O.CADERNOS DO ISTA, 5

Agustina e Duras:
COMOVER-SE COM A VIDA
OU DESESPERAR
ALEGREMENTE DELA (3)

José Augusto Mourão





Haverá uma medida?

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“Haverá sobre a terra uma medida?”, pergunta Hölderlin numa altura em que os deuses teriam desertado e as certezas metafísicas vacilavam. Que ethos terá agora a força de religar os numerosos mundos em que vivemos? Quando as éticas religiosas tradicionais são postas em causa, o perigo é que se instale entre nós um vazio ético e que em vez da firmeza dos conceitos bem construídos se instale o chumaço dos bons sentimentos. Como pode o homem ser levado a aceitar um máximo de responsabilidade e a ser conduzido, quer no plano individual como no plano social, pela virtude da compaixão, na simples base da experiência da sua mortalidade ( sum moribundus) e da sua socialidade? Bastará para tal o “princípio responsabilidade” (Hans Jonas), a ética da discussão (nas versões de Habermas e de Apel), ou necessitamos sobretudo de um “Princípio Compaixão” (Werner Marx)? Há de facto formas de vida incomensuráveis, por exemplo, a do nazi e a do humanista. Para adoptar esta ou aquela prática não precisamos de esperar a garantia da sua validade universal e intemporal, dizem os ironistas liberais. Basta considerá-la como a melhor de que dispomos até ao momento. “Se a relação com o outro comporta mais do que relações com o mistério, é porque se abordou o outro na vida corrente em que a sua solidão e a sua alteridade profunda estão já veladas pela decência. Um é para o outro o que o outro é para ele; não há para o sujeito lugar excepcional. O outro é conhecido pela simpatia, como um outro-eu-próprio, como o alter-ego” (1).

Face ao pluralismo, que é a multiplicidade irredutível a um todo, é a justiça que deve substituir o “amor”, se entendemos por amor a relação a dois, mesmo simétrica, diz Levinas, cuja filosofia abriu as portas à teoria da justiça. Para um liberal não há melhores práticas que as das Luzes. O argumento não é racional, mas da ordem da experiência. O afundamento da terra metafísica da nossa cultura é considerado por Rorty, um ironista liberal muito considerado no meio filosófico, um cumprimento do processo de secularização ou de desencantamento da nossa cultura. É preciso fazer da filosofia aquilo que Jefferson fez da religião: um assunto privado, poetizando a sua vida (Rorty, 1993b). O que muda, substancialmente, é o conceito de cultura, que deixa de remeter para fundamentos imutáveis, implicando antes a revisão, a recomposição permanente das crenças e das práticas através da confrontação com outras práticas, isto é através da “conversação”. É esta prática que permite alargar o sentido do “nós”, de se abrir a outros possíveis, franqueando a distância que nos separa do “outro”. A ética surge quando a imanência da fatalidade baixa os braços. O Outro é, queira-se ou não, a instância que mesmo os mais niilistas metafísicos acreditam presidir ao combate do Bem e do Mal: o Outro deve tornar-se o fundamento de si (128). Trata-se de se submeter à lei do enigma: “o Outro é aquele de que nos tornamos o destino” (Baudrillard 1990:165). A resposta ( respondere : responder de/responsabilidade) remete para uma filosofia da hospitalidade, para uma recepção do outro (Derrida, 1993:102).

Podemos pensar a cultura como um “bazar rodeado de uma quantidade inumerável de clubs estritamente privados” (Rorty, 1994b, p. 243). Deixou de ser possível pensar a identidade da cultura a partir da unidade da língua ou de uma visão do mundo: o mundo tribalizou-se. Numa tal cultura, a única coisa necessária é “a capacidade de controlar os seus sentimentos quando pessoas cujas diferenças irremediáveis nos chocam se apresentam na câmara, no mercado de legumes ou no recinto do bazar. Quando isso se produz, sorris muito, fazeis os melhores negócios que podeis e após um dia de negócio, retirais-vos no nosso club. Aí, reencontrais o reconforto que vos dá a companhia dos vossos pares morais” (Rorty, 1994b, p. 243). O bazar permite a cada um realizar-se na esfera da sua vida privada, salvaguardando os laços de sociabilidade. Reduz-se a isso a utopia liberal? Não, a utopia liberal, que corresponde a uma cultura post-metafísica, é uma “cultura poetizada” (Rorty, 1993b, p. 105). “Os liberais pensam que a crueldade é a pior coisa que possamos fazer”, sem contudo poderem responder à questão: “porque não ser cruel?” (Rorty, 1993b, p. 15, 16). “Os ironistas liberais são pessoas que colocam entre os seus desejos infundáveis a sua própria esperança que o sofrimento será reduzido, que a humilhação de seres humanos por outros seres humanos pode acabar” (Rorty, 1993b, p. 16). Não é o abster-se de ser cruel que define positivamente esta esperança, mas a solidariedade. Endogrupal (Rorty), exocêntrica (Varela). Se as formas de sofrimento mudaram através da história, a solidariedade, que não se descobre através da reflexão, mas se cria, está sempre a (re)inventar-se. Se não há resposta à pergunta “porquê não ser cruel?”, podemo-nos pelo menos perguntar “como reduzir a crueldade de uns e o sofrimento dos outros?”

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(1) E. Levinas, Le temps et l´autre , Fata Morgana, 1979, pp.74-75. Há quem veja nesta posição a crítica radical da descrição fenomenológica que Husserl propõe da relação intersubjectiva em Méditations cartésiennes, Paris, A. Clin, 1931.
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