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ISABEL CRUZ
DIR. CICTSUL

A QUÍMICA, A INDÚSTRIA QUÍMICA
E O SEU ENSINO EM PORTUGAL (1887 - 1907):
O CASO DE ALFREDO DA SILVA

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4. Alfredo da Silva e a indústria química
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Alfredo da Silva terminou a sua formação no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa já sob outra reforma, a do ensino industrial e comercial de João Franco decretada a 8 de Outubro de 1891, que foi aplicada, sob grandes protestos, ainda no ano lectivo de 1891 - 1892. Esta reforma prolongou inesperadamente o plano da formação de Alfredo da Silva, que acabou por terminar com carta de Curso de Negociante de Grosso Trato - a designação que a nova reforma inventara para o Curso Superior de Comércio da organização anterior. E nem mesmo a forma enérgica com que os estudantes do Instituto reagiram a situações como estas - com Alfredo da Silva a liderar o protesto, infatigavelmente - impediu que a reforma de João Franco seguisse adiante.

A enorme campanha movimentada em favor da causa justa dos alunos que se entendiam lesados em direitos adquiridos pela reforma, ainda que tendo fracassado, deixou registos inequívocos de alguns dos aspectos de personalidade de Alfredo da Silva - como determinação, tenacidade, uma enorme capacidade de mobilização de meios para atingir os fins em vista, e um grande ímpeto transformador, que irão marcar as suas actuações futuras, e que tiveram uma expressão superlativa no caso das indústrias químicas que dirigiu.

Por ser credor da Companhia Aliança Fabril, uma sociedade que actuava no campo da produção de óleos (em especial o de purgueira), sabões e velas, com fábrica na rua Vinte e Quatro de Julho em Alcântara, Lisboa, o Banco Lusitano em processo de falência foi a via de aproximação de Alfredo da Silva à indústria química, que como accionista deste Banco, acabou a gerir a sua massa falida, e administrador da dita companhia. Começou em 1893 como director substituto e em 1894 é administrador (gerente) da Companhia. Em 1898 o grave incêndio que assolou o edifício da fábrica da Companhia Aliança Fabril, a "Fábrica Sol", (v. fotografia, início do século XX, em Anexo X) veio trazer dificuldades acrescidas às actividades de exploração baseadas na trilogia óleos-sabões-velas, fórmula com mais adeptos, e que caracterizava um mercado saturado. Entretanto a fusão, promovida por Alfredo da Silva ainda no mesmo ano do acidente, com outra companhia actuando no mesmo campo, a Companhia União Fabril (sita igualmente em Alcântara), permitiu o reforço de sinergias de duas concorrentes, e marcou uma fase que se revelará fundamental para o futuro desenvolvimento das sociedades fusionadas, agora sob a denominação comum de "Companhia União Fabril" - a fase de Alfredo da Silva, administrador-gerente da Companhia desde 14 de Abril de 1898.

A medida de 28 de Novembro de 1898 tomada por esta gerência, com a qual a nova sociedade entrava decididamente na produção e comercialização de adubos, marcou a primeira grande inflexão relativamente ao desenho do percurso produtivo das antigas fusionadas. Efectivamente, e de acordo com os dados que estão acessíveis, a produção de adubos em ambas não ultrapassava a mera utilização para fins comerciais dos resíduos das expressões das oleaginosas, os chamados "bagaços" ( v . Anúncio da Companhia União Fabril em Anexo XI), que podiam ser aplicados nas terras como adubos - os orgânicos, que a Química Agrícola valorizava como intermediários no processo de alimentação mineral das plantas - tirando partido não só das valências da purgueira, cujo óleo era largamente utilizado na produção de sabões, e bagaço adequado à produção cerealífera, como da estreiteza (em hábitos e dimensão) de um mercado que tradicionalmente deitava mão a todo o tipo de matérias naturais que pudessem resultar em fertilizantes para as terras como matos roçados, limos, sargaços, os bagaços, até fezes e urinas humanas, na falta dos excrementos do gado vacuum . E apesar de nesta altura, a Companhia União Fabril processar outras oleaginosas importantes, para além da purgueira, como a linhaça, o palmiste (coconote), o mendobi (amendoim), o gergelim, a colza, o facto é que esta diversidade não encontrava uma correspondência no campo dos adubos.

Em finais da década de 90 do século XIX ocorria um contexto favorável ao desenvolvimento dos adubos, pela política proteccionista da produção cerealífera, nomeadamente do trigo, e pelos arroteamentos que desde meados da década de oitenta vinham libertando terra que se tornava apetecível a produções deste cereal, e isto apesar da forte concorrência neste sector, não só pelos vários representantes de companhias estrangeiras (Casa Abecassis Irmãos, que comercializava em Portugal o superfosfato de Saint Gobain, por exemplo) como pelas produtoras químicas que já tinham adoptado a matriz fisiocrática para o seu desenvolvimento, e descoberto a fórmula mais eficaz de sobrevivência e rentabilização económica, onde a produção do adubo tinha um papel fulcral - referimo-nos à fábrica de produtos químicos da Póvoa de Santa Iria, da Companhia Real Promotora da Agricultura Portuguesa, e à fábrica da Tinoca Ltd. Aproveitando a conjuntura, Alfredo da Silva promoverá então o adubo, elementar, composto, orgânico, químico, produzido ou apenas comercializado no interior da nova sociedade, obrigando-a a um salto em frente que somente o futuro permitirá compreender até que ponto consistiu numa efectiva ruptura com tudo o que anteriormente caracterizara as duas transformadoras de matérias gordas em Alcântara.

Com a "Fábrica União" das Fontaínhas (v. fotografia, início do século XX, em Anexo XII) promovida a "Grande Fábrica de Adubos Químicos em Alcântara" Alfredo da Silva erigirá paulatinamente o adubo químico como produto principal da Companhia União Fabril, mas os estrangulamentos locais ao desenvolvimento da fábrica em questão obrigarão, a breve trecho, que se reequacione novamente a produção da Companhia, e se desloque o centro das suas operações fabris, das duas fábricas existentes em Alcântara para a outra margem do Tejo, na vila do Barreiro, abrindo um novo (e sem dúvida o mais importante pelas suas implicações sociais) capítulo da sua história.

Até lá, e para além da promoção radical do produto adubo na nova CUF, Alfredo da Silva vai modernizar os outros fabricos, intervindo a um só tempo nos óleos e nos sabões. O início do século XX é vivido na CUF sob o mote das reformas nestas produções (novos produtos, processos, maquinaria, instalações, fornecimento de energia e rede de transportes). Cria-se o "Serviço de Publicidade Agrícola" da Companhia com o agrónomo Amando de Seabra à frente. Alfredo da Silva desmultiplica-se em contactos no estrangeiro, e em arrematações de adubos para as Ligas do Sul do país. Face a dificuldades no fabrico do sabão, enfrenta a ausência do Know-how estrangeiro e procura uma solução técnica para o problema, que ensaia, com bons resultados, coadjuvado pelo mestre e contra-mestre da Fábrica União; e não tem medo da fábrica, pois o ambiente é-lhe familiar, sob todos os pontos de vista.

Em 1906 a perspectiva de mais uma outra boa oportunidade leva a CUF a estrear-se no negócio dos azeites e na extracção química do óleo de bagaço de azeitona, com a aquisição de uma fábrica e respectivo lagar de azeite em Alferrarede. A fim de evitar a concorrência foi evocada então a necessidade de ganhar uma posição a sul do Tejo, e o Barreiro é indicado por Alfredo da Silva como a solução - um enorme terreno da firma Bensaúde & C.ª com características tais (ligado por via férrea à estação de caminho-de-ferro e com cais acostável, por exemplo) que deixava logo em aberto a possibilidade de expansão da Companhia para outros ramos de actividade, como a produção em grande de superfosfatos.

A tudo isto podemos associar a ideia, o planeamento, as viagens e os contactos internacionais, a acção enérgica de Alfredo da Silva. O processo de envolvimento directo do então administrador-gerente e director técnico da Companhia culmina em 1907/08 com a instalação no Barreiro da segunda fábrica de extracção de óleo de bagaço da Companhia. Esta vai ser a primeira que aí se estabelece, a inaugurar os terrenos que testemunharão a radicalidade de um novo paradigma industrial, de química inorgânica de base, em vez de orgânico-extractiva, desenvolvido a partir da aplicação de métodos termo-químicos - em particular na obtenção do dióxido de enxofre por ustulação das pirites, a pedra «angular» da estrutura produtiva deste aglomerado inicial no Barreiro - no lugar das operações físicas de expressão de sementes das oleaginosas para obtenção dos óleos (a matriz de Alcântara) para a Companhia União Fabril (v. "foto de família", CUF, Barreiro, início do século XX -1909? - accionistas da CUF e outras personalidades determinantes para a Companhia , com Alfredo da Silva ao centro, em Anexo XIII).

Para planear e dirigir superiormente o estabelecimento fabril do Barreiro - que em poucas décadas se constituirá num verdadeiro complexo industrial (no final da década de 60 do século XX o Grupo CUF está entre as 200 maiores empresas não americanas, e detém o maior complexo químico-industrial ibérico) será chamado um outro interveniente, um técnico chamado A. L. Stinville, engenheiro, supostamente francês. Sob a sua jurisdição serão ali instaladas fábricas de ácido sulfúrico, pelo processo de Câmaras de Chumbo, de superfosfatos, uma «lessivage» para as cinzas das pirites ustuladas, uma metalurgia de cobre, a fábrica de sulfato de sódio e ácido clorídrico, a fábrica de sulfato de cobre, uma ustulação clorurante para recuperação de cobre das cinzas e uma sinterização para posterior aplicação siderúrgica do resíduo hematítico resultante.

O período activo de Stinville na Companhia União Fabril inicia-se por volta de 1907, ao mesmo tempo que a presença de Alfredo da Silva se apaga da cena técnica directa, e cessa no final da década de 20 de novecentos. Stinville permanece ainda um enigma por resolver, assim como a grande confiança que ganhou ao patrão da CUF. As indústrias químicas que a CUF estabeleceu no Barreiro nas primeiras décadas do século XX e a sua tecnologia não eram de modo nenhum estranhas a Alfredo da Silva, que teria certamente retirado um prazer muito pessoal na participação directa no levantar das mesmas, mas a lucidez com que soube parar, e passar o testemunho, revela que era na dimensão europeia delas que se encontrava o novo desafio tecnológico que já não quis transpor sozinho.
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