IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004
AUTOPOIESIS E IDENTIDADE PESSOAL
Francisco Teixeira
DO SI MESMO BIOLÓGICO AO SI MESMO HUMANO
3. Máquinas psíquicas autopoiéticas

A tese central deste trabalho é a de que é razoável pensar os sistemas de consciência humanos como sistemas autopoiéticos. Essa tese, porém, não é nova. Ela deriva directamente de Niklas Luhmann, para quem “o conceito básico de reprodução fechada-auto-referencial do sistema pode aplicar-se aos sistemas psíquicos, quer dizer, àqueles que reproduzem consciência mediante a consciência, para o que não dependem de ninguém e que, por conseguinte, não recebem esta consciência do exterior nem a podem transmitir até fora” (1998: 242). Para Luhmann há três tipos de sistemas a que se pode atribuir a caracterização de autopoiéticos: são eles os sistemas sociais, cuja forma essencial de operação é a comunicação, os sistemas vivos, cuja operação decisiva é a vida e os sistemas psíquicos, cuja operação essencial é a consciência.

A razão central, pelo menos do ponto de vista da ordem lógica, pela qual os sistemas psíquicos são sistemas autopoiéticos, tem a ver com a sua posição face ao seu ambiente. Esta questão remete-nos directamente para o problema da definição de um sistema. Um determinado sistema realiza-se através de um determinado tipo de operação (Luhmann, 1996a). O sistema exprime-se como tal, como unidade sistémica, na medida em que corresponde a uma e só uma operação. É essa operação que lhe vai permitir afastar-se do ambiente, ou contexto, (onde outras operações determinam outros sistemas) e constituir-se. Sem esta distinção de si através de uma operação específica não é possível fazer sistema e subtrair-se ao ambiente. Os sistemas definem-se, então, em função das operações que lhes permitem produzir-se e reproduzir-se a si mesmos:

“Na recursividade de um mesmo tipo de operação temos como resultado um sistema. A operação deve ter capacidade de concatenar no tempo outras operações do mesmo tipo, o que leva necessariamente a um enlace selectivo das operações, na medida em que deixa que aconteçam noutro lugar outro tipo de operações distintas” (Luhmann, 1996: 67).

Claro está, o meio ambiente, pela negativa, ajuda a definir o sistema, pelo que, em rigor, não há sistema sem ambiente, sendo este decisivo para sua constituição. De certo ponto de vista, pode dizer-se que o ambiente funciona para o sistema como uma fronteira ontológica negativa, uma vez que, ainda que o sistema seja determinado estruturalmente, a partir, portanto, daquilo que lhe prescreve a sua estrutura, apesar disso o ambiente limita aquilo que é possível ao sistema, já que este prescreve condições amplas de possibilidade ou de sobrevivência (1).

No caso dos sistemas psíquicos, muito em particular, a sua relação com o ambiente dá-se sempre de modo mediatizado pelo sistema nervoso. Aceitando, como pressuposto, que o sistema psíquico emerge de uma acoplamento entre o sistema nervoso e o resto do organismo humano, temos que o sistema nervoso, muito em particular, constitui a base material nuclear do processo de emergência psíquica. Ora, o sistema nervoso humano funciona de modo auto-referencial. Francisco Varela lembra-nos que

“também em razão do seu acoplamento (com o organismo), a estrutura do sistema nervoso é continuamente determinada e realizada pela produção de realizações neuronais, definidas de modo interno por referência ao sistema nervoso ele mesmo. O sistema nervoso funciona, então, como um sistema autónomo, que mantém invariantes as relações que definem a sua participação na autopoiesis do organismo” (1989: 152).

Isto tem relevância para o nosso assunto, uma vez que, assim sendo, o sistema psíquico é duplamente recolhido em si, ou, se quisermos, duplamente afastado do mundo exterior: é-o, em primeiro lugar, por emergir de um sistema nervoso que funciona de modo auto-referencial e, portanto, afastado de qualquer tentação representacional do mundo exterior; e é-o, em segundo lugar, em virtude da sua própria autopoiesis psíquica, que funciona acima do nível neuronal e orgânico, irredutível ao nível físico (2). O próprio sistema neuronal constitui já, portanto, o ambiente (o lado de fora do sistema) do sistema psíquico, uma vez que aquilo que define o sistema neuronal enquanto operação é um operar físico-químico e o que define o sistema psíquico é a operação da consciência enquanto capacidade de enlace permanente de pensamento em pensamento.

O problema não resolvido por Luhmann, e em que ele esbarra sem conseguir progredir, é o problema da definição das “unidades elementares da consciência”, entendidas como “unidades operativas de produção de outros elementos” (Luhmann, 1998: 242), ou seja, o problema do esclarecimento da operação que é própria dos sistemas psíquicos autopoiéticos e que tem por função progredir de modo incansável na produção de si mesma.

Esta “progressão” da consciência que se observa a si mesma através do pensamento e, assim, se autoconstitui e autoproduz como uma observação de segunda ordem (observação de observações), introduz no sistema de Luhmann a radical temporalidade da consciência. Não de uma consciência que reconhece a temporalidade como algo que lhe é extrínseco, mas de uma temporalidade que se actualiza no acto mesmo de enlace daquelas unidades elementares que alimentam a consciência e a constituem. Ou seja, a consciência produz tempo no acto mesmo de enlaçar unidades em unidades, mas uma temporalidade que se reconhece como enclausurada no acto mesmo da criação de si mesma, em que todo o futuro e todo o passado se resumem e comprimem na “momentaneidade” de si no acto de vir a ser (3).

Influenciado por Husserl, Luhmann diz-nos que a consciência é um processo de contínua auto-transformação de eventos ou acontecimentos (1998: 242) e que é esse enrolar-se contínuo de si por si que faz emergir a consciência. Luhmann tematiza, pois, a consciência, como um dinamismo incessante e auto-produtivo de si em ordem à manutenção de si: dinamismo autopoiético e auto-referêncial, portanto.

No entanto, e voltando um pouco atrás, o que agora é necessário esclarecer é a natureza das “unidades elementares da consciência”, das operações propriamente psíquicas, pelas quais a consciência se observa, autoproduzindo-se por essa mesma observação. Luhmann não é claro na resposta a este problema. No capítulo de “Sistemas Sociais” (a sua obra maior) dedicado à consciência, intitulado “A Individualidade Dos Sistemas Psíquicos” (1998: 236-254), Luhmann hesita em dizer em que constituem estas unidades operativas. Começa por lhe chamar “representações” (fora, naturalmente, de qualquer contexto representacionalista), mas não adianta em que consistem, em concreto, estas “representações”. Num outro texto, em que também trata de modo explícito os sistemas psíquicos, a par dos sistemas sociais, “A Clausura dos Sistemas Psíquicos e Sociais” (1996), Luhmann, deitando mão, novamente, de Husserl, trata as unidades mínimas da consciência como “actos intencionais”, uma vez que aquelas unidades mínimas têm que constituir, nas suas palavras, um “processo de atenção”. Os “actos intencionais”, candidatos possíveis para unidades mínimas da consciência, têm a particularidade de se estruturarem como uma forma dupla, de auto-referência (consciência de si) e hetero-referência (consciência do fenómeno), constituindo-se como a unidade de uma diferença. Mas o assunto não fica esclarecido para além destas parcas explicações. Fica a sensação de que, para Luhmann, as unidades mínimas da consciência refulgem como uma espécie de movimento virtual e puro de um eu transcendental (“... a autopoiesis [como autopoiesis da consciência] fica cega, quer dizer, fascinada pela seguinte representação que se anuncia.” – 1998: 244), embora qualquer unidade seja sempre, para Luhmann, unidade de uma diferença. Em particular, Luhmann não entende que a linguagem possa constituir estas unidades mínimas, uma vez que

“se estudarmos, livres de todos os preconceitos, o que ocorre ao mover-se a consciência em forma de linguagem até às representações seguintes, então se verá que só permanece a estrutura do mover-se de uma representação até outra (sublinhado meu), o que possibilita, por exemplo, a redução das representações individuais discretas a um formato de palavras particulares, o aumento das possibilidades de enlace e das alternativas, o concluir e o reiniciar ininterruptos [de enlaces da consciência]. A linguagem transforma a complexidade social em complexidade psíquica; porém, nunca o curso da consciência é idêntico à forma linguística. Nem sequer por meio da aplicação de ‘regras linguísticas’” (1998: 250).

A linguagem é, para Luhmann, um meio pelo qual o sistema psíquico ganha uma capacidade acrescida de “formação de episódios”, “diferenciado” e “descontinuando” as operações da consciência. No entanto, a linguagem é sempre um plus relativamente à consciência, ainda que sem a linguagem a consciência seja incapaz de se descontinuar, quer dizer, de formar episódios discretos capazes de se enlaçarem sucessivamente.

O problema desta concepção de consciência e de individualidade, proposta por Luhmann, é que parece ser excessivamente pobre a ideia de um fluxo puro de consciência, (“a estrutura do mover-se de uma representação até outra”) continuamente autoproduzido, independente de toda a determinação linguística mas suficiente para a produção e a consciência de si. É caso para perguntar: mas consciência de quê e de quem? Surge ainda o problema de pensar a compatibilização da consciência, independente da linguagem, com a linguagem, sendo que a linguagem se manifesta essencial para a pontualização de episódios discretos susceptíveis de enlaces sucessivos uns nos outros. Se a consciência é independente da linguagem, como e através de quê se enlaça a linguagem com a consciência? Como e através de que interface linguagem-consciência ocorrem as pontualizações dos episódios discretos?

Por outro lado, a transformação da complexidade social em complexidade psíquica (e vice-versa), através da linguagem, parece requerer, por sua vez, uma outra interface operacional entre os dois sistemas autopoiéticos (consciência e sociedade), sendo que a “pureza” da consciência não parece prover uma “face” para essa inter-relação. A linguagem seria essa interface se a consciência, como a sociedade, fosse de natureza linguística. Mas esse não é, para Luhmann, o caso, como vimos acima.

Se, pelo contrário de Luhmann, acedermos a que a (auto)consciência opera sobre a base de unidades elementares linguísticas (que podem ser palavras, frases ou mesmo discursos) (4) moduladas emocionalmente, podemos prover os sistemas psíquicos de um instrumento operacional que lhe permita uma relação “inter-objectiva” com os sistemas sociais. Esta relação é “inter-objectiva” (e não inter-subjectiva) porque, partilhando embora sistemas de signos de significado consensual, o sistema psíquico e o sistema social relacionam-se como sistemas autónomos e auto-referenciais, em que a realidade social e o si são estruturados segundo dinâmicas narrativas próprias, em função das suas derivas evolutivas.

A minha proposta é a de que a linguagem, enquanto sistema consensual de signos funciona, particularmente para o sistema psíquico, como recurso “energético”, quer dizer, recurso virtual de sentido, que só pode ser actualizado no interior das suas fronteiras narrativas, moduladas (perturbadas segundo ritmos e estruturas epigeneticamente estabelecidas) pela emocionalidade. Fora dos sistemas psíquicos, a linguagem existe apenas como recurso virtual, como “ruído significativo” que tem quer ser organizado através de um sistema autopoiético de produção de si, cuja função principal é, exactamente, a de transformar o virtual em actual, o sígnico em semântico, através da modulação das emoções. Não que, naturalmente, a linguagem não possua, fora do sistema psíquico, significado consensual. Mas esse significado não é psiquicamente significativo antes de internamente referido ao sistema psíquico autopoiético através da modulação emocional. Só nestas circunstâncias (de auto-referência semântica/linguística) é que o si se autoconstitui como um si e não como uma derivação ou instanciação directa de um si comunitário e social. Só deste modo o sistema psíquico é capaz de, provido embora de significados socialmente partilhados, fazer desses significados significado de si e não somente significados de alter, pelos quais o si seria sempre um si socialmente referido e sistemicamente aberto (5), o que impossibilitaria a criação de uma unidade sistémica, uma vez que para que se faça sistema é necessária a implicação de uma diferença e cisão operacional relativamente ao ambiente.

Parece ser esse o caminho de, por exemplo, Ernst von Glasersfeld, para quem, pese embora o facto de a linguagem ser inescapavelmente social (na sequência, aliás, da impugnação, por Wittgenstein, e de modo definitivo, de qualquer tipo de linguagem privada), esse facto só nos dizer como é que é usada a linguagem e não como é que ela se torna significativa. O ponto de vista de Glasersfeld é o de que os elementos linguísticos, para além da sua capacidade significativa (da sua semântica ou capacidade significativa virtual) têm que ser ligados a experiências, nomeadamente de tipo motor e ou emocional. A significação semântica actualizada é efeito de uma “re-presentação”, conceito que quer significar “acto mental que traz uma experiência anterior à consciência de um indivíduo. Mais especificamente, é a recordação do material figurativo que constitui a experiência” (Glasersfeld, 1996: 165). Ainda que, então, seja absolutamente necessária o uso social para a determinação da linguagem, ela só se actualiza enquanto significativa na medida em que se associa a esquemas particulares de aprendizagem, mediados, nomeadamente, por certa tonalidade emocional. Só enquanto processo de re-a-presentação é que a linguagem se faz significativa, estabelecendo por essa via o processo de individuação, ou subjectivação, ou destaque do ambiente (no caso social), que se exige a toda a formação de um sistema, no caso de um sistema psíquico autopoiético.

Naturalmente, deste ponto de vista radicalmente construtivista, não se põe o problema (que podemos antecipar) da comunicabilidade de conteúdos semânticos determinados, uma vez que não é essa função que compete à linguagem. À linguagem, pelo contrário, compete uma função de coordenação conductual, em que o comunicativamente relevante não é a identidade de sistemas e a informação partilhada (numa espécie de união de almas ou consciências) mas a congruência ou compatibilidade conductual (Maturana, 1996; Glasersfeld, 1996). Ainda que não se inscrevendo na galáxia construtivista, Rorty, por exemplo, parece, por vezes, aproximar-se deste ponto de vista, ao fazer a distinção entre comunicação e argumentação, sendo que a comunicação requer apenas acordo para usar ferramentas comuns, enquanto a argumentação exige acordo sobre a prioridade de umas ou outras necessidades (Rorty, 1991: 273), introduzindo assim uma distinção relevante entre aquilo de que nos provê a sociedade e aquilo a que só nós podemos ter acesso e que só nós podemos construir, sem que isso ponha em causa a necessidade da aprendizagem social da comunicação. A construção narrativa de si pode, então, ser entendida como um processo de hierarquização de necessidades de si, quer dizer, de hierarquização daquilo que é tido como significativo em ordem à construção de si, através de um processo de narração e argumentação sobre as coerências e significações que se vão actualizando emocionalmente.

Esta posição pode ainda ser reiterada e sustentada através dos estudos teóricos e empíricos de Vittorio Guidano, para quem as emoções se organizam, enquanto “coerências operacionais internas”, como “esquemas emocionais” que, desde muito cedo, se configuram como padrões de significação em função dos quais se vai aferindo o mundo “externo”, de modo a tornar significativos os fluxos experiênciais, sendo que esses esquemas emocionais caracterizam, afinal, cada modo específico de conduta e perfil psicológico. Antes das habilidades cognitivas, onde, particularmente, se inscreve a linguagem como habilidade típica, e sobretudo através da construção da figura de apego (6),

“os ritmos psicológicos e os esquemas emocionais convertem-se em ingredientes básicos da consciência infantil, que é verdadeiramente afectiva na sua natureza e qualidade. Portanto, o próprio sentir, imediata e directamente percebido como um sentido cinestésico (7) interior (o ‘eu’), organiza-se de forma primária em torno de esquemas emocionais prototípicos diferenciados através da reciprocidade do apego com os cuidadores” (Guidano, 1994: 34-35).

O que aqui está em causa é, então, estritamente, o facto de que esquemas emocionais básicos permitem organizar os conhecimentos perceptuais e cognitivos de modo altamente idiossincrático. Estes esquemas emocionais prototípicos constituem, para Guidano, a base do si-mesmo e da capacidade de criação de significados. A ideia aqui presente é, simplesmente, a de que cada indivíduo, ainda que partilhe uma rede de significados sociais de natureza eminentemente consensual, não pode deixar de reestruturar essa significação universal em termos de uma significação pessoal, como modo de se autoconstituir como sistemicamente diferenciado, e isto desde o seu interior.

Guidano fala das “Organizações de Significado Pessoal” (OSP) para se referir a estas estruturas ou organizações a partir das quais cada indivíduo é capaz de criar significações experiênciais, “dentro da dimensão intersubjectiva que determina a invariabilidade da experiência humana” (Guidano, 1994: 53-54). Estas OSP constituem, para Guidano, “uma gramática intrínseca de composição e recombinação que permite a classificação dos diversos padrões de coerência organizada que apresentam os seres humanos na sua busca e criação de significado” (Ibidem: 54) e alicerçam-se naquilo que chama “cenas nucleares”, que constituem uma espécie de unidades básicas experiênciais, ou esquemas emocionais, a partir das quais o sentido de si se reproduz. As cenas emocionais mais carregadas, ou intensas, teriam o papel de “imagens critério”, que teriam como função integrar as capacidades cognitivas em unidades experiênciais (Guidano, 1987).

O que aqui está em causa é, pois, para sintetizar, a ideia de que, como assinalamos atrás relativamente a Maturana, a linguagem (socialmente determinada) necessita das emoções para ganhar significado pessoal e que é pelas emoções (pela sua capacidade de modulação enquanto disposições corporais dinâmicas) que a linguagem é capaz de estabelecer a diferença específica de cada sistema psíquico.

A minha proposta, agora, é a de que avaliemos a possibilidade de caracterizar como autopoiéticos os sistemas psíquicos, já não somente tendo em conta a particular interpretação que Luhmann faz da autopoiesis (em que se acentua, sobretudo, a sua natureza autorreferencial), mas tendo em conta os critérios de Francisco Varela para a definição de um sistema como autopoiético. Tomar em linha de conta os critérios dos fundadores da autopoiesis para a consideração de um sistema como autopoiético é relevante, no contexto da investigação da natureza da natureza do si ou da constituição e manutenção do sistema psíquico, porque isso traz a esta investigação a possibilidade de operar com conceitos sem os quais dificilmente se pode entender a autorreferencialidade dos sistemas psíquicos, como é o caso do conceito de “membrana” ou de “máquina”. No caso muito particular do conceito de “máquina”, o que está em causa é a possibilidade de pensar os sistemas psíquicos como organizações sistémicas descentradas, em alternativa a uma concepção do mental enquanto “substância natural” com um centro essencial e uma periferia acidental (8). Numa máquina todas os componentes têm a mesma dignidade ontológica, mesmo que uns executem mais funções que outros. Por outro lado, o conceito de “máquina” permite concentrar-nos naquilo que lhe é essencial, a sua organização, mais que nos seus componentes particulares, que só são significativos na medida em que se encontram referidos às relações que “determinam a dinâmica de interacções e transformações dos componentes e, com isso, os estados possíveis da máquina como unidade” (Maturana e Varela, 1973: 15).

Assim, em “O que é a Vida?”, Varela apresenta três critérios de validação de um sistema autopoiético (2000: 33). São eles:

1. Membrana semipermeável: o sistema define-se por uma membrana semipermeável constituída por componentes moleculares que permitem descriminar entre o interior e o exterior do sistema em relação com os componentes relevantes do sistema;

2. Rede de reacções: os componentes da barreira são produto de uma rede de reacções que opera no interior da barreira;

3. Interdependência: a rede de reacções é regenerada por condições produzidas pela existência da mesma barreira.

Vejamos então como é que é possível uma concepção autopoiética dos sistemas psíquicos, ou do si, sendo que, para o ser, terá que responder integralmente aos critérios de Varela.

Assim, quanto a 1. (Membrana semipermeável: o sistema define-se por uma membrana semipermeável constituída por componentes moleculares que permitem descriminar entre o interior e o exterior do sistema em relação com os componentes relevantes do sistema), pode e deve defender-se que a natureza molecular da membrana não é de facto relevante na descrição de um sistema autopoiético (embora o seja, naturalmente, na definição de um sistema autopoiético vivo). É que, definindo-se pela sua organização, um sistema autopoiético decide-se pelo papel funcional dos seus componentes e não pela sua natureza molecular. O tipo de sistema autopoiético em questão (vivo ou não vivo) definir-se-á, por sua vez, seguindo Luhmann, pelo tipo de operação que o define e que lhe permite auto-sustentar-se enquanto unidade sistémica. A natureza material dos componentes dos sistemas autopoiéticos não entra, pois, na definição de sistema autopoiético. É isso mesmo que referem Maturana e Varela no seu opus magnum, “De Máquinas y Seres Vivos”: “... a natureza efectiva dos componentes [de uma máquina] não tem importância, já que as propriedades particulares que elas possuem, aparte aquelas que intervêm nas transformações e interacções dentro do sistema, podem ser quaisquer [componentes]” (1973: 15). Mais expressamente, dizem-nos ainda Maturana e Varela que “uma máquina – qualquer máquina – é um sistema que pode materializar-se mediante muitas estruturas diferentes e cuja organização definitória não depende das propriedades dos componentes”. O que aqui está em causa é a distinção entre organização e estrutura, absolutamente necessária para a tematização dos sistemas autopoiéticos. Pela organização o sistema especifica a sua identidade enquanto sistema, pela sua estrutura ele varia no interior da organização sem perder a sua identidade. Varela, aliás, bem mais tarde que nos momentos pioneiros e entusiastas da autopoiesis, refere, ainda, a necessidade e a utilidade da compreensão dos sistemas autopoiéticos como máquinas que se definem pela sua organização, independentemente da sua estrutura material. Vejamos:

“Assim, o que define uma máquina são as suas relações; e a organização de uma máquina não tem nada a ver com a sua materialidade, quer dizer, com as propriedades dos componentes que a definem como entidade física. A organização de uma máquina implica uma matéria, mas essa matéria não é aí considerada enquanto tal. Assim, uma máquina de Turing é uma certa organização. Mas existe um fosso intransponível entre o modo como se define uma máquina de Turing e qualquer uma das suas realizações (eléctrica, mecânica, etc.)” (Varela, 1989: 42).

É certo que os sistemas autopoiéticos são sempre apresentados por Maturana e Varela, nos textos clássicos, ou noutros menos clássicos, como sistemas físicos. Mas isso constitui uma injustificável limitação das suas actualizações organizativas, sobretudo se levarmos até ao limite epistemológico a máxima de que um sistema se define pela organização e não pela sua estrutura. Limitar os sistemas autopoiéticos a sistemas físicos seria ceder relativamente àquela máxima, uma vez que qualquer “encarnação” sistémica é sempre uma cedência à estrutura em desfavor daquilo que os define, a organização.

Muito em particular, a minha proposta é a de que a membrana de um sistema psíquico autopoiético possa ser entendida como uma estrutura global de sentido que delimite, pela sua capacidade ou não de integrar perturbações narrativas, o eu do não eu. Esta estrutura global de sentido não define a estrutura da máquina psíquica autopoiética mas é decisiva para a sua organização. Vai ser ela (a sua elasticidade e permeabilidade) que vai permitir ao sistema autoconter-se, através de um conjunto de componentes esquemáticos que terão por função articular e permitir os processos de produção de componentes propriamente estruturais e singularizadores desta ou daquela máquina psíquica em concreto.

Defendo que esta estrutura global de sentido é uma estrutura narrativa. Ela delimita os constrangimentos (narrativos) estruturais de uma história que eu conto sobre mim mesmo. Esta estrutura de sentido provê o sistema autopoiético do que é e do que não é possível estruturar, ou dar sentido. Proponho que esta estrutura de sentido e correlativos constrangimentos estruturais sejam descritos como os “universais das realidades narrativas” de Jerome Bruner: estrutura de tempo comprometido, particularidade genérica, racionalidade das acções, composição hermenêutica, canonicidade implícita, ambiguidade da referência, centralidade da crise, negociabilidade inerente e extensibilidade histórica (2000: 173-196). Estes universais estruturam um modo de dar sentido ao mundo, ao real, através de histórias que os homens contam a seu respeito. Bruner, nesta sua proposta, adverte-nos, desde logo, para as objecções cientistas ou formalistas, aquilo que ele chama a “doxología servida em nome do ‘método científico’”, que nos prescreve a intolerância com a auto-ilusão (9) narrativa. Acontece que, muito particularmente naquilo que diz respeito aos problemas da significação, de si e do mundo, o sentido não pode ser raptado por um formalismo ou um empirismo reducionistas, sem espaço para a significação humana que é, exactamente, o espaço da auto-produção de sentido, ou de auto-ilusão. Os “universais das realidades narrativas” partem do pressuposto de que “as histórias precisam de uma ideia acerca dos encontros humanos, pressupostos sobre o entendimento mútuo dos protagonistas, preconceitos sobre padrões normativos” (Bruner, 2000:173). A auto-ilusão narrativa enquanto esquema prévio de significação, assim sendo, é condição de possibilidade do sentido humano do mundo.

Descrevendo-se, então, os universais narrativos de Bruner, a “estrutura de tempo comprometido” corresponde a uma segmentação do tempo através de eventos cruciais ou pessoalmente significativos, irredutíveis a uma temporalidade transcendental. O tempo é, por esta estrutura, ritmado, de modo a acentuar, ou acentuado desse modo, a relevância do seu passar.

Pela “particularidade genérica” as “narrativas lidam com (ou são ‘realizadas’ em) particulares” (Bruner, 2000: 178). As histórias particulares são sempre remetidas para géneros, como se fossem a sua actualização, ganhando o seu significado a partir de “estruturas narrativas mais abrangentes”. As histórias particulares são sempre remetidas para personagens dramáticos, cómicos, irónicos ou satíricos. É nesses géneros que os personagens existem e convivem, alcançando a sua densidade a partir dessa pertença.

Por sua vez, porque “as acções têm razões”, isso implica a existência de estados intencionais. Nas narrativas o que acontece nunca é desprovido de sentido. A causalidade aí presente é sempre uma causalidade intencionada e nunca uma causalidade mecânica. A intencionalidade das acções é mesmo um dos núcleos da narratividade, pois, sem ela, a narrativa seria desprovida de sujeito e de referência. Enquanto que uma certa concepção formalista da realidade nos provê de causas, a narrativa provê-nos de razões.

Por outro lado, a compreensão narrativa tem uma “composição hermenêutica”, o que quer significar a irredutibilidade de toda a interpretação narrativa. De facto, a interpretação narrativa não é susceptível de redução a um algoritmo racional que faça emergir o seu sentido verdadeiro. Alternativamente a uma concepção racionalizadora, a interpretação narrativa ocorre sempre por referência a outras narrativas, enquanto efeitos de legitimação. Particularmente, recorda-nos Bruner, “isto cria o famoso ‘círculo hermenêutico’ – a tentativa de justificar a correcção da ‘leitura’ de um texto não por referência ao mundo observável ou às leis da razão necessária, mas por referência às outras leituras alternativas” (2000, 182). No círculo hermenêutico as partes narrativas ganham sentido através de uma estruturação prévia de significação mas, por sua vez, elas mesmas tendem a reforçar ou abalar partes da significação totalizadora.

A “canonicidade implícita” das narrativas implica, por sua vez, a necessidade de a narrativa se estruturar sempre no sentido da confirmação ou do rompimento das expectativas. O desvio canónico não é mais que, afinal, uma necessidade formal de a narrativa se referenciar ao “hábito” narrativo, constituindo-se como uma canonicidade negativa. A narrativa estabelece-se pois, num jogo de conflito permanente entre a canonicidade e a convenção, entre o tédio e a invenção.

Pela “ambiguidade de referência” “as interpretações narrativas põem a referência a ‘marinar’ em ‘sentido’, ao ponto de a primeira se tornar apenas um modo através do qual o último se exprime” (Ibidem, 187).

A “centralidade da crise” cumpre, por outro lado, uma função de dinamismo inerente à estrutura narrativa. É pela crise, pela perturbação, que a narrativa ganha dinamismo.

A “negociabilidade inerente”, por sua vez, imprime no interior da narrativa a suspensão da incredulidade, pela qual o virtual e o impossível se tornam actuais e possíveis. É por esta negociabilidade que a narrativa se impõe de modo universal, ao contar no seu interior com a exigência da credulidade.

Por último, pela “extensibilidade da narrativa” a narração ganha raízes no passado e estende-se até ao futuro através da irrupção de momentos fortes, de nodos narrativos que a pontualizam e temporalizam de modo emocionalmente pregnante e que a constituem através de uma sucessão de tempos fortes.

O problema a que Bruner tenta dar resposta com os seus universais narrativos é o de saber se as narrativas idiossincráticas existem em roda livre (em produção gramatical reiteradamente nova) ou se, pelo contrário, há algo nas narrativas humanas que, para além da sua idiossincrasia, estabelece modos transversais de as categorizar e ordenar. A resposta de Bruner é a de que há como que uma gramática “transcendental” (embora ele não lhe chame assim) da narratividade sobre o real. Bruner não aplica estes universais narrativos, directamente, à construção do si. No entanto, na medida em que o si é uma parte do real, é legítimo que eles também lhe sejam atribuídos. Pressuponho, no entanto, que estes universais são contingentes, i.e., resultam de circunstâncias culturais e civilizacionais, de uma deriva evolutiva da espécie humana que, ao constituir-se na linguagem, estruturou para si própria uma rede ampla de sentido e de ordem narrativa.

Dada a sua natureza contingente, estes universais narrativos são susceptíveis de mudança em virtude do caminhar incontido (a não ser pela morte da espécie humana) da mesma deriva evolutiva que lhe deu origem. A mudança pode ocorrer através de perturbações especialmente fortes provocadas pelo ambiente (sendo que cada sistema psíquico autopoiético funciona como ambiente para os outros sistemas psíquicos autopoiéticos), induzindo mudanças congruentes entre os vários sistemas psíquicos através do processo de acoplamento estrutural, o que conduziria a uma estrutura comum da membrana. Estas perturbações susceptíveis de alterarem o equilíbrio da membrana narrativa universal, pela sua dimensão e força, podem conduzir, por outro lado, à erupção de erros de integração da matéria narrativa estrutural que funciona no seu interior. As mudanças são, pois, engatilhadas de modo exógeno. Mas é de modo endógeno que as máquinas psíquicas autopoiéticas podem ver alterada a sua membrana narrativa estrutural, através de um processo que pode ser descrito como em tudo semelhante ao processo de mutação genética das máquinas vivas autopoiéticas. Do ponto de vista estritamente biológico, acontece uma mutação quando a ordem, ou o sentido, do texto genético (do ADN) é alterado. O texto genético organiza-se através de séries nucleicas (que determinam certas sequências proteicas), quer dizer, estruturas moleculares que cumprem funções específicas no conjunto da organização celular. As séries nucleicas podem ser alteradas quer na sua ordem, quer adicionando ou omitindo qualquer uma das suas componentes ou sinais (Jacob, 1985: 272-273). As mutações genéticas, uma vez ocorridas, são “fielmente recopiadas de geração em geração”. Perece-me razoável supor que as mutações da estrutura narrativa universal (da membrana narrativa) ocorram através de interpretações erradas, ao nível das redes de produção e relação de componentes, das prescrições estruturais da membrana que, por sua vez, vão influenciar, por efeito de feedback e de modo recorrente, a própria membrana, até ao ponto de alterar alguns dos seus nodos estruturais, alteração essa que seria posta em campo evolucionário através dos acoplamentos estruturais próprios da deriva evolutiva, sobrevivendo se se mostrasse adaptativa, e perecendo se se mostrasse inadequada ou irrelevante para a acomodação das perturbações do ambiente. Por exemplo: ainda que a membrana narrativa prescreva a necessidade de que o si seja entendido como extensível até ao passado (“extensibilidade narrativa”), obrigando-o a contar uma história sobre os seus ascendentes através da pontualização de momentos de viragem psicológica e social (Bruner, 2000: 191), pode ocorrer que esta exigência não possa ser preenchida em virtude de acontecimentos no ambiente do psiquismo (uma violação, o assistir a uma morte violenta de um ente querido, ter sofrido um efeito permanente de double bind), ao ponto de a “história pretérita” do si ser contada de modo descontínuo, com períodos brancos em termos de memória ou manifestamente incoerente com outras partes da narração de si. Esta incoerência, por sua vez, se reiterada durante anos, ou décadas, pode conduzir à emergência de outros nodos da estrutura narrativa universal que sejam susceptíveis de dar sentido a uma temporalidade descontínua.

Outro exemplo é o que pode ocorrer através de um processo de contínua e integral desconfiança do mundo. Um dos nove universais narrativos de Bruner é aquilo a que ele chama a “negociabilidade inerente” das histórias que se contam, e que nos contam, sobre a vida. Particularmente nas crianças, a construção de si e do mundo ocorre através de um processo de negociação narrativa com as pessoas que lhe são próximas, em que as várias versões do mundo são consideradas de modo pronto e ubíquo. Há pois uma aceitabilidade inerente, por parte das crianças, das histórias que são contadas, ainda que sendo continuamente depuradas através de um processo contínuo e deslizante. No entanto, em certas condições específicas, não só as crianças mas também os adultos rompem com esta “negociabilidade inerente”, sobretudo se expostos a situações recorrentes de mentira e desconfiança, conduzindo a uma incapacidade de “suspender a desconfiança”, inerente e necessária a todo o processo inferencial e narrativo. Ou seja, sem um certo nível de aceitabilidade inerente das histórias e das crenças alheias, é impossível a integração do mundo e de si, conduzindo, eventualmente, a um processo de desenvolvimento patológico. Por seu lado, não me parece epistemologicamente incoerente a possibilidade de que, nestes casos específicos, este nodo estrutural das narrativas (a “negociabilidade inerente”) seja substituído por um outro ou outros que permitam a construção de si em termos de contínua integração da desconfiança (10).

Naturalmente, este processo de mudança estrutural não é nem rápido nem fácil. Não é rápido porque exige sucessivas experiências parcelares, incompletas e imperfeitas de estruturações narrativas amplas que se vão solidificando ou não, conforme a sua operatividade e eficácia na atribuição de sentido às sucessivas perturbações ou encontros dos sistemas psíquicos com o entorno. Não é fácil porque as variações da estrutura narrativa têm que ser posta à prova através da acomodação de perturbações sucessivas, conduzindo, muitas vezes, à desestruturação do si, o que se pode manifestar através da doença mental, da marginalidade social ou mesmo da morte física. No entanto, também se poderá dizer, simplesmente, que aquilo a que chamamos alterações patológicas do si, que corresponderiam a universais narrativos “anómalos”, podem corresponder a uma resposta da máquina psíquica autopoiética à sobrevivência já que, no que diz respeito à sobrevivência do si psíquico e da biologia que lhe serve de infra-estrutura, não há nem pode haver hierarquia de legitimidades ontológicas (11).

Por sua vez, enquanto a membrana como universal narrativo cria as condições amplas da construção do si (funcionando como uma espécie de si virtual à espera de ser actualizado), é no seu interior que, através de redes particulares de produção de componentes, o si se estrutura de modo particular, modulado por emoções idiossincráticas. Os componentes particulares de uma máquina psíquica autopoiética, de um si narrativo, são os personagens particulares de si que são criados: os ritmos e sentimentos próprios (dizendo respeito à capacidade de representar o corpo e as emoções), as temporalidades (tempo distante, próximo ou futuro significativos), os espaços (fortes, homogéneos ou descontínuos), etc., no contexto de tonalidades emocionais, esquemas emocionais ou “imagens critério”, conforme vimos acima relativamente à tematização de Vittorio Guidano. A estrutura da máquina psíquica autopoiética constitui-se enquanto capacidade de re-presentar aqueles elementos, nos termos em que a re-presentação é tematizada por Glasersfeld, ou seja, “acto mental que traz uma experiência anterior à consciência de um indivíduo” e nos termos da qual esse acto mental ganha significação.

As relações que se estabelecem entre os vários componentes (através desta ou daquela modulações emocionais) constituem as redes de produção dos próprios componentes, de modo similar ao processo criativo de um romance ou de um poema, sendo catalizadas pela flexibilidade da membrana (capacidade de amortecer perturbações culturais e linguísticas mais ou menos dispares e complexas), pela emocionalidade prototípica e pela plasticidade das redes de produção que se vão formando.

Muito em particular, e como já vimos, a acomodação de perturbações ambientais dá-se sempre em termos da estrutura narrativa prévia (da membrana narrativa) e da sua dança com as redes de relação e produção de componentes e não em termos de um sentido ou uma coerência externa à estrutura narrativa interior – há pois clausura operacional e determinação estrutural dos sistemas psíquicos autopoiéticos. Explicitando. Se, antes de mais, as acomodações narrativas de si se dão, claramente, em termos da estrutura narrativa universal que constitui a membrana, já em sentido mais estrito também entra na definição do que é e não é assimilável a estrutura do sistema, entendida aqui como o conjunto das redes concretas de produção de componentes, bem como as tonalidades emocionais idiossincráticas. Há pois uma dialéctica permanente entre aquilo que é permitido, em sentido amplo, pela membrana, e aquilo que é permitido, em sentido estrito, pela estrutura (concretização particular) do sistema autopoiético.

Quanto a 2. (Rede de reacções: os componentes da barreira são produto de uma rede de reacções que opera no interior da barreira), pode-se legitimamente afirmar que, no contexto da concepção de uma máquina psíquica autopoiética, os constrangimentos estruturais da história narrativa que eu posso contar sobre mim mesmo (a membrana narrativa ou os “universais das realidades narrativas” de Jerome Bruner) são produzidos enquanto abstracções de narrações particulares, ou, o que é o mesmo, da estrutura que concretiza a organização autopoiética, ou ainda, noutras palavras, das redes de produção de componentes. São as narrações particulares que estruturam os universais narrativos, que lhes dão densidade, que os reforçam ou que os fragilizam, que, preenchendo a sua malha larga, acabam por reforçar as suas juntas, quer dizer, as suas conexões ou nodos estruturais. As narrações particulares, se não contribuírem para o enrijecimento (dando “razões” à membrana narrativa para se estruturar como tal e tal) da membrana, podem conduzir, no limite, ao rompimento dos nodos estruturais e, portanto, ao rompimento da organização autopoiética, ou seja, à doença ou, no limite, à morte. As redes de produção de componentes e de relações dão razão de ser, sentido de si, à estrutura narrativa universal. Pode-se dizer que a estruturação particular da organização autopoiética reforça a estrutura narrativa e a actualiza. Glosando a famosa máxima kantiana, pode dizer-se que a membrana, enquanto universal narrativo, sem os componentes e as relações entre componentes é vazia e os componentes e suas relações, sem a presença da membrana, são caóticos (ou, mais radicalmente, nem viriam a si).

Naturalmente, a fixação reiterada de uma única reacção de si (de um ou poucos conjuntos de componentes e relações entre componentes), empobreceria a elasticidade da membrana narrativa porquanto fossilizaria os seus nodos estruturais, que, por sua vez, conduziria a uma reiterada confirmação da produção de componentes e de relações entre componentes, impossibilitando, circularmente, novas e mais adaptativas narrações e criações de si. A fossilização das estruturas narrativas universais (de membrana) faria diminuir a capacidade de acoplamento estrutural ao ambiente e tornaria a máquina psíquica autopoiética crescentemente desadaptada.

Finalmente, quanto a 3. (Interdependência: a rede de reacções é regenerada por condições produzidas pela existência da mesma barreira), pode dizer-se que, se, por um lado, as redes de reacções que operam no interior da barreira, produzem, por abstracção, a barreira ou membrana, esta, por sua vez, possibilita o enquadramento geral daquelas reacções (ou narrativas particulares) em “universais das realidades narrativas”. Os universais das realidades narrativas seriam, pois, contingentes. No interior da barreira, as redes de reacções particulares que constituem a estrutura do sistema possibilitam a emergência de uma membrana que, por sua vez, é a condição de possibilidade daqueles reacções, uma vez que é ela que lhe dá continuidade e lhe ministra a interpenetração sistémica ao permitir o acoplamento com outros sistemas autopoiéticos.

Teremos, assim, o seguinte esquema global de uma máquina psíquica autopoiética, que resulta das adaptações necessárias das máquinas autopoiéticas vivas:

Cada indivíduo é, do ponto de vista das suas operações de consciência, intrinsecamente fechado às outras consciências. Assim, as outras consciências só podem surgir como elementos perturbadores do sistema narrativo, não agindo directamente sobre as unidades da consciência que se constituem no interior do “metabolismo”, ou das reacções narrativas. Por seu lado, as “saídas” ou expressões da consciência individual só podem ocorrer sob a forma de narrações linguisticas. Quando um sistema psíquico é perturbado por outro sistema psíquico, ele tenta enquadrar essa perturbação em termos de uma narração da identidade de alter, encaixando-a num dos “universais narrativos” que, eventualmente, pode produzir em si reordenações estruturais. No entanto, aquele encaixe pode dar azo a mais ou menos subtis distorções daqueles “universais” (como explicado acima), até ao ponto em que sucessivas distorções cristalizam novos modos de estruturação das relações e do sentido de si.

Ocorrendo embora sob a forma linguística, as perturbações dos sistemas narrativos não põem em causa a determinação estrutural e a clausura operacional dos sistemas de consciência. A linguagem exterior ao sistema não especifica no sistema nenhum tipo de reordenação estrutural, contribuindo simplesmente para “engatilhar” (a expressão é de Maturana e Varela) novas reestruturações sistémicas de si, enquadradas por modularidades emocionais idiossincráticas.

De modo mais analítico, as máquinas psíquicas autopoiéticas podem expressar-se, graficamente, do seguinte modo:

1. MEMBRANA SEMIPERMEÁVEL: o sistema define-se por uma membrana semipermeável constituída já não por componentes moleculares mas por universais narrativos que permitem descriminar entre o interior e o exterior do sistema em relação com os componentes relevantes do sistema.

2. REDES DE REACÇÕES: os componentes da barreira são produto de uma rede de reacções que opera no interior da barreira.

3. INTERDEPENDÊNCIA: a rede de reacções é regenerada por condições produzidas pela existência da mesma barreira.

 

(1) Uma das razões pela qual não é legítima a atribuição do epíteto de idealista a Luhmann deve-se a esta determinação negativa do sistema por parte do ambiente. Os sistemas são, para Luhmann, coisas reais, não puros constructos mentais. Acontece que a determinação dos seus limites emerge de actos de distinção, ou, bem entendido, como no caso dos sistemas autopoiéticos, de actos de auto-distinção. O mesmo, aliás, se pode dizer de Maturana e Varela. Ainda que todos os sistemas, ou objectos, emirjam através de actos de distinção de um observador, nem por isso eles perdem densidade ontológica, já que esses mesmos actos de distinção articulam o real nos termos da estrutura do observador mas, ainda assim, dentro dos limites negativos do mundo.

(2) Veja-se, atrás, a discussão sobre os dois domínios diferenciados e não intersectáveis de descrição: os domínios da fisiologia e da conduta, que obrigam a uma consideração de uma irredutibilidade da linguagem à fisiologia.

(3) Há aqui uma curiosa proximidade entre as concepções de tempo de Luhmann e de S. Agostinho, pelo menos no que diz respeito à justamente famosa passagem das “Confissões” em que Agostinho nos diz que “é impróprio afirmar: os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras” (Agostinho, 1984: 309). Por vezes surge o argumento de que esta temporalidade de que fala Agostinho não corresponde ao tempo ontológico mas somente ao tempo psicológico. Acontece que, do ponto de vista neurobiológico, esta distinção entre o ponto de vista do mundo e o ponto de vista do observador não faz sentido, uma vez que o observador é incapaz de escapar à radical encarnação da cognição pela qual “tudo o que é dito é dito por um observador”.

(4) As teorias que desenvolveram o conceito de “sistema aberto” “nunca enfrentaram – para Luhmann – o problema da delimitação do que é, na realidade, um sistema” (1996b: 54). O essencial de uma teoria de sistemas resume-se, para o sociólogo alemão, a responder ao problema do que é um sistema. Essa resposta terá que ser alcançada, primeiro, através da elucidação do modo pelo qual se obtém a diferença entre um sistema e o seu ambiente e do modo pelo qual esta diferença se mantém e se reproduz, provendo o sistema de uma crescente complexidade e, segundo, esclarecendo o tipo de operação que torna possível a manutenção da diferença entre o sistema e o ambiente e que é razão da produção de si enquanto sistema (Ibidem: 54 -55). Ora, as teorias dos sistemas abertos não respondem convenientemente a estas perguntas, uma vez que a necessidade de manter a estruturação do sistema em função de inputs informacionais (seja qual for a sua natureza) põe em causa a necessidade de diferença, sem a qual um sistema não se diferencia do ambiente e, portanto, não faz sistema. Por outro lado, a capacidade de se abrir ao ambiente só é possível a partir de um pressuposto de diferença relativamente a esse ambiente. De facto, como assinala Luhmann acertadamente, o fechamento operacional de um sistema é a condição de possibilidade da sua abertura, entendida aqui a abertura como capacidade de transmissão energética ou interpenetração (conceito que pode ser melhor apreendido através do texto de Juan-Luis Pintos, neste mesmo volume), pela qual um sistema provê outro de uma complexidade acrescida.

(5) Segundo a teoria do vínculo de Bowlby, o sentido de si exige um contexto de relações interpessoais contínuo, sólido e positivo, através do qual a criança se provê de esquemas relacionais que constituem o foco e o horizonte de construção das suas habilidades cognitivas e emocionais. A partir das relações físicas mais precoces, a criança estabelece, nas relações vinculares saudáveis, uma crescente capacidade de complexificação mental, que lhe é fornecida pela sensação de segurança, pertença e interactividade corporal e linguística. A natureza do vínculo precoce, aquele que é estabelecido após o nascimento com a figura cuidadora, e posteriormente reforçado, tem uma influência decisiva sobre os mecanismos de auto-identificação e construção de si, constituindo-se como referência para posteriores vinculações. Veja-se Bowlby:

“A experiência de uma mãe que apoia, cooperativa, estimulante e, mais tarde, de um pai com as mesmas características, dá à criança um sentido de auto-estima, uma crença no apoio dos outros e um modelo favorável sobre o qual irá construir as futuras relações. Para além disso, a experiência de lhe permitir que explore o ambiente com confiança, enfrentando-o com afectividade, vai promover um sentido de auto-competência. Daí em diante, se as relações familiares continuam a ser favoráveis, não só vão persistir estes padrões precoces de pensamento, sentimento e conduta, mas também a personalidade se tornará cada vez mais estruturada para operar em formas moderadamente controladas e flexíveis e cada vez mais capaz de continuar assim, apesar das circunstâncias adversas (1983: 378).

(6) Entendo aqui este “sentido cinestésico interior” não como um sentido de si ou a consciência de um self, mas antes como a percepção automática de um si mesmo biológico, como o temos vindo a tematizar.

(7) Richard Rorty, num dos seus mais notáveis ensaios (“Freud e a Reflexão Moral”) elabora-nos uma curta mas sugestiva genealogia daquilo que ele chama, com Dyksterhuis, a “mecanização da imagem do mundo” e, claro da mente, que vai desde Copérnico a Davidson, passando pelo decisivo Freud. Sucintamente, o seu ensaio, alicerçado, como acontece muitas vezes com Rorty, num texto de Davidson (“Paradoxos da Irracionalidade”), sugere a utilidade de pensar o inconsciente freudiano não como um louco irracionalista controlado por uma libido à solta, mas como um outro racional, uma alternativa de mim mesmo “que não pode mais tolerar a inconsistência do que pode a consciência” (Rorty, 1999: 235). O que aqui está em causa, pois, nesta concepção do si inconsciente, é, mais uma vez, a necessidade absoluta de sentido, no caso um sentido alternativo ao sentido consciente, o que está de acordo com a ideia freudiana de que o psiquismo humano não é homogéneo na sua auto-tematização.

(8) É essa uma das acusações de António Damásio, no seu “O Sentimento de Si”, a uma concepção “linguista” e narrativa do si. Veja-se, por exemplo, as seguintes passagens: “Para começar, embora as traduções verbais não possam ser inibidas, são frequentemente produzidas com grande liberdade literária” (2000: p. 219); “Além disso, quando a mente criativa é traduzida em linguagem, facilmente resvala na ficção” (Ibidem); “O hemisfério cerebral esquerdo dos seres humanos é dado a inventar histórias que não se coadunam necessariamente com a verdade” (Ibidem). Para as críticas ao livro e à concepção de si, de Damásio, a partir de um paradigma autopoiético, veja-se Teixeira: 2002.

(9) Naturalmente, esta construção de si por referência a tais universais narrativos (por exemplo, um universal que suspenda toda a confiança no outro e que mesmo assim assegure a integração do si) põe o problema da natureza epistemológica das patologias. A saber: serão as patologias psíquicas criações dos psiquiatras e outros terapeutas psi, ou terão a ver com uma autêntica disfunção ontológica do psiquismo humano?

(10) Do ponto de vista da autopoiesis não se pode falar sistemas mais ou menos adaptados. Os sistemas ou mantêm a sua autopoiesis relativa ou dissolvem-se. O estado da estrutura interna do sistema autopoiético só pode ser considerado desadaptado (ou patológico) do ponto de vista do observador. Já do ponto de vista do sistema, aquele arranjo estrutural particular responde à necessidade da sobrevivência e auto-manutenção do sistema. Tematizando o problema no domínio da autopoiesis do vivo (no nível molecular), os seres vivos ou estão vivos ou mortos. Não podem estar um pouco vivos ou um pouco mortos. De igual modo, do ponto de vista da autopoiesis do psíquico, os sistemas psíquicos ou constituem uma determinado ordem, estrutura de sentido, ou não constituem e o sistema colapsa, sobrevindo a morte, que pode não só ser psíquica (através de XXXX) mas também molecular. Isto tem a interessante consequência de que a dissolução do sistema psíquico autopoiético poder conduzir à dissolução do sistema molecular autopoiético.

AUTOPOIESIS E IDENTIDADE PESSOAL-INDEX