Chronica do senhor rei D. Pedro I oitavo rei de Portugal
*CAPITULO XXVIII*_ Do testemunho que alguns deram no casamento de Dona Ignez, e das razões que sobre ello propoz o conde Dom João Affonso_.

Passados trez dias que isto foi, chegaram a Coimbra Dom João Affonso conde de Barcellos, e Vasco Martins de Sousa, e mestre Affonso das leis, e no paço onde então liam de decretaes, sendo o estudo n'essa cidade, presente um tabellião, chamaram duas testemunhas, a saber, Dom Gil, que então era bispo da Guarda, e Estevam Lobato, criado d'el-rei, aos quaes disseram que, por juramento dos Evangelhos, dissessem a verdade do que sabiam em feito do casamento d'el-rei Dom Pedro com Dona Ignez. E perguntado cada um per si áparte, o bispo disse primeiramente, que andando elle com o dito senhor, e sendo então deão da Guarda, que n'aquelle tempo, sendo el-rei infante, e Dona Ignez com elle, pousavam na villa de Bragança, e que esse senhor o mandara chamar um dia á sua camara, sendo Dona Ignez presente, e que lhe dissera que a queria receber por sua mulher, e que logo, sem mais detença, o dito senhor puzera a mão nas suas d'elle, e isso mesmo a dita Dona Ignez, e que os recebera ambos por palavras de presente, como manda a santa igreja de Roma, e que os vira viver de commum até á morte d'essa Dona Ignez; e que isto poderia haver sete annos, pouco mais ou menos, mas que não se accordava do dia e mez em que fôra: e d'este feito não disse mais.  

Semelhavelmente foi perguntado Estevam Lobato, e disse que sendo el-rei infante e pousando em Bragança, que o mandara chamar á sua camara, e que lhe dissera que o mandara chamar porque sua vontade era de receber Dona Ignez, que presente estava, e que queria que fosse d'ello testemunha: e que o deão da Guarda, que já ahi estava, e outrem não, tomara o dito senhor por uma mão e ella por outra, e que então os recebera ambos por aquellas palavras que se costumam dizer em taes desposorios, e que os vira viver juntamente até ao tempo da morte d'ella; e que isto fôra em um primeiro dia de janeiro, podia haver sete annos, pouco mais ou menos.  

Tanto que estes foram perguntados e escripto seu dito, segundo ouvistes, fizeram logo juntar, que para isto já estavam presentes, Dom Lourenço, bispo de Lisboa, e Dom Affonso, bispo do Porto, e Dom João, bispo de Vizeu, e Dom Affonso, prior de Santa Cruz d'esse logar, e todos os fidalgos antes nomeados, com outros muitos que não dizemos, e os vigarios, e clerezia, e muito outro povo assim ecclesiastico como secular, que se para isto alli juntou. E feito silencio, a bem escutar, começou a dizer o conde Dom João Affonso:  

Amigos, deveis de saber que el-rei, nosso senhor que ora é, sendo infante, passa já de uns sete annos, estando então na villa de Bragança, sendo el-rei Dom Affonso, seu padre, vivo, recebeu por sua mulher lidima, por palavras de presente, Dona Ignez de Castro, filha que foi de Dom Pedro Fernandez de Castro, e ella isso mesmo recebeu a elle, e sempre a o dito senhor teve depois por sua mulher, fazendo-se maridança um ao outro, qual deviam, até ao tempo da sua morte. E porquanto estes recebimentos e casamento não foi exemplado a todos os do reino em vida do dito rei Dom Affonso, por medo e receio que seu filho d'elle havia, casando de tal guisa sem seu mandado e consentimento, porém agora el-rei, nosso senhor, por desencarregar sua alma e dizer verdade e não ser duvida a alguns que d'este casamento parte não sabiam se fôra assim ou não, fez juramento sobre os santos Evangelhos e deu de si fé e testemunho de verdade, que foi d'esta guisa que o eu digo, segundo vereis por um instrumento que d'isto tem feito Gonçalo Peres, tabellião, que aqui está; e mais vereis o dito do bispo da Guarda e de Estevam Lobato, que aqui estão, que foram presentes no dito casamento.  

Então lhe fez cumpridamente lêr todo o testemunho que ambos sobre ello deram.  

«E porque vontade d'el-rei, nosso senhor (disse elle) é que isto não seja mais encoberto, antes lhe praz que o saibam todos, por ser arredada grande duvida que sobre ello adiante poderia recrescer, porém me mandou que vos notificasse tudo isto, por tirar suspeita de vossos corações, e ser a todos claramente sabido. Mas porque não embargando tudo o que eu disse, e vos ora aqui foi lido e declarado, alguns poderão dizer que tudo isto não bastava se ahi dispensação não houve, por o grão divido que entre elles havia, sendo ella sobrinha d'el-rei nosso senhor, filha de seu primo coirmão, porém me mandou que vos certificasse de tudo, e vos mostrasse esta bulla que houve em sendo infante, em que o papa dispensou com elle, que pudesse casar com toda mulher, posto que lhe chegada fosse em parentesco, tanto e mais como Dona Ignez era a elle».  

Então publicaram perante todos uma letra do papa João XXII, que dizia em esta guisa:  

«João, bispo, servo dos servos de Deus. Ao muito amado, em Christo, filho infante Dom Pedro, primogenito do muito amado, em Christo nosso filho mui claro rei de Portugal e do Algarve Affonso, saude e apostolical benção. Se o rigor dos santos canones põe defeza e interdicto sobre a copula do matrimonial ajuntamento, querendo que se não faça entre aquelles que por algum divido de parentesco são conjunctos, por guarda da publica honestidade; aquelle porém que é ás vezes bispo de Roma, de poderio absoluto, em lugar de Deus dispensando, pode por especial graça pôr temperança sobre tal rigor. E porém nós, demovido ácerca de tua pessoa com especial favor, por algumas razões, de que ao diante esperamos paz e folgança n'esses reinos, querendo condescender a tuas preces e de el-rei Dom Affonso, teu padre, que por suas letras por ti a nós humildosamente supplicou, para casares com qualquer nobre mulher, devota á santa igreja de Roma, ainda que por linha transversa de uma parte no segundo grau e d'outra no terceiro, sejaes dividos e parentes, e isso mesmo ainda, que por razão de outras duas linhas collateraes, seja embargo de parentesco ou cunhadia entre vós no quarto grau, licitamente por matrimonio vos podeis ajuntar: nós, por apostolica auctoridade, de especial graça, tudo tiramos e removemos, dispensando comtigo e com aquella com que assim casares, de nosso apostolico poderio, que a geração que de vós ambos nascer ser legitima sem outro impedimento. Porém, nenhum homem seja ousado presumpçosamente contra esta nossa dispensasão ir, de outra guisa seja certo na ira e sanha do todo poderoso Deus, e dos bem aventurados São Pedro e São Paulo, apostolos, incorrer. D'ante em Avinhão, duodecimo Kalendas de março, do nosso pontificado anno nono.»  

Acabada de lêr assim esta letra, disse então o conde, presente elles todos, que elle por guarda e em nome dos infantes Dom João, e Dom Diniz, e Dona Beatriz, filhos que eram dos ditos senhores, queria tomar sendos instrumentos para cada um d'elles, e requereu ao tabellião que assim lh'os desse.   Partiram-se então todos para as pousadas, não minguando a cada um razões, que fossem entre si falando sobre esta historia.