CADERNOS DO ISTA, 6



Ética laica
e ética cristã
Manuel Sumares

Antes pelo contrário: Em contraste com o desenvolvimento das ciências da natureza na época moderna, não há evidência de um avanço análogo no que diz respeito à vivência moral. Bem que as comunidades científicas conheçam discussões, desacordos, e rupturas entre investigadores, é, todavia, tanto assente que partilham a mesma ambição de aumentar o conhecimento do mundo natural. Pertence intrinsicamente à forma-de-vida que chamamos "ciência" explorar a natureza de um modo racional e as crises epistemológicas que se encontram no percurso são, no fim de contas, benéficas na medida em que obrigam a corrigir aqueles factores nos métodos de pesquisa que constituem um impedimento no seu percurso de construir descrições da realidade cada vez mais satisfatórias. Note-se bem: é justamente este percurso de recuo correctivo e de relançamento que constitui a racionalidade da actividade científica: é-se racional quando o esforço de clarificação leva a uma melhor relação dos dados, permitindo uma melhor e mais convincente versão dos factos do que se tinha anteriormente. Ou por outras palavras, a racionalidade arreiga-se num percurso participado por quem partilha os mesmos anseios quanto ao progresso de uma actividade, e a acumulação de experiências por volta desta actividade ganha pontos de referência que se transmite aos participantes. Cria-se, assim, uma tradição de uma determinada forma-de-vida - neste caso, de uma ciência -, na qual a participação eficaz depende estreitamente em adquirir as competências relevantes para que a finalidade acordada pela comunidade científica seja aproximada.

Ora, é justamente este sentido de uma racionalidade enraizada numa tradição que passa e se mantém pelo confronto com outras tradições e práticas rivais que não existe na modernidade. A ética laica consiste, aliás, essencialmente como revolta a tal conceito da tradição. Mas o importante é realçar que o muthos cristão promove uma ética própria não é superada pela ética laíca e pela proposta dos direitos humanos, mas antes pelo contrário.

Respondo: A ideia de uma tradição em desenvolvimento admite a necessidade de estimular a prática de novas interpretações de um texto - no nosso caso, o texto bíblico - que lhe seja fundacional e canónico: a fidelidade criadora implica a suplementação. A racionalidade não existe - sublinho de novo - fora deste processo, isto é, deste esforço de uma tradição em persistir viável perante as crises epistemológicas encontradas. É precisamente neste sentido que uma tradição constitui um longo argumento.

Ora, o fim da modemidade continua a chegar porque se torna cada vez menos viável colocar formalmente um sistema racional como universal medida contra a qual se ajuiza a veracidade e a legitimidade das proposições e acções humanas. Sucintamente, a racionalidade como cálculo baseia-se no pressuposto de que a subjectividade humana é capaz de colocar para e por si as suas próprias exigências da objectividade e da universalidade, sem assumir plenamente (l) que este projecto é ele próprio programático e constitui no fim de contas uma tradição; e (2) que a sua promulgação é nem (a) responsável pelo avanço nas ciências da natureza, nem (b) um reflexo da maturidade da civilização ocidental .

Quanto a este último ponto, como é sugerido pela Objecção 3, a história do século vinte desmente a legitimização de uma tal pretensão. Trata-se de um argumento que não se tem aguentado. Isto dito, a temática do fim da violência e o advento da paz para a qual se quer tender permanece uma legítima aspiração que percorre a modernidade. Mas esta é precisamente o projecto cristão: um novo tipo de comunidade, fundada na renúncia à violência e no perdão. Como René Girard percebeu, o que é positivo no Projecto das Luzes é um efeito da Revelação Judaico-Cristã: há cumplicidade entre a sacralização da ordem social e a violência excercida sobre uma vítima inocente para manutenção desta ordem. Assim, a nova comunidade fundar-se-á, imitatio Chissti, justamente na renúncia a tal recurso. Mas o gesto dessacralizante próprio dos Evangelhos toma a forma na modemidade de uma subjectivização dos critérios da racionalidade e acaba por enfraquecer a ligação íntima que existe entre a racionalidade e as práticas narrativas de uma tradição capaz de rearticular o seu sentido do bem comum e das virtudes relevantes para sustentá-lo. Assim, negativamente, o individualismo exacebado desemboca no mito de auto-ascendência (Girard: o desejo metafísico), a racionalidade autonomatiza-se, e a ética laica que deriva disso mostra-se incapaz de levar adiante as promessas de paz e de realização humana. Se de maturidade se pode falar, então os efeitos da dessacralização ressentida na actualidade e a consciência que progressivamente se tem de que nenhuma guerra é justa podem resultar no reconhecimento, nunca antes sentida com tal acuidade, da pertinência da renúncia à violência e da adopção de uma política que persegue agressivamente este propósito evangélico.

Se efectivamente a pós-modemidade constitui um re-escrever da modemidade, então o resultado é uma fragmentação desta última. Deixa de haver um sistema de razão para haver múltiplos, implicando contextos distintos com regras que determinam o funcionamento interno. O acento é colocado na incomensurabilidade e o "diferendo" que reclama uma justiça respeitosa dos contextos e impedidor de uma grande narrativa abrangente.

A contextualização das decisões éticas significa seguramente um avanço nesta discussão, cada sistema tem tacitamente a suas prescrições e imperativos, ajustados às suas finalidades. Todavia, bem que seja libertadora dos perigos totalitários, a ironia exercida insistentemente em relação aos vocabulários finais pode degenerar em experiências lúdicas da linguagem. É justamente aqui que o discurso ético se torna radicalmente emotivista, isto, implicitamente, é uma questão de preferência contrada no sujeito desejante.

A temática da diferença é certamente consonante com a ética cristã que se pode derivar da pregação e do exempo de Jesus Cristo. Mas neste preciso ponto, há que ver um código de leitura divergente: a re-escrita da modernidade postula a anterioridade de conflito. Nisso, é - como Lyotard confessaria abertamente - um pensamento pagão. Em contraste, o muthos cristão postula antes de tudo uma criação que seja boa e na qual o mal aparece como uma aberração: a paz é assim mais originária do que o confíto. Correlativamente a este postulado de uma criação boa, a sociabilidade é uma vocação que aponta não somente para a paz inter-humana mas também para a responsibilização perante a criação não-humana, isto é, a manutenção da integridade da criação na sua diversidade. É neste sentido que a ética propriamente cristã se insere efectivamente numa grande narrativa, mas uma que supõe e encoraja diferenciação. Analogamente à afirmação aristotélica de que a ética faz parte da vivência política e só se entende verdadeiramente assim, a ética cristã faz parte da esperança de uma comunidade que não se define pela exclusão mas pela inclusão e pelo serviço. Ora, a ética cristã só se entende em função do advento de tal comunidade, que se vai esboçando na vida e no testemunho histórico da Igreja. Com isto, quero sublinhar a consistência própria da ética cristã que se inspira no muthos bíblico e, assim, não precisa de uma fundamentação fora dele. Isto não quer dizer que propósitos críticos relativamente ao uso de Escritura e à prática da Igreja não sejam úteis e eventualmente correctivas no ressituar deste uso e desta prática em função de uma sociabilidade humana pacífica.

A terceira objecção à consistência e às virtualidades da ética cristã no domínio especifico dos direitos humanos representa um desafio particularmente dificil de contornar. Primeiramente, repõe convincentemente as mutações que se reconhece como pós-modernas no horizonte de um trabalho do imaginário e da distribuição de signos. Em segundo lugar, ao correlacionar o trabalho do imaginário com o que emerge potencialmente em termos de "gente como nós", a questão quanto a quem literalmente tem a palavra relativamente ao "humano" levanta-se como consequência. E, em terceiro lugar, admite-se franca e realisticamente a temática do poder.

O exercício do poder não é por si criticável. Lembra-se que a política e o poder constituem factores instrínsecos no fazer do texto bíblico, para não falar da atribuição a Deus de uma omnipotência. O problema é o de capacitação: quem tem a palavra (por exemplo, CNN) tem a capacidade de formar um sentido do humano em moldes que acabarão por ser etno-cêntricos (isto é, a etnia que dita as orientações de CNN, e de outras instituições com um alcance global). Realiza-se uma certa universalização, mas também uma forte uniformização: a capacitação - um poder fazer, um poder ser - não se estende a grupos que não se uniformiza; não seriam "gente como nós". Eis, também, o limite da ética laica e o lugar onde a ética cristã se mostra mais capacitante, no seguimento do seu Senhor, o gesto que legitima a ética cristã é o que se dirige a quem é excluído.

O poder da graça é o poder que capacita a espécie humana a realizar a sociabilidade para a qual é feita; é na perspectiva desta sociabilidade fraterna, regulada pela caridade e pelo perdão, que a ética propriamente cristã se vai constituindo no tempo. É evidente que a ética identificável como cristã envolve a prática de apropriadas virtudes que visam efectivamente a capacitação dos seus praticantes em vista do que se chama habitualmente o Reino de Deus. Mas é também evidente que a narração que acompanha esta prática na história se fixa escatologicamente no Reino que há de vir - o que significa que a sua própria prática narrativa implica um resistir perante a tentação de considerar acabado e arrumado o que a Igreja Cristã tem de dizer acerca de problemas éticos. Mas problemas éticos são fundamentalmente dilemas que desafiam o nosso sentido de sociabilidade formada no texto bíblico. Por isso, deixo esta questão disputada em aberto, oferecendo em apêndice exemplos da ordem ética, cuja problematização nos deve sensibilizar quanto à composição e à natureza da comunidade cristã pela qual somos responsáveis perante Deus.

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Apêndice: Alguns Desafios Contemporâneos para a Ética Cristã

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- Valores de família - Virtudes de família

A linguagem acerca dos valores pode sugerir um certo emotivismo, isto é, uma postura ética baseada em preferências e disposições pessoais. De facto, a atracção não se trata de um impulso biológico; adquire a sua forma a partir de uma tradição narrativa. Podemos dizer que a compreensão que cristãos contemporâneos têm da sexualidade, do amor, e do casamento não foi influenciada pela narrativa cristã, mas sim pelo mito do amor romântico. É só ao reconhecer a narrativa cristã (com a sua finalidade transformadora) como normativa que se pode tornar a virtude conjugal mais atraente do que a ânsia romântica.

- Homossexualidade

Sabemos que a homossexualidade não é encarada com favor na Escritura Sagrada. O Apóstolo Paulo mostra-se radicalmente contra. Pode-se argumentar que a satisfação sexual não é um direito sagrado e o celibato não constitui um fado pior do que a morte. Às pessoas homossexuais recomenda-se a abstenção.

Mas, por outro lado, especialmente se a homosexualidade pode ser mostrada como sendo geneticamente determinada, não seria equacionar o repúdio da homosexualidade como uma espécie de racismo? Seria possível considerar as pessoas homosexuais como uma classe social análoga aos gentios em relação à Igreja judaica chefiada por Tiago (e Pedro).

- Pacifismo

Pode-se rejeitar o pacifismo como irrealista e, talvez em algumas circunstâncias, imoral. Mas os cristãos são chamados para serem membros de uma comunidade revolucionária na qual a não-violência faz rigorosamente parte da agenda.

- Racismo

Os cristãos devem opor-se ao racismo por razões que são peculiares à narrativa cristã. Mas os cristãos têm de enfrentar o facto de que o racismo tem estado presente na história da Igreja. Curiosamente são as exigências do Projecto das Luzes que têm provocado uma "crise epistemológica" na tradição cristã a este respeito.

- Feminismo

O cristianismo representa uma revolução em relação aos conceitos antigos do público e do privado e em relação ao que significa ter uma vida virtuosa. As mulheres não foram apenas acolhidas numa nova entidade chamada a Igreja. Também as virtudes e as qualidades associadas com as mulheres - a ternura, a preocupação com os desprotegidos - foram celebradas como ideais para a comunidade inteira tanto na esfera pública, como na esfera privada.

Mas esta revolução, começada nos primeiros séculos da Era Comum, foi algo - digamos - desviada. Podemos especular que um factor importante na capacidade da Igreja em transformar a ordem social actual reside na recuperação destas virtudes e no repensar da actuação das mulheres na vida da Igreja.

Manuel Sumares

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