IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004
AUTOPOIESIS E IDENTIDADE PESSOAL
Francisco Teixeira
DO SI MESMO BIOLÓGICO AO SI MESMO HUMANO
2.Linguagem e si mesmo psíquico

O final da secção anterior indica o que temos agora que justificar e sustentar, a saber: que são os acoplamento entre sistemas autopoiéticos de segunda ordem, dotados de sistema nervoso, que produzem o domínio das interacções sociais, o que, no caso do homem, conduz à emergência da linguagem enquanto modo de atribuição de valor semântico a essas condutas, sendo que, porque sabemos já que essa atribuição é exterior à lógica mesma do sistema, isso nos obriga a manter rigorosamente separados os pontos de vista do sistema e o ponto de vista da atribuição, quer dizer, o “operar do organismo e a descrição das suas condutas”.

O que aqui está decisivamente em causa é, pois, um entendimento da linguagem que envolve toda uma concepção relativa às relações entre a mente e o corpo, uma concepção que não hesitaria em chamar emergentista, no sentido em que, sendo certo que o mental necessita da corporalidade para se constituir, não se reduz a essa corporalidade, constituindo-se, antes, no cruzamento social das corporalidades humanas (no acoplamento dos sistemas biológicos que sustentam a sua humanidade) que, aliás, se fazem humanas exactamente por esse cruzamento. Ou seja, o mental, e aí o si mesmo, emerge do corpo mas não se reduz ao corpo, porquanto a corporalidade, sendo embora condição necessária para o mental, não é condição suficiente, necessitando ainda de um tipo de relação, especificamente humana, a linguagem, para que se possa constituir.

Mas vejamos então, antes de mais, o modo específico como acontece a linguagem humana.

Como modo de esclarecer o nosso assunto presente, Maturana e Varela (1996) apresentam-nos o sugestivo exemplo de um gato que, todas as manhãs, caminhava por cima das teclas do piano do seu dono. Se o seu dono acordava, encontrava invariavelmente o gato junto à porta de saída para o jardim, após o que, aberta a porta, o gato saía rápida e “alegremente”. Com naturalidade, a nossa primeira descrição daquele comportamento passa pela atribuição de um “significado” à conduta do gato: o “significado” de que desejava sair para o jardim. Já estamos, no entanto, em condições de perceber que essa atribuição de significado é apenas isso mesmo, uma atribuição externa ao operar mesmo do sistema “gato”, uma vez que a única coisa que se pode dizer, tendo em conta a determinação estrutural e clausura operacional dos sistemas nervosos do gato e do seu dono, é que ocorreu um gatilhamento mútuo de mudanças estruturais segundo aquilo que as suas estruturas permitem ocorrer. Isto ocorre como um acoplamento tipicamente social, uma vez que desse modo se produz uma coderiva que respeita e reforça a manutenção das correspondentes organizações autopoiéticas.

Assim, a linguagem é sempre o produto de uma atribuição semântica que ocorre a partir da observação das interacções ou coordenações conductuais consensuais entre seres humanos. Na medida em que a linguagem decorre de um operar humano como sistema vivo, a linguagem é um fenómeno biológico. Mas, por ser biológico, isso não quer dizer que a linguagem, enquanto fenómeno, se possa reduzir à neurofisiologia do cérebro, uma vez que, como já vimos, o operar linguístico é exterior à estrutura do sistema autopoiético e relativo à coordenação conductual, logo, exterior à determinação mesma do sistema, ainda que, naturalmente, pressuponha estruturas neurofisiológicas.

O essencial do que, aqui, se pretende salientar, é que a linguagem e a fisiologia ocorrem em dois domínios disjuntos, em dois domínios fenoménicos diferenciados que não se intersectam, ou, mais exactamente, “a linguagem como um tipo especial de operação em coordenações de acções requer a neurofisiologia dos participantes, porém, não é um fenómeno neurofisiológico” (Maturana, 1997: 50). A linguagem decorre de um domínio relacional, dinâmico e contingente, no qual a corporalidade humana opera como uma totalidade e não enquanto sistema composto determinado estruturalmente.

A linguagem constitui, do ponto de vista da autopoiesis, não uma estrutura de sentido, mas um fenómeno conductual. A linguagem é, pois, coordenação conductual e não um veículo de transmissão de conteúdos semanticamente determinados. A linguagem coordena condutas. No entanto, esta definição, por si só, não é suficiente. A coordenação conductual ocorre também a um nível não linguistico. Assim, o que é especifico da linguagem humana é que a coordenação conductual que aí ocorre, ocorre de modo consensual, recursivo e recorrente. Consensual porque exige congruência de comportamentos entre vários sistemas ou unidades, recorrente porque esse congruência se repete de modo contínuo e sistemático e recursivo porque os resultados desse processo congruente e recorrente são re-aplicados sobre o próprio processo, de modo circularmente produtivo (1). É a recursividade linguística, muito em particular, que irá dar à linguagem humana a sua especificidade, pois é através da recursividade que a linguagem humana se institui como um sistema infinitamente produtivo de contínuas relações e acoplamentos estruturais. Sem a recursividade a linguagem torna-se mera repetição de esquemas conductuais filogeneticamente determinados (que é o que acontece com as chamadas linguagens animais, particularmente dos insectos sociais como as abelhas ou as formigas).

A linguagem humana, pois, não se constitui, meramente, como uma coordenação conductual, mas, mais exactamente, como um fenómeno de coordenação de coordenações conductuais consensuais. Uma coordenação de segunda ordem, pois. O que nos conduz, por outro lado, à conclusão de que a linguagem não é um domínio formal e abstracto de relações, mas um domínio de relações estruturais que envolve o homem enquanto totalidade, já que “as interacções na linguagem não têm lugar num domínio de abstracções, pelo contrário, têm lugar no concreto do corpo físico dos participantes” (Maturana, 1996: 146), sendo que as emoções envolvidas nessa totalidade sistémica acabam por condicionar o tipo de relações estruturais possíveis e, portanto, o tipo de relações linguísticas possíveis.

A presença das emoções enquanto mecanismo de modulação das relações estruturais possíveis do homem enquanto totalidade, quer dizer, enquanto mecanismo de modulação da linguagem, vai ter, no contexto da compreensão da natureza da linguagem humana, uma importância capital, já que o que é relevante nas emoções é que quando elas mudam muda também o domínio de acção em que nos encontramos, quer dizer, altera-se a disposição (prévia e primitiva) do corpo para aceitar ou rechaçar determinadas premissas ou pressupostos linguisticos. As emoções constituem pois, para Maturana, coerências operacionais internas que são responsáveis, nas palavras de Damásio, “por modificações profundas, tanto na paisagem corporal, como na paisagem cerebral” (Damásio, 2000: 73-74), delimitando o tipo de acção possível . Em rigor, não há distinção entre o humano e o não humano no que diz respeito às emoções. Num caso como nos outros as emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os distintos domínios de acção em que os animais se movem. Assim sendo, todas as interacções recorrentes entre sistemas vivos (e particularmente entre os humanos) são sustentadas e determinadas por essas coerências operacionais ou “disposições corporais dinâmicas” que são as emoções. Ou seja, quando mudamos de emoção mudamos também e automaticamente o domínio disposicional da acção em que nos encontramos, sendo que isso indica, no caso dos humanos, que as distinções constitutivas do real que a partir de agora se vão operar vão ser constitutivamente diferentes das anteriores. As emoções, enquanto “esquemas” corporais dinâmicos (que se reconfiguram pendularmente) despoletam umas e inibem outras distinções possíveis, sendo que são as distinções, enquanto actos constitutivos do observador, que configuram o mundo (2). Mais ainda. Só quando se dá um fluxo de disposições corporais coordenadas e recorrentes entre dois ou mais sistemas pessoais é possível a uns e aos outros aperceberem-se das distinções sucessivas que são operadas por uns ou por outros. Ou seja, sem esta congruência ou acoplamento emocionais as distinções sucessivas de um e outro sistema são constitutivamente cegas a um e ao outro. Esta descrição do modo pelo qual as emoções constituem os domínios operacionais nos quais as distinções dos observadores se podem coordenar ou não, corresponde àquelas circunstâncias nas quais vulgarmente nos apercebemos de que há palavras e discursos que não conseguimos dizer ou que só os conseguimos dizer debaixo de circunstâncias emocionais muito particulares (“Eu não consigo dizer isso na presença dela”). O mesmo ocorre com aquelas outras circunstâncias nas quais certas palavras e certos discursos são incapazes de mobilizar a nossa vontade e a nossa razão, por não estarem reunidas as condições necessárias de emocionalidade, manifestas, por exemplo, numa relação afectiva (virtual, imaginada ou real) entre o orador e a plateia (sendo que nós mesmos podemos ser a nossa própria plateia), já que o que nos conduz à acção não é a Razão mas a emoção. O que nestes casos, como noutros, está em causa, não é a natureza mais ou menos racional dos discursos ou a nossa maior ou menor preparação técnico/retórica, mas a natureza da emoção que em cada momento particular caracteriza os domínios de acção em que nos movemos.

Por sua vez, a distinção nuclear entre as emoções humanas e as emoções não humanas é que aquelas podem operar e organizar-se, são moduladas, de modo recursivo (veja-se nota 11, acima) através da linguagem, enquanto as segundas não o fazem nem são capazes de fazer (embora esta distinção não afecte o seu fundo comum de disposições corporais dinâmicas, já que a diferença apontada ocorre no que diz respeito ao seu operar e não quanto à sua estrutura). No “linguajar” entre dois ou mais seres humanos, o tipo ou natureza desse “linguajar” é determinado por aquelas disposições corporais que incentivam ou interrompem o fluir das conversações. Ouçamos Maturana: “O processo de linguajar flui em coordenações de acções dos seres humanos num meio de emoções que constitui a possibilidade operacional para o seu acontecer e específica os domínios consensuais nos quais este tem lugar” (1996: 86-87). Ou seja, entre as emoções e a linguagem estabelece-se uma espécie de circularidade ou recorrência operacional pela qual o cruzamento consensual do emocionar com a linguagem pode conduzir a um reforço das nossas emoções e, consequentemente, do domínio conversacional (ou não). Mais explicitamente ainda: entre as emoções e a linguagem ocorre uma mútua modulação ou perturbação, que altera os domínios corporais e/ou conversacionais em que nos encontramos e somos capazes de nos situar, constituindo aquilo que Maturana chama linguajar. Assim sendo, aquilo a que chamamos Razão ou Lógica não é mais que a descrição que fazemos das coerências operacionais especialmente recorrentes no âmbito do cruzamento consensual de disposições corporais dinâmicas. Por estas razões, pode dizer-se, pois, que a Razão enquanto coerência operacional consensual e recorrente só se manifesta através das emoções que ocorrem no âmbito das coordenações conductuais consensuais, e particularmente naquelas que se manifestam através do linguajar ou do conversacional. Não há, pois, Razão sem emoção, sendo que, antes pelo contrário, a emoção é que constitui o mais profundo substracto sobre o qual a Razão acontece enquanto coerência operacional consensual e recorrente sendo que, para além disso, dada a contingência das coerências operacionais possíveis, a Razão é múltipla e estritamente contextual, em função, exactamente, das distintas disposições corporais dinâmicas (ou emoções), dando origem àquilo que Maturana chama “multiversos” (3). Damásio, aliás, aproxima-se destas asserções, ao concluir que “os motores da razão também requerem emoção, o que significa que o poder da razão é por vezes bem modesto” (2000: p. 80), não dando embora o salto necessário que Maturana efectivamente dá sobre a universalidade da Razão, ao sustentá-la na deriva contingente das disposições corporais dinâmicas, ou seja, na deriva contingente das emoções.

 

(1) Numa recursão, diferentemente de uma repetição, o resultado de um processo circular é reaplicado nesse mesmo processo em consequência das suas ocorrências prévias. A circularidade recursiva escapa assim à tautologia na medida em que é uma circularidade dinâmica e exponencial. Ou seja, as descrições do mundo operadas por um ser humano, ao contrário das descrições ou representações animais, podem ser redescritas tendo em conta os resultados dessas descrições e assim sucessivamente, de modo virtualmente infinito. Ainda que se admita um certo nível de recursividade no operar não humano, a verdade é que essa recursividade é excepcionalmente limitada, sendo, de facto, despicienda, se comparada com o nível da recursividade humana.

(2) É Niklas Luhmann quem, no pensamento contemporâneo, mais insiste neste ponto, construindo quase toda a sua obra dobre a base dos conceitos de “distinção” e “diferença”, conceitos nucleares de uma nova ontologia da diferença, em contraposição à “velha” ontologia da unidade. Tendo como ponto de partida o aforismo de Maturana e Varela segundo o qual “tudo o que é dito é dito por um observador”, Luhmann diz-nos explicitamente, e sustenta-o numa obra imensa e de imensa complexidade e riqueza, que “o conceito observar não implica, portanto, nenhum acesso a uma realidade situada no exterior. No seu lugar colocam-se as distinções mesmas. A realização concreta da operação de distinguir produz uma forma, quer dizer, o que sucede diferentemente do que não sucede” (1996: 120). Claro está, toda a distinção exige e supõe um ponto cego, isto é, a incapacidade que cada observador tem de se observar a si mesmo no acto de distinguir: “ninguém pode observar-se a si mesmo como aquele que opera a diferença” (Ibidem, p. 120).

(3) Um multiverso é, para Maturana, um domínio de explicações e ou um domínio ontológico, no qual os objectos, ou entidades, surgem “mediante as coerências operacionais do observador que o constitui”. A possibilidade de conceptualização de multiversos depende de se ser capaz de perceber que, do ponto de vista operacional e científico, há duas vias epistemológicas básicas, a saber, a linha da “objectividade sem parêntesis”, ou transcendental, ou a linha da “objectividade entre parêntesis”, que tem em conta a natureza biológica do acto de conhecer e, por tanto, a sua natureza auto-referencial (1996: 11-96).

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