IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004

IDENTIDADE E NARRATIVA PESSOAL
Miguel Gonçalves

INDEX

Significado, narrativa e narração
Narrativa e mudança
Emergência de ciclos virtuosos entre a narrativa e a narração
Bibliografia

Emergência de ciclos virtuosos
entre a narrativa e a narração

A questão que a partir destes exemplos podemos levantar é a de como transformar estes ciclos viciosos entre a narração e a acção em ciclos virtuosos, quer no que diz respeito a auto-narrativas (e.g., eu como deprimido) quer a narrativas relacionais (eu e o meu pai que nos odiamos)? Já vimos, a partir dos exemplos anteriores, que é necessária a emergência de evidências que não se coadunem com as narrativas problemáticas, ou que as pessoas decidam, de algum modo, desafiar a narrativa que as domina (construindo assim activamente aquelas evidências).

Permitam-me dois exemplos sobre o medo: o Nuno de 8 anos e o João de 6 anos. Quando conheci o Nuno ele parecia a sombra da sua mãe. Para onde quer que a mãe fosse, ele ia atrás... O grande problema é que isto começava a maçar a mãe e a incomodar o Nuno, que gostaria de poder fazer outras coisas na sua vida – brincar com os amigos, ir para a escola tranquilo e não estar sempre dominado por este pensamento de que alguma coisa podia acontecer à mãe e de que ele iria perdê-la para sempre. Como se vê, a argumentação do medo era poderosa... difícil de resistir. O Nuno já tinha desistido de resistir, tornando-se um “menino bem comportado” na presença de tão poderosa criatura – o medo. Quando eu lhe pedi que fizesse uma estátua do medo, o Nuno construiu uma estátua de um monstro terrível, com grandes cabelos no ar e uma espécie de varinha de condão para fazer todas as maldades possíveis e imaginárias... A estátua do medo era um símbolo de poder. Perguntei-lhe depois o que iria acontecer ao medo quando o Nuno começasse a ganhar poder sobre ele... E pedi-lhe para ele fazer estátuas que representassem o futuro. Na primeira estátua o medo estava mais pequeno, quase cortado pela cintura; mantinha o mesmo formato, mas escorria cola pelos olhos, que pretendia sugerir que o medo estava a chorar. “Porque chora?”, perguntei eu. Chorava porque estava a perder o seu imenso poder, estava mais pequeno; ainda mandava de vez em quando no Nuno, mas este já lhe desobedecia inúmeras vezes. Na segunda estátua já só se via a cabeça do medo e por cima uma mão pronta a esmagá-la: a mão do Nuno. A última estátua já nem cabeça tinha, só se viam os cabelos, outrora tão poderosos, agora debaixo da mão do Nuno que tinha definitivamente esmagado a criatura.

Julgo que neste processo de criar narrativas do futuro, a hegemonia do medo se viu comprometida e as estátuas vieram possibilitar a criação de uma nova narrativa. Torna-se difícil decidir se o que mudou foi a vida ou a narrativa da vida, dado que a separação entre ambas é arbitrária e impossível.

Penso que nas semanas seguintes a auto-narrativa do Nuno medroso e incapaz foi dando lugar a uma nova possibilidade da vida com o “medo a chorar”. Talvez, nos seus confrontos com o medo, o Nuno se tenha perguntado em que fase estava agora (será que o medo já chorava?), em vez de se deixar dominar pelas suas formas habituais de reagir. A partir do momento que começou a dar conta de pequenos acontecimentos em que o medo ou “chorava” ou estava “com as lágrimas nos olhos”, o ciclo vicioso que estabilizava a sua auto-narrativa viu-se interrompido. Se ele reagia, pelo menos algumas vezes, de modo corajoso, será que existia dentro dele também um Nuno corajoso? As pessoas são sempre mais do que aquilo que as suas narrativas problemáticas lhes fazem acreditar e estar atento a novidades torna-as mais presentes, mais susceptíveis de ser narradas e de adquirem gradualmente mais poder nas nossas histórias. No caso do Nuno, agir contrariamente ao que o medo pretendia pôde começar a suscitar uma narrativa de coragem que validou acções corajosas e por aí adiante. Ou seja, passamos de um ciclo vicioso a um ciclo virtuoso. Do Nuno medroso a agir com medo, o que prova que ele é medroso, o que o leva agir com medo...; ao Nuno a reagir com coragem, surgindo a dúvida se não será mesmo corajoso, a poder agir com mais coragem no futuro, o que mostra que ele é mesmo corajoso... e por aí adiante.

A elaboração das estátuas foi, neste caso, um momento particularmente transformador da auto-narrativa, tendo-se constituído como um desempenho de coragem futura, pondo em causa a hegemonia da narrativa dominante até então.

Surge, neste processo, o que Watchel (2001) denomina uma linguagem do que será (“language of becoming”). Ou seja, quando temos uma narrativa cristalizada da identidade não há lugar a novidades; mas quando pensamos sobre nós próprios em movimento (por exemplo, em direcção a um futuro mais liberto dos medos) um conjunto de novas potencialidades emerge.

O João e o seu assobio corajoso poderiam ser outro exemplo deste mesmo processo. O João estava também dominado por uma multiplicidade de medos. Quando lhe perguntei se ele tinha alguma ideia sobre o que poderia retirar poder ao medo ele disse-me que poderia assobiar... Fiquei curioso em relação a esta ideia, sem perceber bem como tal poderia ter algum efeito. Acredito, contudo, que inúmeras vezes não precisamos compreender como é que um processo de mudança narrativa ocorre, desde que ele efectivamente aconteça. Por outro lado, o que nos parece inicialmente incompreensível pode ganhar um significado claro com a passagem do tempo. Assim, em vez de improdutivamente me centrar na explicação de um dado processo, procurei amplificar os efeitos potenciais que este assobio podia conter. Em conjunto com o João, identificamos assobios poderosos e assustadores para o medo, como é que ele se sentia assustando o medo e tendo poder, como ficava o seu corpo, que coisas pensava quando assobiava e assim sucessivamente. Tal como na história anterior, julgo que estes ensaios foram uma oportunidade para experienciar e expandir uma forma alternativa de ser, uma nova narrativa de si. Uma narrativa ainda incipiente, mas que poderia ser alimentada cuidadosamente até se tornar uma história de si dominante. Penso que o facto de o assobio se ter tornado eficaz, não se deveu tanto ao assobio em si, mas ao que ele representou em termos de construção da narrativa pessoal do João. Estávamos a explorar algo que até agora poucas pessoas tinham explorado... a hipótese de um futuro sem medos, ou com os medos dominados. A minha hipótese é que, tal como com o Nuno, ao longo das semanas seguintes o João ensaiou e ousou assobiar e que, ao fazê-lo, pôde experienciar uma nova forma de ser e abrir a possibilidade à construção de uma nova perspectiva de si.

Julgo que o que se passa, sistematicamente, é que algo na forma como as pessoas dão sentido à sua experiência lhes possibilita a emergência de alternativas narrativas, mais de acordo com o que pretendem para as suas vidas.

Todas as pessoas são simultaneamente muitas coisas diferentes. De novo a metáfora narrativa pode-nos ser útil. A narrativa de vida para poder evoluir precisa de conter em si algum grau de ambiguidade e de complexidade. Uma narrativa simplificada, sem surpresas é uma narrativa parada no tempo (Crites, 1986), limitando-se a reproduzir-se ad eternum, independentemente das mudanças contextuais que possam ocorrer. E isto é provavelmente o que é mais frequente na psicopatologia, a repetição monótona da mesma história, independentemente dos contextos, das audiências, ou da passagem do tempo.

Há um estudo muito curioso (cf. Sande, Goethals & Radloff, 1988) sobre a forma como as pessoas se vêem a si próprias que nos pode ajudar a compreender esta multipotencialidade. Se pedirmos às pessoas para se auto-caracterizarem num conjunto de adjectivos bipolares (e.g., simpático-antipático) em que existe uma escala desde valores negativos (-7 = muito antipático) até positivos (+7 = muito simpático), as pessoas tendem invariavelmente a situar-se em torno do ponto central (normalmente o zero). A razão porque tal acontece é porque as pessoas acham que são simultaneamente as duas coisas, dependendo das situações. Não deixa de ser curioso, contudo, como é que as pessoas classificam as outras pessoas que conhecem. Se se trata de alguém de quem gostam mantêm esta tendência para o ponto intermédio, mas se são pessoas de que não gostam tendem a extremar as suas classificações em direcção ao lado negativo. Ou seja, achamos que as pessoas de quem gostamos possuem esta multipotencialidade, mas tendemos a construir visões lineares e redutoras daqueles com quem não simpatizamos.

Esta multipotencialildade adaptativa contrasta com a disfuncionalidade. Quando a nossa vida se torna um problema, somos (ou percebemo-nos, ou constrangemo-nos a ser) sempre a mesma coisa. Recordamos a expressão feliz, que atribuimos a Fisch, de que a vida é uma coisa terrível a seguir à outra, mas que na patologia a vida é sempre a mesma coisa terrível.

É claro que esta invasão de uma história (cf. White, 1998), que contamina e domina toda a auto-narrativa, conduz a um ciclo vicioso em que, quanto mais se é deprimido, fóbico, etc., menos acontecimentos fora deste enquadramento surgem, e se ocorrem são desvalorizados ou ignorados. Mas, mesmo quem tem a sua vida dominada por um único tema, vive outros episódios temáticos que vão ocorrendo discretamente. Tão discretamente que é preciso estar muito atento para os identificar... Julgo que o que acontece quando a psicoterapia tem sucesso é o resultado desta ênfase na multipotencialidade narrativa que, apesar de constrangida nas histórias problemáticas, pode ser suscitada se existir uma abertura à narração da diversidade ou se esta for criada no espaço terapêutico.

Assim, como sugere White (1998), nós somos sempre mais do que as histórias podem contar, mas se não narramos o que nos acontece fora do enquadramento da história dominante é difícil significar e dar valor a estes acontecimentos.

Recebi recentemente uma carta de uma pessoa com que trabalhei que tinha sido vítima de uma violação. Uma das coisas que ela escreveu e que me impressionou particularmente foi que, no trabalho terapêutico, tinha percebido que a violação tinha sido um episódio da vida dela e não toda a sua história. Ou seja, ela tinha percebido que estava a deixar um episódio muito doloroso da sua vida escrever toda a sua história. Aceitar a vida, tal como ela escreve, significa aceitar todos os acontecimentos e não centrarmo-nos num único, de modo repetitivo.

Penso que o que esta mulher começou a ser capaz de fazer foi atribuir significados fora da sua narrativa da violação e estar atenta a episódios que não se enquadravam nas prescrições daquele episódio. Dito de outra forma, começou a dar significado às excepções ou ao que White e Epston (1990) chamam resultados únicos. Por exemplo, uma daquelas prescrições sugeria que ela não se devia aproximar das pessoas porque elas a poderiam lesar. A partir de certa altura da vida, ela começou a dar conta de que isto nem sempre acontecia, e que nem ela cumpria sempre esta ordem de distanciamento. Assim, começou a narrar (para si e para também para mim) episódios que se situavam fora da história problemática dominante, que ofereceram um importante contraste com a sua forma habitual de ser. A emergência destes contrastes tipicamente corresponde ao início de um processo de mudança.

É importante salientar que isto nada tem a ver com a ideia de senso comum de “pensamento positivo”. Neste, as pessoas procuram ignorar as dificuldades e pensar nas coisas positivas. Às vezes este processo torna, paradoxalmente, as dificuldades mais visíveis. É que, quando não queremos pensar em dificuldades, é quando elas se tornam mais presentes. É impossível não pensar; só é possível pensar algo diferente: o exemplo mais habitual disto seria pedir agora ao leitor para não pensar num elefante cor-de-rosa...

O que acontece nestes processos de mudança narrativa é que as dificuldades, ou as formas disfuncionais de ser, são integradas numa história mais vasta, em que outros significados alternativos emergem. Nas nossas vidas acontecem muitas coisas ao mesmo tempo, e nós retemos melhor aqueles acontecimentos que somos capazes de narrar (para nós ou para os outros) (White & Epston, 1990; Freedman & Combs, 1996). Se a nossa história é sempre a mesma coisa é porque negligenciamos significados alternativos (não necessariamente o contrário do problema, mas por vezes simplesmente algo que ocorre fora da sua lógica) que poderiam emergir de acontecimentos presentes, passados ou mesmo imaginados no futuro.

Tipicamente a mudança ocorre quando as pessoas começam a estar atentas a acontecimentos diferentes do enquadramento da narrativa problemática ou quando, por exemplo, surgem desempenhos que produzem subitamente pontos de mudança. Estes últimos podem surgir porque possibilitamos o desempenho de rituais terapêuticos particularmente significativos, ou porque os clientes se começam a revoltar contra os sintomas (lembro-me sempre de uma cliente que insultava o seu problema de forma particularmente indecorosa...), ou ainda porque começam a imaginar e a desempenhar alternativas comportamentais. Esta última via de mudança lembra, aliás, a máxima estética de Von Foerster (1984) – “Se queres aprender a ver, aprende a agir”.

Assim, regressando à nossa metáfora cinematográfica, a mudança surge porque o argumento começa a conter pontos de mudança que sustentam novos desempenhos ou porque subitamente emergem novos desempenhos que desafiam o argumento inicial. Não deveremos interpretar este processo como se se tratasse de uma dualidade, por exemplo entre comportamento e cognição. Quer se trate do “argumento” quer se trate do “desempenho”, o seu significado é sempre construído narrativamente – isto é, o desempenho só adquire relevância e sentido quando significado, mas o argumento só pode ganhar verdadeiro poder transformativo quando concretizado. Estamos, pois, presos num circulo hermenêutico (Widdershoven, 1993), entre a vida e a narrativa e entre o desempenho e o argumento.

Um dos aspectos mais importantes nestes processos de mudança é a validação por parte dos outros. Torna-se difícil mudar para algo que os outros estão sistematicamente a invalidar.

O que pode acontecer se as pessoas importantes para nós e se nós próprios nos mantivermos atentos e curiosos às excepções? É certo que por vezes elas parecem não existir... Contudo, se as pessoas forem modestas nesta procura e perceberem que as grandes mudanças se constroem a partir de um conjunto de pequenos passos, então talvez elas se tornem mais transparentes...

Nos anos 60, Watzlawick, Bavelas e Jackson (1967) escreviam que há três formas das pessoas se posicionarem face aos outros – a aceitação, a rejeição ou a desqualificação. Deixem-me exemplificar terminando com as vossas possíveis reacções ao que tenho estado a dizer. Algumas das pessoas hipoteticamente aceitarão o que tenho estado a dizer, dado que tenho reparado em alguns acenos confirmatórios da plateia. Essas pessoas estão de algum modo a validar-me enquanto conferencista (o que habitualmente arrasta outras auto-definições associadas, no caso concreto: professor, psicólogo, terapeuta). Outras pessoas poderão colocar-me no fim questões críticas, desafiando o que eu disse – ora, apesar de poderem rejeitarem o conteúdo do que eu disse, validam-me igualmente como conferencista ou, pelo menos, como interlocutor. Às vezes, por exemplo, os nossos amigos têm um importante papel de rejeição da algumas facetas da nossa identidade, sobretudo se rejeitam facetas negativas tal pode constituir um modo de nos darem suporte. Pelo contrário, a desqualificação é mais intrusiva e mais patologizante. Por exemplo, no caso concreto poderia acontecer se todos falassem enquanto eu falo, impossibilitando-me de prosseguir. Nas relações interpessoais a desqualificação constitui uma estratégia de invalidação profunda, que torna difícil sustentar os significados que foram invalidados. Um bom exemplo é o pai que diz sistematicamente ao filho adolescente – “porque estás afinal tão triste?, onde está o meu menino, aquele que era tão feliz na infância?”. O que esta mensagem, de algum modo, transmite, é a ideia de que a pessoa tal como existe agora é uma ficção, a realidade era o menino do passado, só que este, de facto, já não existe nem tal é possível. O que é mais curioso neste exemplo é que a não-aceitação da tristeza do adolescente por parte do pai tende a gerar mais tristeza, a não ser que o filho se consiga revoltar contra esta exigência parental de felicidade para, paradoxalmente, encontrar o seu bem-estar.

Desta forma, e para finalizar com um retomar da metáfora cinematográfica que tem acompanhado esta conversa, mudar de história e mudar de vida exige um palco interpessoal onde estas novas histórias e desempenhos encontrem audiências, sejam testemunhadas e sejam validadas. A existência, enquanto processo recursivo de narração e desempenho é, pois, algo que, quer na patologia, quer na transformação criativa, não pode nunca ocorrer a sós.