CIÊNCIAS
Cognitivas e Identidade pessoal
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Alberto Carreras

IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004
INDEX

1. Consciência e Identidade Pessoal: um problema tradicional
2. O “hard problem”, hoje

3. Melodias neuronais e génese da consciência
4. Neurogénese da subjectividade
5. Narrações e sociogénese do self
6. Identidade plural e função unificadora da consciência
BIBLIOGRAFIA

6. Identidade plural e função unificadora da consciência

Com tudo isto, as actuais Ciências Cognitivas apresentam uma nova imagem do eu, plural e pouco hierárquica, mais similar a um mosaico ou a um entablamento de uma enorme quantidade de peças e cores que a um condutor ao volante do seu veículo (para recordar a metáfora de Eccles que rememora o auriga platónico). Ao pluralismo neurológico, ou a uma visão modular da mente e da consciência, vai-se unir o pluralismo sociológico, isto é, a multitude de aspectos do “eu” derivados da diversidade das nossas relações sociais.

As Ciências Cognitivas não encontram nenhum núcleo invariável da nossa identidade ou uma personalidade interna que permaneça constante. A única unidade relativamente estável é a biológica e, a seguir, a que deriva da nossa memória. A biológica é a de um organismo que se reconstrói e está fundado no património genético e no sistema imunitário, seleccionador dos componentes próprios face aos estranhos. Mais além disso, a identidade pessoal aparece como o resultado de um inacabável processo de unificação e reinterpretação das nossas experiências, actuais e passadas, em busca de congruência.

Encontramo-nos, hoje, novamente próximos do paradigma de Hume, o primeiro dos filósofos modernos que negou a existência de um núcleo substancial dentro de nós, dissolvendo desse modo a alma ou a psique numa série de percepções sucessivas. De maneira que, já em 1989, Baars não tinha problemas em declarar que havia um “amplo consenso” dentro das Ciências Cognitivas em considerar a consciência como produto de uma “sociedade distribuída de especialistas”. Trata-se de uma concepção modular, em que muitos indivíduos ou módulos vão coordenando o seu trabalho especializado, dando como resultado uma unidade pouco hierárquica. É a imagem da psique como uma sociedade de agentes e agências (Minsky, 1985), ou de simpletons (Ornstein, 1991), que se vão revelando no controle da mente e da conduta. A psique ou o eu considerados são nomeados como membro de um pandemonium.

Strawson (1997) apresenta um self unificador para a nossa experiência interna, porém, limita este papel a um momento temporal. A nossa auto-imagem varia de um momento para o outro, pelo que, segundo ele, devíamos falar de muitos selves sucessivos.

Dentro deste contexto, defendi que o papel unificador da consciência é o de dar coerência à nossa experiência. Ora bem, tal congruência é bastante arbitrária. Consegue-se formulando hipóteses e contando histórias que encaixem umas nas outras, que sejam congruentes entre si, sem que tenha muito sentido perguntarmo-nos se cada uma dessas narrações em particular é “verdadeira” ou o reflexo fiel das experiências, pois é o conjunto de todas elas que resulta como algo útil ou aceitável. A consciência elabora interpretações, isto é, unidades superiores que dão sentido aos átomos da experiência. Para isso conta histórias, mas depois de terem ocorrido os factos e das experiências terem tido lugar (Michie, 1994, 1995), ou depois de termos tomado as decisões (libet, 1985, 1994). Já Jaynes (1976) comentava como a consciência está todo o tempo encaixando coisas dentro de narrações verbais e não verbais. O mesmo concluía Gazzaniga (1978, 1985, 1998), acrescentando que o hemisfério esquerdo é menos fiável que o direito nesta tarefa. Em resumo, a consciência equipara-se à montagem final de um filme, graças à qual adquirem coerência as sequências que foram anteriormente filmadas.

Desempenhado este papel, o eu apresenta-se como um grande fabulador. Dennett, na sua teoria das “versões múltiplas”, considera-o pouco fiável. Se a memória entrelaça materiais de diversas origens, mudando as suas narrações uma e outra vez, o mesmo faz a consciência em cada breve momento, entrelaçando percepções actuais com outros estados mentais. Por isso, o presente ou o passado que aparecem à nossa consciência são diferentes versões ou “esboços múltiplos” de interpretações das nossas sensações e emoções. Não há uma versão que seja autêntica, a original, de que as demais sejam falsificações.

Mas, se não há um núcleo da identidade psíquica, se esta é modular e, para além disso, mutável e pouco fiável, haverá, pelo menos, uma hierarquia dentro destes módulos, um processador central que controle as execuções de todos os subordinados e que seja o nosso referente quando falamos de nós mesmos?

Propus anteriormente que a capacidade de planificar e de controlar a execução de acções conscientes a médio e longo prazo, lograda pelo lóbulo frontal junto com a conexão inter-hemisférica, propiciava esta hierarquia psicológica sobre os estímulos imediatos, permitindo um domínio da razão sobre a emoção, os automatismos e os processos inconscientes. Porém, a Psicologia e a própria experiência nos dirão que tal hierarquia é, em primeiro lugar, o resultado final de uma etapa e não um ponto de partida. Também nos recordarão que o seu poder é muito limitado, como sabemos por experiência própria. Os mesmos planos racionais de adelgaçamento do obeso são derrotados uma e outra vez; o mesmo para os do fumador, do alcoólico, do toxicodependente, do obsessivo sexual e, em sua medida, os de todas as pessoas normais. Os diversos módulos mentais que trabalham às escondidas, desde os instintos até aos hábitos, impõem-se uma e outra vez aos planos racionais que chocam com eles. De maneira que não devemos considerar como uma excepção as limitações da razão no controle do comportamento, mas uma norma.

Os primeiros cognitivistas, como Fodor, falavam da mente e da sua linguagem como de estruturas hierárquicas, semelhantes às dos computadores sequenciais que se regem por um programa e têm um processador central. Mas o novo paradigma conexionista fala de arquitecturas neuronais em paralelo, com muitos circuitos independentes que unem as entradas com as saídas, que podem associar-se ou utilizar outros para seu serviço, mas que, porém, não estão sujeitos a uma hierarquia pré-estabelecida.

Não havendo um núcleo de identidade estável nem um módulo centralizador, a identidade pessoal aparece como uma entelequia fragmentada, movendo-se entre a pluralidade e a unidade, entre a hierarquia e a anarquia. Se a unificação não se leva a cabo aparecerá não só a esquizofrenia ou a personalidade dividida, mas também a “multifrenia” ou personalidade múltipla, que Gergen (1990) descreve como característica de uma época onde a multiplicação de relações e de papeis nos obriga a desenvolver tantos aspectos de nós mesmos como os diferentes contextos em que nos encontramos. Esta multifrenia não é produto de uma cisão mas o resultado de uma falta de unificação, da aparição de vários núcleos unificadores da experiência, com as suas respectivas auto-narrações que lhes dão coerência.

De modo que, entre as múltiplas funções da consciência, como são as de ressaltar fenómenos de interesse, facilitar a correcção de erros, planificar e supervisionar operações, socializar a mente, etc., quero sublinhar aqui a sua função unificadora da experiência interna. Em consequência, a falta de coerência, a mutabilidade e a desestruturação da personalidade, hoje cada vez mais frequentes, são sintomas da pluralidade e complexidade da uma sociedade complexa, variável e interactiva, escassa de valores e modelos integradores. O que assim se assinala é um insuficiente desenvolvimento da consciência integradora dos indivíduos e da sua conseguinte autonomia pessoal. São os traços de personalidades dependentes, muito distantes da personalidade monolítica, autoritária e fundamentalista, mas complementares dela.

Porém, não devemos considerar negativamente a pluralidade dos aspectos da nossa identidade, como se dela se derivasse necessariamente a desestruturação ou uma debilidade de personalidade. Pelo contrário, assumir o nosso pluralismo – ainda que conservando uma boa dose de coerência – constitui um antídoto contra os fanatismos, que, segundo Maalouf (1998), reduzem perigosamente a identidade pessoal a um só dos seus aspectos, a uma só pertença, seja étnica, religiosa, nacional, etc., a qual chega a eclipsar todas as demais relações humanas, com perigosas consequências para o fanático e para a sociedade.

O papel unificador da consciência pode ter as suas disfunções por excesso ou por defeito; pode derivar até à fragilidade ou a incoerência, por um lado, ou pode absolutizar um só dos seus aspectos, impedindo o desenvolvimento equilibrado de todos os demais.