Chronica do senhor rei D. Pedro I oitavo rei de Portugal
*CAPITULO XXXI* _Como Diogo Lopes Pacheco escapou de ser preso, e foram entregues os outros, e logo mortos cruelmente_.

Feito aquelle tracto d'esta maneira, foram em Portugal presos os fidalgos que dissemos.  

E n'aquelle dia que o recado de el-rei de Castella chegou ao lugar, onde Diogo Lopes e os outros estavam, para haverem de ser presos, aconteceu que essa manhã muito cedo fôra Diogo Lopes á caça dos perdigões. E presos Pero Coelho e Alvaro Gonçalves, quando foram buscar Diogo Lopes, acharam que não era no logar, e que se fôra pela manhã á caça.

Cerraram então as portas da villa, que nenhum lhe levasse recado para o perceber, e attendiam-no assim, estando para o tomar á vinda.  

Um pobre manco, que sempre em sua casa havia esmola quando Diogo Lopes comia, e com quem algumas vezes jogueteava, viu estas cousas como se passaram, e cuidou de o avisar no caminho antes que chegasse ao logar, e soube escusadamente contra qual parte Diogo Lopes fôra, e chegou ás guardas da porta que o deixassem sair fôra, e elles, de tal homem nenhuma cousa suspeitando, abrindo a porta o deixaram ir.  

Andou elle, quanto poude, por onde entendeu que Diogo Lopes viria, e achou-o já vir com seus escudeiros, mui desegurado das novas que lhe elle levava. E dizendo o pobre a Diogo Lopes que lhe queria falar, quizera-se elle escusar de o ouvir, como quem pouco suspeitava que lhe trazia tal recado.  

Afincando-se o pobre que o ouvisse, contou-lhe então áparte como uma guarda de el-rei de Castella, com muitas gentes, chegaram a seu paço para o prender, depois que os outros foram presos, e isso mesmo de que guisa as portas eram guardadas, por que nenhum saisse para o avisar.  

Diogo Lopes, como isto ouviu, bem lhe deu a vontade o que era, e medo de morte o fez torvar todo, e pôr em grão pensamento.  

E o pobre lhe disse, quando o assim viu:

--Crê-de-me de conselho, e ser-vos-ha proveitoso: apartae-vos dos vossos, e vamos a um valle não longe d'aqui, e alli vos direi a maneira como vos ponhaes em salvo.  

Então disse Diogo Lopes aos seus que andassem por alli a perto caçando, cá elle só queria ir com aquelle pobre a um valle, onde lhe dizia que havia muitos perdigões.

Fizeram-no assim, e foram-se ambos áquelle logar, e alli lhe disse o pobre, se escapar queria, que vestisse os seus saios rotos, e assim, de pé, andasse quanto podesse até á entrada que ia para Aragão, e que com os primeiros almocreves que achasse, se mettesse de soldada, e assim, com elles de volta, andasse seu caminho, e por esta guisa, ou em um habito de frade, se o depois haver pudesse, se puzesse em salvo no reino de Aragão, cá por força havia de ser buscado pela terra.  

Diogo Lopes tornou seu conselho, e foi-se de pé, d'aquella maneira, e o pobre não tornou logo para a villa. Os seus aguardaram por mui grande espaço; e vendo que não vinha, foram-no buscar contra onde elle fôra: e andando em sua busca, acharam a besta andar só, e cuidaram que caira d'ella, ou lhe fugira, e buscaram-no com maior cuidado.  

Foi a detença, em isto, tão grande, que se fazia já muito tarde, e vendo como o achar não podiam, levaram a besta e foram-se ao lugar, não sabendo que cuidassem em tal feito. E quando chegaram, e viram de que guisa o aguardavam, e souberam da prisão dos outros, ficaram mui espantados, e logo cuidaram que era fugido: e perguntados por elle, disseram que caçando só, se perdera d'elles, e que buscando-o acharam a besta e não a elle, e que n'aquillo foram detidos até áquellas horas, e que não sabiam que cuidassem, senão que jazia em algum logar morto. Os que cuidado tinham de o prender, foram-no buscar por desvairadas partes. E do que lhe adveiu no caminho, e como passou por Aragão, e se foi a França para o conde Dom Henrique, e de que guisa lhe fez roubar os campos de Avinhão, e de outras cousas que lhe advieram, não curamos de dizer mais, por não sair fóra de proposito.  

Quando el-rei de Castella soube que Diogo Lopes não fôra tomado, houve grão queixume e não poude mais fazer: então enviou Alvaro Gonçalves e Pero Coelho, bem presos e arrecadados, a el-rei de Portugal, seu tio, segundo era ordenado entres elles. E quando chegaram ao extremo, acharam ahi Mem Rodriguez Tenorio, e os outros castelhanos, que lhe el-rei Dom Pedro enviava. E alli dizia depois Diogo Lopes, falando n'esta historia, que se fizera o troco de burros por burros.  

E foram levados a Sevilha, onde el-rei então estava, aquelles fidalgos que já nomeámos, e alli os mandou el-rei matar a todos.  

A Portugal foram trazidos Alvaro Gonçalves e Pero Coelho, e chegaram a Santarem, onde el-rei era. El-rei, com prazer de sua vinda, porém mal magoado porque Diogo Lopes fugira, os saiu fóra a receber, e, sanha cruel, sem piedade os fez por sua mão metter a tormento, querendo que lhe confessassem quaes foram na morte de Dona Ignez culpados, e que era que seu padre tratava contra elle, quando andavam desavindos por azo da morte d'ella. E nenhum d'elles respondeu a taes perguntas cousa que a el-rei prouvesse.  

E el-rei, com queixume, dizem que deu um açoute no rosto a Pero Coelho, e elle se soltou então contra el-rei em deshonestas e feias palavras, chamando-lhe traidor, á fé perjuro, algoz e carniceiro dos homens. E el-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, vinagre, e azeite para o coelho, enfadou-se d'elles, e mandou-os matar.  

A maneira de sua morte, sendo dita pelo miudo, seria mui estranha e crua de contar, cá mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Alvaro Gonçalves pelas espaduas. E quaes palavras houve e aquelle que lh'o tirava, que tal officio havia pouco em costume, seria bem dorida cousa de ouvir. Emfim, mandou-os queimar. E tudo feito ante os paços onde elle pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer.  

Muito perdeu el-rei de sua boa fama por tal escambo como este, o qual foi havido, em Portugal e em Castella, por mui grande mal, dizendo todos os bons que o ouviam, que os reis erravam mui muito indo contra suas verdades, pois que estes cavalleiros estavam, sobre segurança, acoutados em seus reinos.