BUDISMO E IDENTIDADE PESSOAL
Paulo A. E. Borges

IN: IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004

1. Temas
2. Textos da tradição do Buda
3. Alguns textos do Mahayana
4. Natureza da avidya

1. Temas

Se há temas que permitem ir ao cerne das questões, pelo próprio contraste entre os termos que equacionam, este é um deles: Budismo e identidade pessoal. Não tanto, todavia, porque o chamado budismo se constitua pela negação ou pela aspiração à anulação da chamada “identidade pessoal”, conforme vulgarmente se pensa. Na verdade, se quisermos ser rigorosos, de um rigor que não se acomode a séculos de interpretação do budismo segundo perspectivas cultural e psicologicamente redutoras, como os conceitos e valores da consciência ocidental de matriz helénica e judaico-cristã, ou os medos e expectativas do sujeito egocêntrico, é bem diferente o que encontramos na visão experiencial e no ensinamento do Buda, ou no Dharma do Buda, expressão que preferimos à de budismo, de origem ocidental e muitas vezes ainda hoje estranha aos seus praticantes orientais, que em seu lugar utilizam tradicionalmente uma expressão que podemos traduzir como “ciência interior” ou “ciência do espírito”(1).

Com efeito, de acordo com o próprio sentido da palavra Buda, que designa o estado Acordado ou Iluminado, o estado de reconhecimento da natureza última dos fenómenos e da mente, pela eliminação de todos os obscurecimentos emocionais e conceptuais traduzindo-se no des-envolvimento de todas as qualidades cognitivas e afectivas, conforme a etimologia da palavra tibetana para Buda – San-gye (2) - , o que o chamado budismo visa é um estado incondicionado por qualquer modo de ilusória dualidade cognitiva e afectiva, em termos de separação e relação entre sujeito e objecto, ou seja, a experiência disso que, na perspectiva ainda da mente condicionada, se designa como Iluminação e Libertação perfeita. A Natureza de Buda, natureza última e comum de todos os fenómenos e da mente, é assim absolutamente livre de todas as delimitações e antinomias conceptuais e verbais, metafísicas e onto-lógicas. Neste sentido, ela é alheia a todos os conceitos estruturadores do pensamento discursivo, nomeadamente os de ser e não ser, mesmo e outro, identidade e alteridade. Mas, contrariamente ao Princípio primeiro das metafísicas místicas orientais e ocidentais, como o Brahman hindu, o Uno/Bem de Plotino, o Inefável de Damáscio ou, de um modo geral, o Deus transcendente da revelação judaica e cristã ou das derivadas metafísicas de matriz neo-platónica, que tende a ser considerado como um Absoluto separado da experiência da mente e do mundo, algo que é em si e por si embora para além do próprio ser e de todas as determinações antinómicas do intelecto, a Natureza de Buda, na relatividade da sua expressão, é vacuidade (sânscrito: sunyata), no sentido, muito preciso, da ausência de essência, existência ou entidade intrínseca, em si e por si, ou seja, de substancialidade, não só de todas as coisas, fenómenos e sua correlata consciência, mas da própria vacuidade, a qual, ela mesma, é vazia ou desprovida de existência própria, não sendo nem não sendo, mera designação da verdadeira natureza de cada uma e de todas as coisas na sua universal aparição em interdependência (3). Alheia aos extremos conceptuais do ser e do não ser, da existência e da não existência, a Natureza de Buda, no seu aspecto de vacuidade, não é uma entidade metafísica positiva, negativa ou inefável, mas a verdade das coisas-fenómenos materiais e mentais, o seu tal qual ou talidade (sânscrito: tathata), inerente à sua manifestação interdependente, sem qualquer constituição ontológica autárquica, autónoma e própria. Neste sentido, a Natureza de Buda-vacuidade é a verdade absoluta e última do mundo, da totalidade da manifestação, inseparável de cada uma e de todas as coisas. Como se diz na versão tibetana do Sutra do Coração do Conhecimento Transcendente: “As formas são vazias; a própria vacuidade são as formas; a vacuidade não é diferente das formas; as formas não são diferentes da vacuidade”(4).

Deste modo, por uma busca com recurso à experiência sensível, à análise racional, ao recolhimento meditativo e à intuição sapiencial, livres de todos os pressupostos conceptuais, como os do substancialismo ingénuo, idealista ou realista, que reifica e ontifica a priori os termos da relação cognitiva, sujeito e objecto, o chamado budismo constitui uma experiência directa e não conceptual do real como algo de igualmente irredutível ao princípio de identidade e à sua negação, que seriam assim estranhos à natureza autêntica das coisas, por mais estranho que isso possa parecer a milenares e dominantes hábitos mentais. E, se bem que o âmago da experiência dos Budas seja a Iluminação, a visão das coisas tais como são, sem as ilusórias características, discriminações e limites da mente conceptual, natural é que, para que essa Iluminação naturalmente aconteça, ou melhor, se re-conheça, o ensinamento ou palavra dos Budas, o Dharma, vise eliminar pela raiz os obstáculos a tal reconhecimento, ou seja, os obscurecimentos conceptuais e emocionais que velam a natureza última da mente e dos fenómenos. Ora a raiz destes é exactamente a crença irracional e irreflectida, tornada um hábito mental e emocional inveterado, na substancialidade do eu e dos fenómenos, na sua essência, existência e distinção em si e por si, na sua consistência e subsistência intrínseca, separada da totalidade interdependente e dinâmica da manifestação. Por mais subtis que possam ser as formas que essa crença assume, nomeadamente as que integram a relação e a alteridade como constitutivas dessa substancialidade, ela persiste como o inquestionado e sacrossanto pressuposto teórico e prático não só do senso comum, como da maior parte das doutrinas científicas, filosóficas e religiosas que postulam a existência de um fundamento primeiro da constituição do mundo, ideal, real, espiritual, material ou transcendente unificador de todos os contrários. De óbvias origens religiosas e metafísicas, não é de desprezar a sua radicação psicofisiológica. Dir-se-ia que a obscura experiência psicofisiológica da existência independente do sujeito e dos objectos percepcionados, como unidades substanciais e simples, se projecta, reforça e cristaliza na milenar ideia metafísica e religiosa de um princípio primeiro e último, uno, único e absoluto, de uma causa incausada e transcendente de onde tudo procede, de um fundamento originário do ser e do pensar, consoante as conhecidas tendências teístas, monistas e monoteístas da experiência humana que pontuam de Oriente a Ocidente. Se tenho uma experiência do corpo e da mente como algo de meu, de próprio, como um mesmo ou algo que pertence a um mesmo por oposição e em relação a um outro, como uma entidade separada e autónoma, natural é que projecte essa experiência na análoga representação de um ser a partir do qual tudo procede, eu e todas as coisas (5). A questão é que o facto de tal experiência da individualidade psicofisiológica se ter tornado habitual e quase única no presente ciclo histórico-cultural da humanidade ocidental e ocidentalizada não implica que ela seja necessária, normal, natural e verdadeira, parecendo-nos óbvio que não é jamais uma experiência feliz, como o prova o facto de os momentos mais gratificantes da nossa vida, e que nos deixam mais saudosos de uma plenitude entrevista, serem aqueles em que, por virtude de um grande amor e uma grande entrega, ou por via de uma absorção estética ou contemplativa, nos esquecemos do que julgamos ser e descobrimos uma dimensão mais ampla e iluminada... Mas avancemos...

A suposição da identidade pessoal radica, como a origem e a história do termo pessoa indicam – recorde-se a definição de Boécio: “Substância individual de natureza racional”(6) – na suposição da identidade hipostática ou substancial (7), ou seja, na suposição de haver um suposto, algo que verdadeiramente sub-está ou sub-jaz (cf. o grego u p o k e i m e n o n e o latino subiectum) “como substrato por si subsistente, suporte e base de sustentação dos atributos”(8), nos seres e nas coisas. No decurso dos debates teológicos trinitários, e enquanto distinta da essência ( o u s i a), pela sua individuação e existência independente, a hipóstase ( u p o s t a s i s) torna-se equivalente a p r o s w p o n, persona, pessoa. Para que isso acontecesse, todavia, o termo grego p r o s w p o nteve de conhecer o processo de emancipação “do significado de simples papel, função, face, personagem de teatro”(9), que o seu equivalente latino, persona, já conhecera. Residindo aqui um aspecto fulcral da questão, que não podemos agora aprofundar, tudo parece depender da interpretação da etimologia e do sentido de p r o s w p o n e persona, máscara, na experiência teatral antiga. Designa, de acordo com o verbo personare, a qualidade positiva da máscara, quer na intensificação do som da voz que através dela ressoa, quer na representação e figuração de uma identidade mais digna que a do actor, a da sua personagem, muitas vezes divina (10), ou, pelo contrário, indica antes o carácter fictício e enganador da personagem, papel ou função representados, consoante o adjectivo personatus, a, um, que identifica o pessoado como um mascarado que se disfarça enganando, sendo a pessoa/máscara a figura que dissimula o rosto autêntico, ou que, fazendo-se passar por real, dissimula a dissimulação em que consiste? Desenvolvendo esta hipótese, acrescentaríamos: dissimulando como ser o seu parecer, como númeno o seu fenómeno, como determinação ôntica e real a sua manifestação teatral e carnavalesca, lúdico/i-lusória?

Compreender-se-ia, neste sentido, não só a dupla acepção do personne francês, que também significa “ninguém”, como toda uma galeria de sublimes “figuras da insignificância”, como diz Stanislas Breton, mas por isso mesmo da autenticidade, que preenchem o imaginário literário ocidental, nessa história paralela à da filosofia e da religião dominantes onde, a par da mais ousada mística, como que se arranca a máscara do personalismo metafísico e, gritando-se “O Rei vai nu!”, se denuncia a va(n)idade do seu aparente triunfo: desde o outis grego, “Ninguém”, auto-nomeação de Ulisses quando o cíclope Polifemo lhe pergunta o nome (11), a ecoar o ouden ou meden designativos do inefável “além do ser e da essência” na neo-platónica metafísica da a-determinação absoluta, abissal fundo de todos os possíveis, ao Nemo latino e aos Nobody e Niemand anglo-saxónicos e germânicos dos séculos X13), ao “Não sou ninguém” do parvo vicentino (14) e aos seus sucessores em Teixeira de Pascoaes (15) e Fernando Pessoa, como um impessoal fundo da ilimitada auto-figuração imaginativa das possibilidades de ser persona: “Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa não poderia imaginar”(16).

É neste sentido que o Dharma do Buda, que só desde o século passado começa a ser rigorosamente estudado no Ocidente e a libertar-se das interpretações românticas, pessimistas e teosóficas do século XIX (17), assume uma notável contemporaneidade no que respeita à presente situação histórica da consciência ocidental, com ele convergente na medida em que procede à crítica, desconstrução e dessubstancialização da metafísica e do sujeito, abandona o “fundacionalismo filosófico” e assume o desafio de aprender “a viver num mundo sem fundações”(18). A par de outras inflexões de paradigma, como a busca de superação do teoantropocentrismo numa visão holística e cósmica, numa via mediana além do absolutismo dos fundamentos e do niilismo da sua mera negação sem alternativa, dir-se-ia que o Dharma do Buda se constitui hoje como referência incontornável na tentativa da consciência ocidental recordar isso que esqueceu ou negou nas origens da sua história diurna, que é simultaneamente a prospectiva de outras possibilidades de futuro, reconhecida a crise e esgotamento dos paradigmas e caminhos até hoje dominantes.

 

(1) Cf. Kalou Rinpoché, La voie du Bouddha selon la tradition tibétaine, prefácio de Sua Santidade o Dalai Lama, uma antologia de ensinamentos realizada sob a direcção do Lama Denis Teundroup, Éditions du Seuil, 1993, pp.37-38.

(2) Cf. Philippe Cornu, “Bouddha”, Dictionnaire Encyclopédique du Bouddhisme, Paris, Éditions du Seuil, 2001, pp.87-93, pp.87-88.

(3) Cf. Philippe Cornu, «Vacuité», Ibid., pp.645-646.

(4) Cf. Soûtra du Coeur de la Connaissance Transcendante, traduzido do tibetano por Philippe Cornu, in Soûtra du Diamant et autres soûtras de la Voie médiane, traduções do tibetano por Philippe Cornu, do chinês e do sânscrito por Patrick Carré, Arthème Fayard, 2001, p.88.

(5) É num sentido afim, embora não coincidente, que em Mestre Eckhart se reconhece que a auto-posição do “eu” na existência é “causa” de que “Deus seja “Deus””, ou seja, de que a Gottheit, a Divindade, enquanto abismo primordial e indiferenciado, se manifeste como Gott, como um Deus com o atributo de o ser, como uma determinação, pela e para a consciência e o homem – cf. Mestre Eckhart, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum, in Sermons, II, apresentação e tradução de Jeanne Ancelet-Hustache, Paris, Éditions du Seuil, 1978, p.149. Cf. também p.146. Sobre a questão, cf. Paulo A. E. Borges, “Ser ateu graças a Deus ou de como ser pobre é não haver menos que o Infinito. A-teísmo, a-teologia e na-arquia mística no sermão “Beati pauperes spiritu...”, de Mestre Eckhart”, in Signum, Revista da ABREM – Associação Brasileira de Estudos Medievais, nº4 (São Paulo, 2002), pp.49-69. Eckhart indica a possibilidade de uma experiência não teísta de Deus. Como diz o Lama Denis Teundroup: «En ce qui concerne Dieu (...), au niveau de cette connaissance non-dualiste, le «moi» et l’ «autre» se révèlent être des illusions ; dans celle-ci «moi» n’existant pas, «Dieu», l’Autre, n’existe pas non plus ! Néanmoins, cette double inexistance du sujet et de son objet, qu’on appelle la non-dualité, pourrait, par une logique paradoxale, être dite «l’ultime existence de Dieu». Mais un théiste ne serait sans doute pas d’accord ?» - Le Dharma et la Vie (entretiens avec Philippe Kerforne), Paris, Albin Michel, 1993, pp.50-51.

(6) Boécio, De duabus naturis et una persona Christi, cap.3; PL 64, 1345.

(7) Cf. os extensos artigos de Joaquim Teixeira, “Hipóstase” e “Pessoa”, in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, 2, Lisboa/S.Paulo, Verbo, 1990, cols. 1138-1145 e Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, 4, Lisboa/S.Paulo, Verbo, 1992, cols. 95-120.

(8) Cf. Joaquim Teixeira, “Hipóstase”, in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, 2, col. 1139.

(9) Cf. Id., Ibid., col. 1141.

(10) Cf. Id., “Pessoa”, in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, 4, col. 97.

(11) Cf. Homero, Odisseia, IX.

(12) Cf. Stanislas Breton, Rien ou Quelque Chose. Roman de métaphysique, Flammarion, 1987, pp.14-19. Cf. o “inefável” ou “nada absoluto segundo o melhor” de Damáscio - Traité des premiers Principes. I. De l’Ineffable et de l’Un, texto estabelecido por Leendert Gerrit Westerink e traduzido por Joseph Combès, Paris, Belles Lettres, 1986, pp.4-22. Cf. também Enrico Castelli-Gattinara, “Quelques considérations sur le Niemand et ... Personne”, in AA.VV., Folie et Déraison à la Renaissance, (*...) pp.109-118.

(13) Cf. Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, II, A Farsa da Lusitânia, introdução e normalização do texto de Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, pp.572-574.

(14) Cf. Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, I, Auto da Barca do Inferno, introdução e normalização do texto de Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p.211. Claro que o “Não sou ninguém” também pode ser lido no sentido oposto, como afirmação de se ser alguém... Mas também é defensável a ideia de que só quem não presume ter identidade pessoal é alguém de valioso, de são, ou digno de salvação, à luz da sapiência e moral evangélica do perder-se como salvar-se...

(15) Veja-se, entre múltiplos exemplos de uma menos conhecida visão em que a identidade do sujeito simultaneamente se multiplica e desvanece: “Somos uma turba e ninguém” – Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo (versão inédita), Obras Completas, introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho, IX, Amadora, Livraria Bertrand, s.d., p.215.

(16) Cf. Bernardo Soares, Livro do Desassossego , in Fernando Pessoa, Obras, II, organização, introdução e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão - Editores, 1986, p.570.

(17) Cf. Frédéric Lenoir, La rencontre du bouddhisme et de l’Occident, Paris, Librairie Arthème Fayard, 1999, pp.81-209.

(18) Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch, A Mente Corpórea, Ciência Cognitiva e Experiência Humana, tradução de Joaquim Nogueira Gil e Jorge de Sousa, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, p.282.