BERLENGAS, DE FRANCISCO REINER & RAUL SANTOS - ESTELA GUEDES
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03-02-2004

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FRANCISCO REINER E RAUL SANTOS
BERLENGAS

A História e as estórias...
The History and the stories...
Edição Intermezzo-Audiovisuais, Lisboa, 2002

É um livro magnífico, em edição de luxo, bilingue, com textos e fotografias de autores vários, apoios diversos e patrocínio da Accenture - Innovation delivered, uma organização mundial líder em serviços de gestão e tecnologias de informação.

Uma obra tão rica - 338 páginas ilustradas com umas centenas de fotografias a cores, lindíssimas, apresentando textos que exigiram pesquisa histórica e organização de dados científicos que cobrem todas as áreas da História Natural - não teria possibilidade de vir à luz sem subsídios poderosos. É o primeiro livro de uma colecção sobre ilhas, que esperamos siga o seu destino sem quebras de financiamento. Este projecto de Francisco Reiner é excelente. Deixamos de "Berlengas" algumas imagens de apresentação, que despertem o interesse de quem ainda não conhece a obra, pois o maior apoio depois de publicada tem de vir do público.

Além da História Natural, as Berlengas são tratadas também do ponto de vista histórico, da pesca, do património submerso deixado pelos navios naufragados, da arte sacra, conservada no Mosteiro da Misericórdia, do turismo, das lendas, etc., ficando o alerta, desde o texto inicial de Luís Vicente, sobre a riqueza animal e vegetal que cumpre conservar no que hoje é a Reserva Natural das Berlengas.

Sobre a história da exploração científica da ilha não há muita informação. Os primeiros dados sobre ela aparecem no século XIX, com o texto de Daveau e Girard, que conheço sobretudo na parte relativa aos répteis, assinada por Albert Alexandre Girard (1), texto que vem referido duas vezes - e com toda a razão, é um duplo texto, assinado por uma dupla de autores - na bibliografia de "Berlengas", apenas com ligeira diferença de caracteres na série. Albert Girard é um naturalista ligado pela escrita às explorações ultramarinas - e em especial às de Francisco Newton, que no caso também explorou territórios estrangeiros, a exemplo da ilha de Bioko (Fernando Pó) -, como descreve, bastante criativamente, no sector toponímico, ao anotar localidades percorridas por Newton, como Mongola, ilhéu de Zoros (Loros, papagaios e não gralhas) e sobretudo Bacoco, tudo aldeias bubis, tenhamos fé:

Francisco Newton vient de faire un séjour assez prolongé dans l'île qu'il a parcouru en partie. Partant de la capitale, S. Izabel, située au nord de l'île, passant par Basipu, puis par Bassilé à 527 mètres d'altitude, il s'est élevé jusqu'au versant nord-est du Pic jusqu'à environ 1:500 mètres. Dans une autre excursion à l'ouest il a visité successivement la mission catholique, Mongola, Bassapó, Baloco et Bacoco sur le littoral et l'îlot de Zoros. M. Newton a fait ensuite l'ascension du Pic S. Izabel par le versant est, en passant successivement par la mission protestante anglaise, Kapapa, Bahu et en faisant encore une diversion jusqu'à Biapa (2).

Girard assina, a respeito das explorações ultramarinas, artigos importantes sobre moluscos, dando sempre nota de localidades interessantes, nas ilhas do Golfo da Guiné, para habitat das novas espécies, como Ó que São João (3)!... No mapa incluído no texto de que extraímos o fragmento da gloriosa ascensão de Newton ao Pico de Clarence, ou de Santa Isabel, notámos o traçado da linha do Equador alguns milímetros acima do que devia, o suficiente, enfim, para ultrapassar o que os geógrafos consideram a margem de erro normal, atendendo aos instrumentos da época, o que aliás em nada afecta a graça com que foram desenhadas as montanhas. Do artigo sobre os répteis das Berlengas, recordo o seu espanto pelo facto de até a estrutura óssea dos animais sofrer alterações de caracteres, mas infelizmente não me consigo recordar dos motivos que ele alega para tal transmutação.

Este texto, de 1883, abre a historiografia das ilhas do ponto de vista da exploração das Berlengas pelos naturalistas. Saltamos dele para outro sobre moluscos, de Augusto Nobre (4), personalidade já bem conhecida dos nossos leitores, de quem temos em linha alguns textos notáveis, um deles sobre os moluscos coligidos por Moller em São Tomé, que nos fornece uma preciosa lista das roças ali existentes em 1885.

A partir daqui, entramos na contemporaneidade, com Luís Vicente a liderar os estudos zoológicos nas Berlengas, sobretudo na área da herpetologia, sua especialização. Também há catálogos de aves, que não conheço ainda.

Então parece que as Berlengas têm sido preservadas pela ciência, nem os naturalistas as visitam muito. É escasso o que se tem publicado, e não estou a reclamar que se estude melhor e mais, apenas reparo neste facto insólito: sendo as ilhas altamente atractivas para a História Natural, que sempre sublinha o seu carácter de laboratórios naturais, só nos nossos tempos os naturalistas dedicam atenção às Berlengas. Antes dos nossos contemporâneos, conhecem-se duas, três, quatro explorações?

E no entanto já no século XVIII estas ilhas portuguesas despertavam o interesse dos naturalistas. Na correspondência trocada pelo Visconde de Barbacena e pelo Abade Correia da Serra com o pai, publicada por Alexandre Vandelli na Academia das Ciências de Lisboa (5), chama a atenção a passagem de uma carta em que Vandelli sugere a Correia da Serra que faça uma exploração nas Berlengas. Como se sabe, os mais conhecidos naturalistas da época - Alexandre Rodrigues Ferreira, João da Silva Feijó, Ângelo Donati, Manuel Galvão da Silva, entre outros - treinaram-se na exploração dos recursos naturais do território português antes de iniciarem as viagens filosóficas ao Brasil, Angola, Cabo Verde, Moçambique e Goa. Alguns, que não partiram para longe, que se saiba, deixaram memórias físicas importantes, como Manuel Dias Baptista, que em 1789 publica uma sobre a região de Coimbra em que cita Blanus cinereus, quando a descrição original desta espécie de répteis só verá a luz anos mais tarde, num trabalho do seu mestre, Domingos Vandelli. É possível que as Berlengas tenham sido visitadas por algum destes naturalistas, ou, quem sabe?, talvez mesmo por Correia da Serra.

Por falar em memórias físicas, ou descritivas, género literário que no século XVIII obedecia a um cânone que exigia do naturalista uma descrição pormenorizada de tudo o que dizia respeito a dada região, desde a geologia à botânica, desde a zoologia à indústria, comércio, natureza dos portos, navegabilidade dos rios, tecidos usados na roupa confeccionada, quartéis, número de soldados neles, tipo de armas, etc., essa memória descritiva reencontramo-la em obras como "Berlengas". Com a diferença de que o objectivo da descrição global já não é militar nem económico, e a autoria já não recai sobre um naturalista, sim sobre uma equipa, visto que o conhecimento outrora abrigado sob a designação "filosofia natural" se estilhaçou nas muitas disciplinas e ciências de hoje. Em todo o caso, um dos grandes atractivos da filosofia que subjaz à colecção coordenada por Francisco Reiner é esse olhar global sobre o território, compreensivo da interligação entre os seus múltiplos componentes, porque dá dele uma imagem de facto física, humanizada e concreta. Os trabalhos parcelares, sobretudo quando altamente especializados, resultam numa abstracção, não tocam o real, e ainda menos o que determina a existência e a natureza desse real - a presença do homem na Terra, a sua acção sobre ela.

Maria Estela Guedes

NOTAS

(1) GIRARD, A.A. (1883) - Reptiles des îles Berlengas et Farilhões. Notice zoologique sur ces îles. In: Jules Daveau, Excursion aux îles Berlengas et Farilhões. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (4) 9: 434-443.

(2) GIRARD,  A.A. (1895) - Les explorations zoologiques des portugais dans les îles du Golfe de Guinée (avec une carte). Portugal em África, 16: 809-824.

(3) Óque S. João.

(4) NOBRE, Augusto & José M. Braga (1942) - Notas sobre a fauna das ilhas Berlengas e Farilhões. Memórias e Estudos do Museu Zoológico da Universidade de Coimbra, 138: 1-66, est. I-VII.

(5) VANDELLI, Alexandre A. (1927) - Colecção de cartas do Illustríssimo e Excelentíssimo Snr. Luiz António de Castro do Rio Furtado de Mendonça, Conde de Barbacena, e Snr. Abade Correa da Serra dirigidas a Domingos Vandelli, Comendador da Ordem de Cristo, Lente de Prima Jubilado na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, Director do Real Museo e Jardim Botanico do Paço da Ajuda, etc. Que contêm algumas notícias sobre a fundação, e primeiros anos da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Bolm Segunda Classe, Acad. Sci. Lisboa, 17: 414-459.