CADERNOS DO ISTA, 16
O Enigma da Sexualidade
 

A SEXUALIDADE
NOS PADRES DA IGREJA
José Manuel Fernandes

 

Ao destacar a virgindade muitos Padres da Igreja deixaram de ressaltar o matrimónio. Surge por isso uma concepção da sexualidade a partir da ideia de continência . A sexualidade é uma força que é necessário conter. Percebe-se logicamente a importância da castidade.

A viuvez granjeou, por sua vez, um maior apreço em relação às segundas núpcias. Como estado de vida encontrou um grande destaque no seio da Igreja primitiva. E homens como Ambrósio e Agostinho não deixaram de reflectir sobre a espiritualidade desta condição de vida. (1) Quanto às segundas núpcias descobrem-se tanto condenações no cristianismo primitivo, como posições relativamente moderadas. «Nós chamamos bem-aventurada a condição dos eunucos, porque lhe foi dada por Deus; mas também apreciamos a monogamia e a dignidade do matrimónio único, dizendo também que é necessário ajudar-se uns aos outros, […]. Com respeito a um segundo matrimónio, se te abrasas, casa-te , diz o Apóstolo.» (2)

O contexto polémico que muitas vezes caracterizou o ambiente onde os Padres da Igreja se movimentaram teve um peso significativo na concepção e compreensão da sexualidade, mas não podemos descurar a influência da filosofia pagã na evolução desta própria compreensão. Neste campo destacam-se o estoicismo e o neoplatonismo.

Do estoicismo, a moral cristã recebeu um tom ascético e rigoroso. As fontes estóicas, sobretudo as mais recentes, reconhecem ao matrimónio como única finalidade a da procriação. Exclui-se literalmente o prazer isolado da procriação. Segundo os estóicos, o prazer é exaltação irracional da alma e, como tal, reprovável: deve triunfar somente o logos. As paixões devem ser erradicadas.(3)

Do neoplatonismo receberá o cristianismo a concepção dualista de alma/corpo e a desconfiança diante da matéria (corpo) como sombra e mesmo inimiga do espírito.

Para a nossa abordagem sobre a sexualidade na época patrística é-nos necessária uma aproximação ao tema do matrimónio nos Padres da Igreja. Este tema, como podemos facilmente comprovar pelo que ficou dito, está em ligação com a virgindade e a viuvez. Há, no entanto, os casos de João Crisóstomo e de Agostinho que dedicaram ao matrimónio uma particular atenção com as obras Homiliae de matrimonio (4) e De bono conjugali (5).

Os Padres da Igreja procuraram dar respostas e orientações às perguntas dos fiéis quanto à sua vida matrimonial. O tema da licitude do acto conjugal foi muito discutido. Embora admitida a licitude substancial do acto, não faltaram apreciações negativas (ex.: de Agostinho e de Gregório Magno). Tertuliano considerava as relações conjugais como algo repugnante, mas aceitava-as como necessárias para a conservação e propagação da espécie humana (6). Entendia o matrimónio como uma concessão de Deus para aqueles que não querem ou não podem guardar a continência.

Para Jerónimo o matrimónio não é uma falta, mas acaba por ser um estorvo à oração.

O pensamento de Agostinho é mais complexo. O pecado original fez brotar no homem a concupiscência que se encontra misturada sempre ao acto conjugal. Este não é pecado em si, mas é acompanhado por um mal que o matrimónio transforma em bem. Certas coisas são boas em si mesmas (sabedoria, saúde), outras são boas enquanto meios para obter as primeiras (estudo, alimentação). Entre estas últimas enquadra-se o acto conjugal. Se nos abstemos do acto conjugal, damos provas de uma virtude superior; se nos servimos dele para o fim natural da procriação, o acto é lícito; se se mistura ou prevalece a intenção voluptuosa, então é pecado.

Gregório Magno segue a doutrina de Agostinho. O acto conjugal é em si lícito e casto, já que é querido por Deus (7). Mas é muito difícil que os esposos respeitem a bondade de tal acto, porque acabam por misturar a concupiscência. O acto conjugal estará sempre marcado por uma falta, não porque se faça algo ilícito, mas porque não se controla o que é lícito. É uma falta ligeira, mas não deixa de ser falta. Por isso os esposos devem com frequência pedir perdão.

A justificação do acto conjugal está única e simplesmente na prole, como defende Justino. Crisóstomo é a única excepção quando admite que o fim principal dos esposos é a satisfação do instinto sexual (8).

Os Padres da Igreja assinalaram restrições ao acto conjugal. Clemente Alexandrino manda os esposos absterem-se durante a menstruação da mulher; durante a gravidez e mesmo durante a juventude e durante a velhice. (9)

Jerónimo proíbe durante alguns dias a comunhão dos esposos que tenham realizado o acto conjugal; exige, por sua vez, uns dias de continência como preparação para a comunhão. (10)

Agostinho proíbe o acto conjugal durante a gravidez ( De bono conjugali ) e Gregório Magno defende que o homem deve abster-se durante algum tempo antes de entrar numa Igreja. (11)

Cesário de Arles (séc. V/VI) nos seus sermões recomenda aos seus fiéis que se abstenham do uso matrimonial: antes das festas, sobretudo se querem comungar; durante a Quaresma e até ao fim das festas pascais; ao Domingo e durante a gravidez. (12)

É óbvio que os Padres da Igreja condenaram os pecados de adultério, fornicação, incesto, aborto, homossexualidade, bestialidade, etc.

Agostinho, por exemplo, considerava mais grave o adultério que a fornicação e o incesto pior que o adultério.

O tema da contracepção aparece quase velado em muitos autores, como por exemplo em Hipólito, Orígenes , Lactâncio, Efrém, Crisóstomo e Jerónimo. Com uma condenação explícita temos Agostinho, Cirilo de Alexandria e Cesário de Arles. Agostinho considera a contracepção um pecado contra naturam .

Clemente Alexandrino, o primeiro a estabelecer um plano sistemático da teologia moral, dedica várias partes do Pedagogo às questões sexuais. Condena as conversas obscenas, as familiaridades perigosas com as mulheres, a falta de pudor nos banhos públicos.

Tertuliano, por seu lado, no seu De cultu feminarum condena todo o adorno no vestir feminino, assim como qualquer tipo de maquilhagem. As razões para esta condenação estão no facto de ser uma tentação para a própria mulher e escândalo para os outros. Aquelas, por exemplo, que tingem de vermelho o cabelo anunciam já o fogo do inferno. As pinturas não ressuscitarão com o corpo.

Cesário de Arles exorta os jovens a guardar a virgindade antes do matrimónio e aos casados a guardar a fidelidade conjugal. Condena o adultério tanto no homem, como na mulher. Embora autorizado pela lei civil, o concubinato é pior que o adultério. Para evitar estes vícios é necessário fugir das conversações lascivas e de excessos no comer. Os clérigos, nessa época casados, deverão fugir das familiaridades com mulheres estranhas. As virgens devem ser castas de corpo e de coração; as religiosas evitarão todo o olhar indiscreto sobre o rosto dos homens e toda a complacência com o som das suas vozes, mesmo que seja a do leitor!

Os exemplos podem-se multiplicar à exaustão. Mas os que aqui se apontam são suficientes para traçar um panorama aproximado da compreensão que os Padres da Igreja tinham da sexualidade humana.

Para terminar, deixamos um conjunto de textos significativos para o estudo desta temática. Os textos reportam-se aos primeiros séculos cristãos, isto é, aos Padres Apostólicos e aos Padres Apologistas.

 
 

(1) Cf. Ambrósio : De viduis , PL 16, 232-262; Agostinho : Liber de bono viduitatis, PL 40, 429-450.

(2) Clemente Alexandrino, Stromata III, 4,3.

(3) Cf. Stoicorum veterum fragmenta , III, 404 e 406.

(4) João Crisóstomo, PG 51, 207-242.

(5) Agostinho, PL 40, 373-396.

(6) Cf. De exhortatione castitatis , PL 2, 924-925.

(7) Cf. PL 79, 586.

(8) Cf. PG 51, 213.

(9) Cf. Pedagogo , PG 8, 505, 508, 512.

(10) Cf. Epístola 48, PL 32, 506.

(11) Cf. Epístola 64, PL 77, 1196.

(12) Cf. Sermo 16, 33, 44, 199, SCh 175 e 243.

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