O.CADERNOS DO ISTA, 5

Da responsabilidade
à compaixão
(fim)
MANUEL DO CARMO
FERREIRA


A responsabilidade mostra-se assim como a constituição da identidade própria, dito de outra maneira, a responsabilidade é a génese e o fundamento, a atitude estruturante, a atitude operativa da constituição da identidade própria; a responsabilidade é a razão de um processo de auto-identificação, mas é de sua própria natureza um dinamismo de referência, para tudo resumir numa palavra, é de natureza dialógica.

Não há constituição que não tenha como constituinte, como ingrediente informador, como fundamento ontológico, isto é, que diz respeito ao próprio modo e à qualidade de ser, ao tipo mesmo de ser que se anuncia, que emerge nessa identificação, uma referência ao outro de si, a outrem que não se reduz a um puro espelhamento, a mero eco, a pura repetição de si como já idêntico a si. A responsabilidade é este processo, em que se recapitula toda a identificação que é, numa complementaridade tensional e não diluente, a tríplice posição de responder por, de responder a e de prometer.

Tendo insistido no primeiro momento, sublinho agora o segundo: responder a . E não diria imediatamente que respondo a alguém. Respondo fundamentalmente a uma interpelação, a uma situação que me provoca, a uma relação que me convoca e me provoca. Aquilo a que me vejo obrigado a responder é uma solicitação, uma injunção a que esteja presente, que pode derivar de múltiplas origens e revestir inúmeras modalidades – respondo a um apelo, a uma exigência, a uma solicitação e a um apelo que têm uma natureza muito específica, são uma intimação, convidam-me e, ao mesmo tempo, obrigam-me, não me permitem escapar. A responsabilidade, nesta segunda dimensão, implica uma vinculação a isso mesmo que me interpela, me solicita e me intima. Tal como não poderia evitar a presença, sob pena de desagregação e inexistência – quem responderá por mim? – também aparece como inevitável e inescapável esta intimação a estar presente. Nenhuma neutralidade é viável, nenhum lavar de mãos é possível, nenhum evitar os termos da alternativa e transferir para outra instância esta vinculação. Aqui qualquer neutralidade é impossível, porque qualquer pretensa neutralidade, qualquer pretensa abstenção, revela ainda e sempre uma tomada de posição. " Responder a " significa neste contexto " intervir ".

Responder quer, por conseguinte , dizer " tomar posição ". A tomada de posição traduz-se em conferir sentido a uma determinada situação. A resposta consiste em organizar, em incluir numa unidade de sentido aquilo que é puramente dispersão, aquilo que é fragmentário, que é avulso, numa determinada ordem que é uma ordem de finalidade, forma de objectivar uma particular intenção. Tomar posição é responder, é ocupar ujm lugar e também tomar a palavra, porque a palavra é, talvez, a forma mais primitiva de intervir na realidade, de intervir numa situação e de lhe dar uma significação, uma orientação em função de um projecto de ser. Por isso, tomar a palavra não é nunca neutral, dizer não é uma operação ela mesma neutra. O dizer é a forma originária da respondsabilidade, é já expressão, exigência, veículo e cumprimento da presença, exercício e forma de identificação. Intervir, responder a, realizar o sentido, cumprir uma exigência que me está proposta, surge, não como forma exterior, mas como constituição mesma da minha identidade, que implica assim tomar a seu cargo, responder não apenas por si, mas também por isso que me interpela, me vincula e me intima, sem a mediação do qual não tenho acesso à minha própria realidade e me perco de mim próprio; significa tal que a responsabilidade aqui é um tomar a seu cargo, ao seu cuidado, isso que me provoca e me convoca. O " responder a " é um exercício de realização, numa palavra, um acto criador. Este ter a seu cargo é uma solicitude, é um intervir com uma força, uma dedicação e uma vontade de que a situação seja favorável, se torne ela mesma um favor. O que significa que tem uma dimensão, ou leva consigo um trabalho de impedir, de limpar aquilo que está diminuído, aquilo que está restringido, aquilo que está perturbando a constituição da mesma identidade.

O que está impedindo, distorcendo ou parasitando a referência ao outro, a outrem, no diálogo que me possibilita responder por mim e não apenas por mim, tem de ser corrigido; o cuidar é a expressão mais adequada e alargada dessa forma de não ficar prisioneiro de si próprio. Em articulação com um aspecto já aludido anteriormente que convertia a tomada de posição em exercício da responsabilidade, e em que esta surgia como um dizer cuja forma mais acabada e mais radical é a promessa, irrompe agora uma outra dimensão inerente a toda a acção, a consideração do tempo que lhe é próprio.

Referi-me atrás a processo, agora teria de falar de história. A resposta, esse responder por mim e não só por mim, instala-se num eixo temporal, é uma aventura, um ir ao encontro do que vem ao nosso encontro.Isto faz com que o exercício da responsabilidade leve em si uma referência ao tempo, não como um quadro exterior onde acontecem coisas e decorrem acções, mas como um constituinte essencial do próprio exercício.

Explicitaria apenas três dimensões deste tempo que é o modo como nos identificamos e o modo como respondemos por nós e pelo outro de nós. Socorrer-me-ei da linguagem bíblica para caracterzá-las de uma maneira muito breve. A primeira é a dimensão do hapax, daquilo que acontece de uma vez por todas, o tempo daquilo que é tão decisivo que é irrepetível, que marca para sempre, pela sua própria força; isto que acontece de uma vez para sempre, de uma vez por todas, não tem de ser um acontecimento estrondoso, não tem de ser algo totalmente alheio à habitualidade da vida, estranho ao quotidiano: há uma troca de olhares, há o encontro incidental, há a palavra simples proferida que, se não for pronunciada nunca mais se dirá. Esta seriedade da unicidade do encontro, este carácter irrepetível e insubstituível, é o tempo mesmo da identificação, o momento único, o instante criador do contacto de homem a homem, do contacto do homem consigo mesmo.

A segunda dimensão temporal do exercício da responsabilidade, desse processo de autoconstituição, de auto-identificação em referência essencial a outrem, que faria intervir é simultaneamente grega e bíblica; trata-se da dimensão do kairós, do tempo oportuno, do tempo propício, do tempo favorável. Não há um exercício da responsabilidade intemporal e fora desta propiciação. Há uma oportunidade que é essencial à resposta. A presença é presença nesse momento e a ausência é a perda do tempo próprio. Lendo o Pe. António Vieira,a propósito do centenário ocorrido, não resisto a citar uma passagem esplendorosa sobre a atenção ao tempo, a atenção ao momento, como exercício da responsabilidade. Vieira refere a experiência do tempo no plano político, do exercício desta responsabilidade por quem tem o serviço do poder e diz:

«Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se havia de fazer o passado: porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje: porque fizeram depois, o que se havia de fazer agora: porque fizeram logo o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão-de ser as consciências dos que governam, em matérias de momentos. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir, a fama, ainda que mal, também se restitui; o tempo não tem restituição alguma.

E a que mandamento pertencem estes pecados do tempo? Pertencem ao sétimo; porque ao sétimo mandamento pertencem os danos que se fazem ao próximo e à república:e a uma república não se lhe pode fazer maior dano do que furtar-lhe instantes. Ah omissões, ah vagares, ladrões do tempo! Não haverá uma justiça exemplar para estes ladrões? Não haverá quem ponha um libelo contra os vagares? Não haverá quem enforque estes ladrões do tempo, estes salteadores da ocasião, estes destruidores da república?» (Sermão da Primeira Dominga do Advento)

Esta diatribe contra o adiamento, contra a ausência do sentido da oportunidade, da falta de respeito pela ocasião propícia e pela premência dos tempos tem um alcance muito mais amplo do que uma simples chamada de atenção política. Idêntica denúncia deve ser extensiva à própria gestão da vida, é a vida que exige essa atenção ao momento, esta solicitude pela oportunidade.

Uma terceira modalidade da intervenção do tempo na posição responsável é a presença ao futuro sob a forma da promessa. A promessa que projecta a dinâmica de identificação que leva em si a referência essencial e fundamentadora ao outro, afirma simplesmente: contem comigo aí onde o futuro vem, e dilata o presente, abre o presente em nome do futuro, o que significa viabilizar o possível, enriquecer o processo de identificação e sustentar a viabilidade do outro. Será este sentido da viabilização do possível, a garantia de que os outros podem continuar a ser, que rompe definitivamente com a acepção retrospectiva da responsabilidade. Temos hoje bem viva a consciência de que há decisões que condicionam e determinam de uma forma negativa e irremediável o futuro de todos, o que desloca a atenção e o cuidar para que o futuro não seja um futuro afunilado, para que o futuro seja futuro e não uma rasoira das possibilidades efectivas de ser, antes um incremento e intensificação desse mesmo possível. Por isso se fala hoje com adesão crescente do " princípio responsabilidade " ( Hans Jonas ). Cuidar do futuro viabilizando o possível obriga a coibir-nos, a vigiar para que não se tomem no presente posições, não se profiram palavras, não se use os tempos de uma forma que definitivamente o empobreça.

A compaixão inscreve-se directamente neste cuidar, como sua expressão mais funda e mais íntegra; nela convergem as diferentes dimensões que compõem a responsabilidade segundo o reposicionamento que temos vindo a esboçar.

A compaixão constitui a forma suprema da identificação: é-se mais si mesmo na exacta medida em que cresce a capacidade de nos identificarmos com a verdade dos outros; representa igualmente a forma suprema da responsabilidade, no abraço fraterno que rompe fronteiras.

Contra a perspectiva liberal, por ora hegemónica e avassaladora, a minha liberdade, a reivindicação da autoria de si por si, não termina onde começa a liberdade do outro; a liberdade só é real na linha do encontro e não da demarcação. Cum-patire, aceitar ser paciente e sofredor, ao lado do outro que sofre, é o limite superior da responsabilidade. De todo o outro? E sem curar de eliminar o que faz sofrer? Com-padecido sobretudo daquele que é frágil e vulnerável, daquele que é vítima, daquele que está ameaçado de não ter futuro e para o qual o possível se detém à sua beira. A compaixão assegura, garante que esse tem um futuro e que há para ele um poder ser, porque estamos aí com ele, respondendo por ele.

Manuel J. do Carmo Ferreira

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