JOÃO SARMENTO PIMENTEL
Foto do Arquivo Científico Tropical:
http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD21774
João Maria Ferreira Sarmento Pimentel (Eixes, Mirandela, 14 de Dezembro de 1888 — São Paulo, 13 de Outubro de 1987) foi um oficial de Cavalaria do Exército Português, escritor e político que se distinguiu na luta contra a Monarquia e governos ditatoriais. Como aluno da Escola do Exército participou nos movimentos da Rotunda, ao lado de Machado Santos, nos dias 3 a 5 de Outubro de 1910, de que resultou a implantação da República Portuguesa. Participou nas campanhas do Sul de Angola, esteve na Flandres, liderou revoltas várias, a última das quais em 1927. Exilou-se no Brasil, onde morreu, tendo entretanto vindo a Portugal para colaborar numa revolta falhada em 1931 e depois, no 25 de Abril, para festejar.
PROJETO «JOÃO SARMENTO PIMENTEL»
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Naulila, por Sarmento Pimentel
[…] E o Roçadas, supondo que ia defrontar-se com indígenas amotinados, encontrou pela frente uma organização militar perfeita e aguerrida de tropas alemãs  da Damaralândia. E foi derrotado. Os alemães aproveitaram a animosidade que existia contra os portugueses, atravessaram o Cunene e chacinaram as guarnições portuguesas. Internaram-se, mesmo, até Naulila, onde a resistência das nossas tropas foi heróica, e tomaram a posição. […]

Eu oferecera-me como voluntário para tomar parte na expedição que ia partir para Angola. A viagem do «Cabo Verde», que transportou o 3º esquadrão de Cavalaria 9, de que eu fazia parte como alferes, as muares de uma companhia de metralhadoras e as montadas dos oficiais do Estado-Maior da expedição, foi uma verdadeira tragédia. Não havia um médico para os homens, embora houvesse um veterinário para os animais. E, depois duma viagem tormentosa, chegou o contingente a Moçâmedes onde assinalaram o desembarque peripécias de toda a ordem. E a coluna rumou para o Sul, já sob o comando do general Pereira de Eça.

A guerra em África não era nenhuma brincadeira. O terreno é difícil. As distâncias imensas. E os recursos de que dispúnhamos eram insuficientes. Basta dizer-lhe que, em determinada altura, fui encarregado de ir a Ruacaná para fazer um reconhecimento até onde fosse possível.  E deram-me quinze dias para ir e voltar. Em quinze dias ainda lá não tinha chegado – através da selva, que era preciso vencer, que era o pior inimigo.  Quando o Roçadas chegou a Angola, viu este triste espectáculo: as guarnições portuguesas, brancas e pretas, tinham sido chacinadas. Não escapou um homem. Num recontro com os alemães da Damaralândia, as suas forças foram derrotadas.

[Pereira de Eça, armamento moderno, alemães…]

A campanha durou ano e meio. Durante esse tempo, nunca me deitei numa cama. Dormi sempre no chão ou numa tarimba, uma destas camas de campanha que nos deixam os ossos num feixe. 

P. – Foi em meados de Agosto de 1915 que a coluna Pereira de Eça iniciou a marcha para o Sul e as operações completaram-se em Fevereiro de 1917 com a entrada das tropas portuguesas em N’Giva, quartel-general do soba Mandumbe e capital do Cuanhama. Assistiu ao combate da Môngoa? 

R. – Não assisti. Antes dessa marcha para o Sul, o general Pereira de Eça mandou fazer dois reconhecimentos: um comandado pelo tenente Sebastião Roby, descendo pelo vale do rio Cunene. E outro pelo comandante dos boers, que era eu, a corta-mato direito a Ruacaná e a Naulila, que eram postos ocupados pelos alemães. Do sul de Angola não havia nenhum mapa e, naquele tempo, o que era pior, não havia uma ponte, uma estrada, uma via de penetração no mato. Era tudo selva virgem. Infestada de leões e de caça grossa. Os boers, na sua linguagem pitoresca, chamavam-lhe o kaucfelt. E eu fui nessa missão de reconhecimento. O Roby caiu numa emboscada e foi morto – o segundo Roby que morreu em África, irmão do outro que também lá ficou. Eu não apareci no prazo estipulado porque o Estado Maior não tinha feito bem os cálculos. Decorrido o tempo que estava previsto, ainda esperaram mais um mês. Apareceu, então, no Quartel-General um preto que fazia parte do contingente a dizer: «Morreram todos. Só escapei eu.» E deram-me como desaparecido, receando que tivesse ficado prisioneiro dos alemães. Foi alertada a Cruz Vermelha, que informou, depois das investigações a que procedeu, que não havia nenhum prisioneiro com o meu nome. Afinal, eu tinha cumprido a missão que me fora determinada: verificar a ocupação dos postos de Ruacaná, de Dongoena, de Naulila e de Roçadas, posições que tínhamos abandonado e que haviam sido ocupadas pelos alemães.

Cumprida a minha missão, meti-me a caminho, de regresso ao Quartel-General. Eu levava um carro de abastecimento e cheguei à conclusão de que me embaraçava a marcha. Resolvi mandar o carro para Otchinjou e sustentar-me, eu e os meus homens, dos recursos naturais: caça, pesca, frutas do mato e duma certa cultura de mandioca que os pretos faziam. E conseguiam sobreviver. Cada um dos meus homens levava uma porção de sal, que era uma coisa preciosa, e algum arroz, embora em pequena quantidade, para não sobrecarregar os animais. Nos cantis levávamos reserva de água, que em África é difícil de obter. As distâncias a percorrer eram enormes e só raramente se encontrava água. Obtidas todas as informações de que necessitava, pus-me a caminho, de volta. Como tinha pressa de chegar, disse ao sargento: «Tu ficas como superintendente e eu vou adiante para ganhar tempo.» E, como o meu cavalo era mais veloz, aí vou eu pelo sertão fora sem mais companhia. Eles só chegaram ao acampamento dois dias depois de mim. Calcula o estado em que eu vinha: roto, sujo (não havia água para beber, quanto mais para me lavar), com a barba crescida, num mísero estado. Quando me viram assim, calcularam que a missão tinha redundado em desastre e que eu conseguira escapar. E perguntaram-me pelo resto da tropa. «O resto da tropa vem aí.» Julgaram que vir ali era daí a dez minutos ou uma hora. Passou um dia e a tropa sem aparecer. «O Pimentel não conta a verdade – pensavam. – Esconde qualquer coisa.» Mas os pretos têm processos de comunicar rapidamente, e, um dia antes de chegar o resto do destacamento, soube-se, pelo telégrafo indígena [talking drum], que os boers vinham, realmente, ali. Foi uma festa quando eles chegaram. Uma festa que me comoveu, que me enterneceu.

Apresentei-me ao chefe do Estado-Maior, o major Ortigão Peres, que era um homem bom. «O general recebe-o amanhã» - disse-me. Mas eu não tinha indumentária para substituir os farrapos que me cobriam o corpo.  Um deu-me uma camisola, outro umas calças, outro um jaleco. E assim me apresentei ao general Pereira de Eça, encadernado de novo. Devo dizer que fiquei desapontado pela frieza com que o general me recebeu. Comecei a expor o resultado da minha missão com aquela loquacidade que me caracteriza e, a certa altura, Pereira de Eça cortou-me a palavra: «Deixa-te de discursos e diz só o que interessa.» Contei isto aos camaradas dizendo que não valia a pena fazer sacrifícios, passar fome e sede, arriscar o pelo, para chegarmos ao fim e termos aquela recompensa. Eu vinha magro como um palito. O médico, o dr. Vasconcelos e Sá, que era muito meu amigo e um excelente camarada, observou-me e submeteu-me a um tratamento rigoroso para me restabelecer. No dia seguinte foi publicada a ordem de campanha onde vinha a notícia da minha apresentação e a proposta do general Pereira de Eça para ser condecorado com a medalha de Valor Militar.

In: Diálogos com Norberto Lopes, pp.: 87-92 

 
Mapa da missão «Naulila"
 
 
In: Alberto de Almeida Teixeira, vide Bibiografia
 
 
 
 

Diretório aberto a 19 de dezembro de 2014