CADERNOS DO ISTA, 6


As declarações de
Direitos Humanos

Teresa Martinho Toldy




I. A modernidade –racionalidade, indivíduo e universalismo

1. Evidentemente que não foi só a partir da Modernidade que se começou a pensar ética e politicamente sobre o ser humano e sobre a sua vida em sociedade. O nosso património político-filosófico ocidental remonta à filosofia grega, mais de cinco séculos antes de Cristo e passa também pelo cristianismo, sendo estes os dois pilares fundamentais para a reflexão ética ocidental.

2. Aqui, no entanto, restringir-nos-emos a uma apresentação muito breve do contexto imediato do aparecimento das Declarações de que falámos, sobretudo daquela que resultou da Revolução Francesa.

De uma forma muito resumida e tosca, pode dizer-se que a passagem da Idade Média para a Idade Moderna consiste na passagem de uma concepção ética teocêntrica (o fundamento do comportamento ético e moral está em Deus – moral heterónoma) para uma concepção antropocêntrica, racional. Significa isto que a ideia de perfeição cristã é substituída pela ideia da racionalidade do comportamento humano (hipótese que não aboliu Deus mas o transformou em garante supremo da racionalidade humana. Deus aparece associado …). O critério de comportamento passa a ser o da “vida correcta” em conformidade com os preceitos ditados pela razão. Trata-se de uma grande viragem: para a idade da razão autónoma , princípio de todo o conhecimento e de todo o agir, assim como princípio ético fundamental.

2.1. Unidade da razão : a única sabedoria humana, a que todas as ciências se reportam, é a bona mens – a sageza , pela qual o homem se orienta na vida, e a razão , pela qual decide do verdadeiro e do falso. É um princípio simultaneamente teórico e prático, que é a própria substância do homem. Esta substância é, como tal, única e universal: “A faculdade de julgar bem e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente aquilo que se chama bom senso ou razão, é, naturalmente, igual em todos os homens” ( Discurso do Método ). Como faculdade humana, a razão não opera descobrindo ou manifestando a ordem divina no mundo, mas produzindo e estabelecendo a ordem nos conhecimentos e nas acções dos homens .  

2.2. Mas, o sujeito cognitivo é também e fundamentalmente razão – razão teórica e razão prática. Enquanto estabelece princípios a priori que regem o conhecimento da natureza, as leis que regulam a acção moral, os fins últimos da razão e as condições em que esses fins se podem alcançar, a razão é legisladora.

2.3. Kant definiu assim o Iluminismo (de que ele é uma das figuras mais notáveis): É a emancipação do homem saindo da menoridade intelectual, onde viveu, até então, por vontade própria. Chamo menoridade à incapacidade humana de fazer uso da sua própria inteligência, sem tutela exterior. Esta incapacidade é uma falta moral quando procede, não de uma experiência de discernimento, mas de uma ausência de energia e de coragem imputável à vontade. Ousa pensar! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a fórmula do iluminismo. (1)

2.3.1. A superação da menoridade intelectual consiste na conquista da maioridade gnosiológica, isto é, da capacidade crítica, entendida como consciência e assunção das capacidades e limites racionais, e da maioridade moral, da afirmação da autonomia face à heteronomia, a auto-suficiência, a independência, o poder legislador, a maturidade moral.

2.3.2. A razão é universal, una e a mesma em todos os homens. Mas, para Kant a razão não é dogmática. Ela move-se dentro das fronteiras da experiência possível, não atingindo, por isso, o incognoscível. A razão é o juiz da razão: estabelece uma linha de separação entre o que está no interior do domínio do conhecimento e o que está para além; opõe radicalmente o fenómeno e a coisa em si, o cognoscível e o incognoscível = uma filosofia do ponto de vista do homem.

2.3.2. Intuição ética fundamental : uma ética cujos imperativos sejam universais . Ora, estes não se podem extrair da experiência (nenhum juízo que procede da experiência pode ser estritamente universal). Portanto, uma ética universal e racional deve ser formal e não material. A heteronomia das éticas materiais (com formulações de conteúdo) opõe-se à autonomia , porque nesta o sujeito dá a si próprio a lei, determina-se a si mesmo a agir. A ética formal estabelece nenhum bem ou fim. Diz como devemos agir e não o que temos de fazer. A lei moral diz-nos qual a forma que a nossa acção deve adoptar e não que actos devemos praticar. Portanto, a moralidade de um acto não está no seu conteúdo, mas sim no princípio que a determina, na racionalidade do motivo que está na sua base. O que nos permite qualificar um acto como virtuoso não é a sua conformidade com uma regra religiosa, metafísica, utilitária ou científica, mas sim a sua estrutura formal, independente da realização material do acto. Não é a materialidade que caracteriza a acção moral, mas a intenção , o princípio moral que a inspira.

2.3.4. O dever : representa a prevalência dos valores racionais, de significado universal e humano, sobre as inclinações naturais. Surge como imperativo racional – imperativo categórico – na medida em que vale por si, sem necessidade ou possibilidade de outra justificação que não seja o seu valor absoluto como lei da razão. Trata-se de uma moral racional, dado que a regra da moralidade é estabelecida a priori pela razão.

3. Acentuação moderna do conceito de natureza , de integração do ser humano na natureza material, física e não na transcendência. O homem atribui-se leis de comportamento a si própria. De acordo com S. Tomás, temos uma lei natural , que é a adequação humana (através da intuição do Bem) à lei eterna (plano criador de Deus). Na modernidade, nomeadamente a partir de Grotius, a evidência do direito natural surge totalmente emancipada de toda a crença, pois que esta é aproximada das ideias matemáticas (racionalidade). É aqui que nasce o direito natural moderno. Grotius dizia que do mesmo modelo que o próprio Deus não podia fazer com que dois e dois não sejam quatro, também não pode fazer com que o que é intrinsecamente mau não seja mau (2). Portanto, o direito natural seria válido, mesmo que Deus não existisse.

 
Notas

(1) I. Kant , A Paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa, 1988, p.11.

(2) Grotius , Discurso preliminar ao Direito da Guerra e da Paz, Livro I, Cap. I. Sec. X, 5.

.

..



pesquisa no site
powered by FreeFind

ISTA
CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO
R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 - 1500-359 LISBOA
CONTACTOS:
GERAL: ista@triplov.com
PRESIDÊNCIA: jam@triplov.com
SECRETARIADO: bruno@triplov.com
COLÓQUIO "INQUISIÇÃO": inquisitio@triplov.com