..AQUINATA



  • S. TOMÁS DE AQUINO
    JOSÉ AUGUSTO MOURÃO



 

1. Em tempo de miséria - o tempo da Teologia também - a primeira reacção é de nostalgia, de regresso às épocas de ouro, aos tesouros, à autoridade como valência máxima; tempo propício à histerização a partir da palavra do Mestre, que produz spermologoi: gente que repete sem compreender aquilo que ouviu ou leu, “papagaios”. Papagaios amestrados que nunca arriscarão uma palavra exposta ao conflito da interpretação. Para que serve andar às cegas entre os ossos ressequidos do passado, ou à procura no seu guarda-roupa desbotado algo com que mascarar a presente geração? (Emerson)

2 A linguagem nem sempre funciona como palavra de ordem, ou como verdade imperativa (leia-se romana). Acontece às vezes que nos encontramos a falar outra linguagem; aceitamos outro jogo de linguagem, outro quadro de vida - estamos noutra vida e noutro lugar. Que nos dizem quando tal acontece?

É impossível discutir seja o que for.
Se se tem razão ou não tem
é totalmente indiferente:
ou se aceitam as regras do jogo, ou se muda de vida e de lugar.
(Jorge de Sena)

Este poema serve para falar da incomunicabilidade atribuída aos paradigmas, da prisão que são os referentes das nossas teorias, expectativas, experiências passadas, quando éramos prisioneiros dos nossos universos de pressupostos insulares. Tudo o que duas pessoas necessitam, se pretendem entender-se através da fala é da capacidade de convergirem em teorias de passagem de um enunciado a outro (Davidson). Por trás da vontade de sistema esconde-se a vontade de poder, a domesticação da Palavra que se torna museu ou código ou senha, instrumentos de perpetuação da doutrina, das continuidades imaginárias que abrigam os grandes princípios e as grandes causas.

3. A ignorância sistemática criada pelas questões do nosso grupo de pertença produz uma escotomização (skótos - escuridão; escotoma: mancha do campo visual) do pensamento. Quando se pensa à roda, têm-se ideias curvas (Valéry). Desconfiemos das crenças comuns, das ideias curvas do nosso etnocentrismo que só pode perpetuar-nos. Bem podemos pedir que S. Tomás nos ensine a prudência, que não é a virtude das raposas refalsadas, mas o lugar da decisão pessoal arriscada, virtude do discernimento que aparelha o nosso ser total, afectivo, relacional.

4. A propósito de escotomização. Vivemos de uma incorrigível suficiência, de um triunfalismo ingénuo que as figuras do sal e da luz permitem como metáforas da origem e do fim. Se o sal perde o sabor não há solução de retroca, nada está previsto para produzir sal - o determinativo “da terra” indica o sentido da declaração. Que significa “terra”? Não a terra cultivável, pois que o sal priva a terra da sua fertilidade. A questão do texto não é a fertilidade mas o sabor da terra, o solo humano oposto aos “céus” onde reside o Pai. O sal é a figura do que tem gosto e a sabedoria, segundo a etimologia do verbo sapere, é a definição de um conhecimento saboroso, que dá gosto à existência. A loucura da Cruz faz estalar a velha sabedoria. A sabedoria misteriosa do cristão vem do poder de Deus (1 Co 1, 26-27). O que quer que sejamos, fracos, idosos, doentes, tudo é sabor se a nossa existência humana soube guardar este sabor que vem da nossa vida escondida em Deus. Então, insensivelmente, por contágio, talvez demos a esperança àqueles que não têm o gosto de nada - sal.

5. Jesus chama a atenção para uma componente de origem, um mapa dado à partida e outro que diz o termo. O papel dado aos discípulos situa-se entre estes dois pólos. O sal é precioso, nada o poderá substituir, enquanto a luz é uma possibilidade que se tem para chegar à glorificação do Pai. A teologia é uma fotologia: a fonte da luz vem do coração, de dentro, do espírito, não do mundo. Depois de “vós sois o sal da terra”, é dito, no mesmo movimento “vós sois a luz do mundo”. Não nos é dito: “vós sois a paralisia do sentido”, os “abortadores de tudo o que nasce”, mas antes: “vós sois o sal”, a reorientação do mundo para Deus, o juízo crítico, a iluminação interpretativa.

6. A nós, dominicanos, não se nos diz: “repeti S. Tomás, citai infinitamente”, mas antes respondei às questões do vosso tempo, conciliai o eixo da visão com o eixo das coisas, traduzi. A lei da insulação produz o isolamento e não a comunicabilidade entre os espaços. As respostas de S. Tomás não são a panaceia universal, porque as suas respostas inscrevem-se na sua mundividência (que é uma tendência), são molduras contendo problemáticas que as transcendem. No fim do século passado, o Magistério, apavorado com o progresso das filosofias críticas, agnósticas ou ateias impôs a obra de S. Tomás como exemplar. A instauração duma doutrina oficial enraizada numa cultura livresca, e tão afastada da nossa, favoreceu a ignorância em relação a questões nascidas da ciência, da técnica, das novas formas políticas e das filosofias críticas.

7. Os santos não são os guardas de um museu imaginário de um deus dormitivo, ocupando o pedestal mais alto do Olimpo do saber, que é o poder de legitimar, mas a melhor figura da imitação de Deus que cria. Diante de um Deus domesticado (pela analogia mesmo) quem dançará ainda? Estamos congregados para dar graças pela vida de um homem que nos precedeu na fé e iluminou os caminhos do conhecimento de Deus e de nós mesmos que são de extraviamento e de desapego. Vamos marcar este nosso encontro com o Deus de S. Tomás nosso irmão em S. Domingos e com todos os homens que procuram Deus. Com ele vamos pedir penetração para compreender, capacidade para reter, método e facilidade para apreender, leveza a e jeito para ensinar, subtileza e muita graça para nos exprimirmos. E que por sua intercessão o Cristo prepare os nosso ouvidos e a nossa boca para a Palavra do entendimento e do louvor.