tendo sido protegido para uma invulnerabilidade à prova de maldição divina.

Nesta linha de ideias, um dos dados históricos adquiridos, sedimentados na cronicologia tradicional espanhola - mas também portuguesa - que se torna imprescindível refutar para sustentar esta nova visão histórica em que Portugal aparece como um reino antiquíssimo, é o de que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal e com ele se inaugurou o reino por desmembramento do reino de Leão. Contra esta tese clássica, o historiador vai contrapor, surpreendendo as contradições sistemáticas consignadas nas historiografias confutadas:

“As crónicas de Leão e de Castela dizem que o primeiro rei de Portugal foi Dom Afonso Henriques, mas eu não entendo esta sua linguagem, porque elas também dizem que Dom Garcia, filho do primeiro Dom Fernando, chamado o Magno, foi rei de Portugal, feito por o dito seu pai Dom Fernando. E também dizem que seus irmãos Dom Sancho e Dom Afonso se chamaram reis de Portugal; e Dom Afonso foi coroado por tal. Os quais ambos foram antes de Dom Afonso Henriques. E, pois, eles foram reis de Portugal antes dele, não podia ele ser o primeiro”(6).

Neste aspecto altamente polémico da sua historiografia, mas decisivo para garantir a coerência ideológica, o autor acusa de “mentirosos” e classifica de “vulgares” as “histórias” que defendem a opinião contrária, em que, neste domínio, se podem englobar toda a cronicologia que lhe é anterior. Redargue, sem pejo, Fernando Oliveira: “Neste lugar se deve notar aquela mentira das histórias vulgares que dizem que Dom Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal”(7). O autor ergue, assim, a sua obra como uma historiografia que ascende acima da vulgaridade e que vem repor a verdade sobre a história inaudita de Portugal. Linha dogmatizante que se compreende no quadro apologético da sua elaboração histórica e tendo em conta os objectivos que presidem a toda esta confecção de uma ideia revolucionária de Portugal.

Como é tão diferente esta ideografia mítica de Portugal, orientada por objectivos acima de tudo político-ideológicos, que instrumentalizaram a história para erguer uma ideia de nação a fim de disputar um lugar de prestígio no quadro das outras monarquias cristãs! Esta é uma visão naturalmente mítica que é entretecida com elementos religiosos, políticos e culturais.

 

(1) Idem, Livro da Antiguidade, fl. 167.

(2) Ibidem, fl. 167.

(3) Ibidem, fl. 167.

(4) Ibidem, fl. 158.

(5) Idem, História de Portugal, fl. 92v. Com esta fundamentação teórica da liberdade e perenidade essencial do reino português contra todas as formas de usurpação e dominação externa, visa principalmente tirar consistência, legitimidade (e declarar o carácter provisório) à dominação filipina consumada, naquele tempo, pelo regime da união dual liderado por Filipe II de Castela e I de Portugal.

(6) Idem, Livro da Antiguidade, fl. 166.

(7) Idem, História de Portugal, fl. 91v.

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