NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismo XLVIII
 

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo quarto lugar as instâncias de luta, 244 a que também costumamos chamar de instâncias de predomínio. 245 Indicam-nos o predomínio ou a inferioridade entre as virtudes, ou seja, qual entre elas é mais forte e prevalece, e qual é mais fraca e sucumbe. Os movimentos e os esforços dos corpos, tanto quanto os próprios corpos, também se compõem e decompõem-se e complicam-se. Em primeiro lugar, enumeraremos e definiremos as principais espécies de movimentos e de virtudes ativos, para tornar mais clara a comparação do seu poder e, com isso, a descrição das instâncias de luta e de predomínio.

O primeiro é o movimento de resistência 246da matéria, existente em toda parte, em que a matéria não quer ser inteiramente anulada, de tal modo que não há incêndio, pressão, qualquer espécie de violência, nem passagem ou duração de tempo que possam reduzir qualquer coisa a nada; por menor que seja a parte da matéria, nada há que a impeça de ser algo, de ocupar algum lugar; e qualquer que seja a dificuldade em que se encontre, acabará se libertando, ou mudando de forma ou de lugar, ou permanecendo como é ou está, não havendo outra possibilidade; mas nunca chegando a não ser nada ou não estar em parte alguma. A Escola (que na maior parte dos casos, designa e define as coisas pelos seus efeitos ou desvios e não pelas suas causas íntimas), para esse movimento, recorre ao axioma de que “dois corpos não podem estar no mesmo lugar”, ou designa esse movimento como “a impenetrabilidade das dimensões”. Não encon­tramos exemplo adequado para esse movimento; mas é inerente a todo corpo.

O segundo movimento é o que chamamos de conexão, pelo qual os corpos não suportam ser desagregados, e aspiram a permanecer reunidos e em contato direto. É o movimento que a Escola designa como “horror ao vazio” e graças ao qual a água é atraída por sucção ou por bombas e a carne por ventosas. Em virtude de tal movimento, a água contida em um vaso furado no fundo nele permanece até que faça entrar ar por uma abertura superior, e inúmeras coisas do mesmo gênero.

O terceiro movimento é o que chamamos de liberdade, pelo qual os corpos se esforçam por se libertar da pressão ou tensão que não seja natural e retornar à dimensão que lhes convém na natureza. Há, também deste movimento, inumeráveis exemplos: a água se livra de uma pressão, escorrendo; o ar, pelo vôo; a água, formando ondas; o ar, ondulando no soprar do vento; a mola dos relógios, esticando-se. Exemplo interessante do ar comprimido nos oferecem os pequenos canhões que as crianças fazem para brinquedos. Tomam um pedaço de álamo ou madeira semelhante, fazem um furo no sentido do comprimento e, em cada extremidade, colocam à força um tampo de raiz polposa; em seguida, com a ajuda de um êmbolo, empurram uma das tampas em direção à outra; a uma certa altura, antes de ser toca­da, a que permanece na extremidade oposta volta-se, fazendo ruído. Em relação ao modo de se livrar da tensão, considere-se o que acon­tece com o ar que permanece no ovo de vidro, depois de forte sucção; considerem-se também as cordas, o couro, o pano e outros tecidos, que voltam ao estado inicial se a tensão não for muito longa, etc. A Escola indica esse movimento como produzido pela forma do elemen­to; e isso de forma muito imprópria, pois esse movimento não se rela­ciona unicamente ao ar, à água, à chama, mas é comum a todos os corpos, seja qual for a sua consistência, tal como a madeira, o ferro, o chumbo, o pano, a membrana, etc., nos quais cada corpo apresenta o seu limite particular de dimensão, além do qual vão muito pouco. Mas, como o movimento de liberdade é muito freqüente, e sendo de infinitos usos, é oportuno distingui-lo perfeitamente dos demais. Pois há quem o confunda, lamentavelmente, com os movimentos antes des­critos de resistência e conexão; ou seja, o de evasão da pressão com o movimento de resistência e o de evasão de tensão com o movimento de correção; como se os corpos comprimidos cedessem ou se esticas­sem para que não se produzisse penetração de dimensões, e os corpos distendidos se encolhessem para evitar o vazio. Mas se o ar compri­mido tivesse que se contrair até a densidade da água, ou a madeira até a densidade da pedra, não seria necessária a penetração de dimen­sões; contudo, a compressão nesses corpos chegaria a ser muito maior que a que suportam, por qualquer meio, tais como são. Igualmente, se a água pudesse dilatar-se até chegar ao estado de rarefação que tem o ar, ou a pedra até o da madeira, não haveria necessidade do vazio; e, nesse caso, a extensão que neles teria lugar seria muito maior que a que alcançam, por quaisquer meios, tais como são. Dessa forma, não se chega à questão da penetração de dimensões ou à do vazio, a não ser nos limites de condensação e rarefação; contudo, tais movimentos se encontram muito mais aquém desses limites e nada mais representam que desejos dos corpos de se conservarem em sua consistência ou, diriam os escolásticos, em suas formas, e dessa maneira não se separarem subitamente delas e sem que sejam alterados com modos suaves e com seu consentimento. Contudo, muito mais necessário, pelas conseqüências em que importa, é advertir os homens de que o movimento violento (por nós chamado mecânico, e por Demócrito, que a respeito de movimentos, deve ser ainda colocado entre os filósofos medíocres, de movimento de golpe) outro não é que o movimento de liberdade, ou seja, o movimento da compressão à distensão. Na verdade, a nem toda ação ou desvio no ar corresponde uma mudança de lugar, se as partes do corpo não forem força­das e comprimidas um pouco além do suportável por sua natureza. Então, as partes, comunicando reciprocamente o impulso, provocam o movimento, não apenas linear do corpo, mas também ao mesmo tempo o rotatório, procurando, dessa forma, libertar as partes da pressão, ou melhor suportá-la, pela sua melhor distribuição. É o suficiente para esse movimento.

O quarto movimento é o que demos o nome de movimento de matéria, 247 que, de certo modo, é o oposto ao de liberdade, de que falamos. Pelo movimento de liberdade, os corpos tendem com todas as suas forças a retomar a sua consistência original, evitando, fugindo, mostrando repugnância para com qualquer nova dimensão ou nova esfera, ou nova expansão, ou contração (significando todas essas palavras a mesma coisa). Pelo movimento de matéria, ao contrário, os corpos tendem a passar a uma nova esfera ou dimensão, e o fazem de maneira voluntária e facilmente, e às vezes até com ímpeto furioso, como acontece com a pólvora. Instrumentos desse movimento certamente não os únicos, mas os mais potentes, ou pelo menos os mais freqüentes, são o quente, o frio. Por exemplo, o ar, dilatado por qualquer tensão ou aspiração (como nos ovos de vidro), tem uma notável tendência a retomar o anterior estado de densidade. Aquecido, tende, ao contrário, a dilatar-se e aspira a passar para uma nova esfera e a ela passa com facilidade, como para uma nova forma (como se diz), e depois de alcançar certo grau de dilatação não se preocupa com o retorno, a não ser quando convidado pelo frio; não se trata porém, de retorno, mas de uma nova transformação. Da mesma maneira, a água comprimida resiste e tende a retomar a dimensão anterior, procurando dilatar-se; mas sob a ação do frio interno e continuo transforma-se em gelo espontaneamente e voluntariamente se condensa; se prosseguir o frio intenso, sem qualquer intromissão de calor (como acontece nas cavernas profundas), transforma-se em cristal, não voltando ao estado anterior.

O quinto movimento é o da continuidade, que corresponde, não à simples e fundamental continuidade entre um corpo e outro (nesse caso, trata-se de movimento de conexão), mas a continuidade interna de um corpo dado. Com efeito, é coisa certa que todos os corpos se desgostam com toda solução de continuidade; alguns mais, outros menos, mas de qualquer forma todos. Nos corpos duros (como o aço, o vidro, etc.) a reação à interrupção dos seus corpos é mais forte; e, mesmo, no líquido onde essa resistência parece cessar ou ser muito fraca, ela não deixa de existir, ainda que em ínfimo grau; fato contado, que é demonstrado por inúmeros experimentos, basta considerarem-se as bolas, a esfericidade das gotas e os fios delgados que caem das goteiras, a consistência dos corpos gelatinosos e outros semelhantes. Mas tal tendência é mais evidente sobretudo quando se procura introduzir a descontinuidade em um corpo já reduzido a partes extremamente pequenas. E o que acontece nos morteiros, depois de um certo grau de trituração, e nos pilões; também a água não penetra nas frinchas muito pequenas; o próprio ar, apesar da sutilidade de sua natureza, não penetra os poros de um vaso um pouco mais sólido, a não ser depois de muito tempo.

O sexto movimento é o que chamamos de movimento para lucro ou de indigência. Por seu intermédio, os corpos, quando colocados no meio de outros de natureza diversa ou até mesmo hostil, encontram o meio de se afastarem e de se reunirem a outros mais afins (mesmo que essa afinidade não seja grande) e a estes se juntam imediatamente e os antepõem como preferíveis; dai o lucro indicado no nome do movimento, lucro esse buscado como uma necessidade dos corpos. Por exemplo, o ouro ou qualquer outro metal não gosta de ser envolvido ou cercado pelo ar, quando na forma de lâminas; por isso, quando encontra um corpo duro e denso (um dedo, um pedaço de papel ou algum outro), a ele adere subitamente, não se separando facilmente. Mesmo o papel, o pano e todo corpo análogo não se adaptam bem ao ar que os penetra e se insinua pelos seus poros; por isso, absorvem com facilidade a água ou outro liquido, com o fito de se distanciarem do ar. O açúcar ou uma esponja submergida em água ou em vinho, mas com uma parte de fora, atraem gradualmente a água ou o vinho, embebendo-se completamente.

Daí deduzimos a excelente norma para abertura e dissolução dos corpos. Pois, deixando-se à parte os corrosivos e as águas-fortes, que abrem a estrada pela força, se se encontra um corpo proporcionado com algum sólido e com mais afinidade e amizade que o com que está misturado por necessidade, aquele se abre, relaxa-se, recebe o primeiro corpo e exclui e afasta o outro. Esse movimento de ganho não opera unicamente por contato direto; pois a força elétrica (sobre a qual Gilbert e seus seguidores tanto fantasiaram) não passa de uma tendência provocada por ligeira fricção, pela qual um corpo, não suportando mais o ar circundante, prefere outro corpo tangível que esteja ao seu alcance.

O sétimo movimento é o que chamamos de movimento de congregação maior, graças à qual os corpos se movem no sentido das massas de seus congêneres, sendo os mais pesados para o centro da terra e os mais leves para o céu. Os Escolásticos, de maneira superficial, indicaram-no como “movimento natural”, por não terem encontrado nada de externo e visível que pudesse provocá-lo, e o consideravam inato e inerente às próprias coisas, talvez pelo fato de ser perpétuo, o que não seria de se espantar. Com efeito, o céu e a terra estão sempre presentes enquanto que as causas e as origens da maior parte dos outros movimentos algumas vezes estão presentes e outras estão ausentes. Por isso, porque não cessa nunca e os outros cessam, os Escolásticos o consideravam como o único movimento próprio e perpétuo e os outros como movimentos exteriores e acidentais. Mas, na verdade, trata-se de um movimento débil e pouco ativo, e, não sendo o caso de corpos de grande volume, cede e se submete aos ou­tros movimentos enquanto eles se desenvolvem. Apesar de os homens se terem ocupado desse movimento a ponto de deixarem de lado os outros, pouco conhecem a seu respeito, incorrendo em muitos erros a seu respeito.

O oitavo movimento é o que chamamos de congregação menor, que faz com que, em todos os corpos, as partes homogêneas se separem das heterogêneas, juntando-se umas às outras; por ele, os corpos inteiros se enlaçam e conjugam-se, conforme a sua substância e às vezes atraem-se de uma certa distância, aproximando-se uns dos outros. O leite, colocado em repouso, faz subir o creme, depois de certo tempo a borra e o tártaro precipitam-se no vinho. Tais efeitos não são só produzidos pela gravidade ou pela leveza (graças às quais alguns corpos vão para baixo e outros para o alto), mas sobretudo pelo desejo dos corpos homogêneos de se unirem e associarem-se. Esse movimento difere do movimento de indigência de duas maneiras: em primeiro lugar, porque naquele movimento a tendência do corpo é fugir de qualquer natureza maligna e inimiga, enquanto que, no que nos ocupa (quando não há obstáculos ou vínculos), as partes se unem por amizade, sem uma natureza estranha para provocar o combate; em segundo lugar, porque a conjunção aqui é mais estreita, cumprindo-se com maior eleição. No primeiro caso, corpos embora não muito afins compõem-se para fugirem de um corpo hostil; enquanto que no caso presente as substâncias se unem levadas por uma estreitíssima semelhança e constituem praticamente um todo. Esse movimento é encontrado em quase todos os corpos compostos, mas não se mostra facilmente, porque os corpos estão ligados e tomados por outras tendências e por vínculos que perturbam a união.

Particularmente três causas podem embaraçar esse movimento: o torpor dos corpos, o freio do corpo predominante e o movimento externo. Quanto à primeira causa, é sabido que os corpos tangíveis têm uma preguiça, maior ou menor, e uma aversão à mudança de lugar; assim é que só se movem se impelidos, caso contrário preferem continuar como estão, mesmo que seja para mudar para melhor. Podem ser sacudidos desse torpor por uma tríplice ajuda: pelo calor, pela atração de qualquer corpo semelhante ou por um impulso enér­gico e vigoroso. O calor é comumente definido como “o que separa os heterogêneos e une os homogêneos”; mas tal definição dos peripatéticos é, com razão, ridicularizada por Gilbert, que a declara semelhante à de alguém que procurasse definir o homem “aquele que semeia o trigo e planta os vinhos”, que é uma definição pelos efeitos e pelos particulares. Mas a definição é mais errada no fato de que os efeitos, quaisquer que sejam, não derivam da natureza do calor, mas por acidente, ou seja, dos desejos das partes homogêneas de se unirem; enquanto que o calor nada mais faz que ajudar o corpo a sacudir o torpor que antes oferecia resistência ao desejo. O mesmo acontece com o frio, como mais adiante exporemos. A ajuda que pode oferecer a virtude de um corpo afim manifesta-se de maneira admirável no magneto armado, que produz no ferro a virtude de atrair o ferro por semelhança de substância, depois de sacudido o torpor do ferro. A ajuda proveniente do movimento se observa nas flechas de madeira, com ponta de madeira, que penetram melhor certas madeiras do que se tivessem ponta de ferro, o que acontece em vista da semelhança de substância, depois de sacudido o torpor da madeira, pelo movimento veloz das flechas. Já foi feita menção desses experimentos no aforismo das instâncias clandestinas.

A dificultação do movimento de congregação menor, que advém do corpo predominante, observa-se na decomposição do sangue e da urina pelo frio. Pois enquanto esses corpos estiverem cheios de espírito ativo que os governa e mantém coesas suas partes, essas mesmas partes não se associam por coerção. Mas tão logo se tenha aquele espírito evaporado ou tenha sido abafado pelo frio, então as partes liberadas do freio se associam, seguindo o seu desejo natural. Assim, acontece que todos os corpos que contêm um espírito acre (como os sais e coisas semelhantes) perduram sem se dissolverem, em razão do freio permanente e durável representado pelo espírito dominante e imperioso.

A dificultação do movimento de congregação menor que ocorre por causa do movimento externo observa-se sobretudo nos corpos nos quais a agitação impede que apodreçam. De fato, toda putrefação baseia-se na agregação dos homogêneos, pela qual pouco a pouco ocorre a corrupção da primeira forma a produção da nova (conforme a linguagem comum). Por isso, a putrefação que abre caminho à produção de uma nova forma é precedida da dissolução da forma anterior, ou seja, da reunião das partes homogêneas. Não havendo qualquer obstáculo ocorre apenas a dissolução da forma anterior; mas, havendo qualquer coisa que se oponha, advém a putrefação, que é a origem de nova geração. Se, depois, acontecer uma forte agitação proveniente de um movimento externo (que é o nosso assunto), então o movimento de agregação é perturbado e cessa (pois se trata de um movimento leve e delicado que exige a quietude externa), como se pode observar através de inúmeros exemplos. Por exemplo, a contínua e cotidiana agitação e a correnteza da água impedem a sua putrefação; os ventos impedem a concentração de substâncias pestilentas no ar, do mesmo modo os grãos, quando revolvidos nos celeiros, me­lhor se conservam, enfim, todas as coisas, quando agitadas do exte­rior, não se putrefazem interiormente com facilidade.

Também não pode ser omitida a união das partes dos corpos que constitui a principal causa do seu endurecimento e dissecação. Pois, quando o espírito, ou a parte úmida transformada em espírito, é eva­porada de um corpo poroso (como a madeira, o osso, membranas e outras semelhantes). as partes mais grossas se contraem e encolhem-se mais fortemente; em seguida, advém o endurecimento e a desseca­ção, efeitos provocados, segundo entendemos, não por um movimento de conexão que tende a evitar o vazio, mas por este movimento de amizade e de união.

A união a distância é pouco freqüente e rara, mas, de qualquer maneira, é mais freqüente do que comumente se observa. Como exemplo, veja-se a bolha que rompe a outra; as medicinas que pela semelhança de substâncias extraem os humores; quando em diversos instrumentos uma corda move-se com outra; e outros semelhantes. Somos levados a crer que esse movimento também é encontrado no espírito dos animais, mas permanecendo completamente incógnito. E encontra-se, com certeza, no magneto e no ferro magnetizado. E, já que estamos falando de movimento magnético, é necessário distinguirem-se quatro espécies de virtudes ou operações que devem ser distinguidas, embora os homens, levados pela admiração e pela estupidez, confundam-nas. A primeira em virtude de atuação do magneto, pelo magneto, ou do ferro pelo magneto, ou do ferro pelo ferro magnetizado. A segunda é a sua propriedade de dirigir-se para o norte e para o sul, e também a sua inclinação. A terceira é a virtude magnética de atravessar o ouro, a pedra e qualquer corpo. A quarta é a virtude de magnetizar o ferro e o ferro outro ferro, sem comunicação de substância. Mas aqui só nos ocupamos da primeira dessas virtudes, ou seja, de atração. Igualmente notável é o movimento de atração existente entre o mercúrio e o ouro, e de tal modo forte que o ouro atrai o mercúrio, mesmo estando na forma de ungüento; e os operários que trabalham entre vapores de mercúrio costumam ter na boca um pedaço de ouro, para recolher as suas exalações, que de outra forma penetra­riam nos ossos e no crânio. E o pedaço de ouro em pouco tempo se torna branco. É o suficiente para o movimento de congregação menor.

O nono movimento é o magnético, do mesmo gênero que o de congregação menor, mas que age a grande distância e sobre grandes massas, e merece uma investigação particular, especialmente se não começa com o contato, como muitos outros movimentos, nem leva ao contato, como todos os movimentos de congregação, mas eleva e infla os corpos, não indo além. Pois se a lua eleva as águas ou faz com que os corpos úmidos inchem, ou o céu estrelado atrai os astros para o apogeu; ou o sol submete os astros Vênus e Mercúrio para que dele não se afastem além de uma determinada distancia; em vista disso, não se pode classificá-los corretamente como movimento de congregação maior ou menor, de vez que se trata de movimentos de congregação intermediários e imperfeitos, que formam uma espécie à parte.

O décimo movimento é o de fuga, contrário ao de congregação menor. Por ele os corpos se distanciam entre si por antipatia e mantêm-se separados de seus inimigos, recusando misturar-se com eles. É verdade que em certos casos pode parecer um movimento por acidente ou em conseqüência do movimento de congregação menor, porque também aqui as partes homogêneas só se conjugam depois de terem excluído e afastado as heterogêneas. Mas isso deve ser considerado em si mesmo e deve formar uma espécie distinta, pois em inúmeros casos a tendência para fuga supera a tendência para a união.

Esse movimento se manifesta especialmente nos excrementos dos animais e em qualquer objeto repugnante aos sentidos, em particular ao olfato e ao gosto, O olfato recusa tão decididamente qualquer tipo de fedor que por consenso provoca um movimento de repulsão na boca do estômago; o paladar e a garganta recusam tanto qualquer alimento amargo e áspero de sabor que provocam por consenso um tremor de toda a cabeça. Mas ainda em outras coisas é possível encontrar-se esse movimento. São observados em alguma antiperístase, como, por exemplo, na região média do ar, onde o frio parece efeito da expulsão da natureza do frio, da zona limítrofe com os cor­pos celestes, como os grandes calores, e as massas de lava candente que se encontram nas regiões subterrâneas, que parecem ser resultado das expulsões da natureza do quente, das entranhas da terra. O calor e o frio em pequenas quantidades se destroem mutuamente, mas, em grandes quantidades e, como exércitos regulares, ao final da refrega, ou se expulsam ou deslocam um ao outro. Fala-se que a canela e ou­tras substâncias aromáticas, colocadas nas latrinas e nos lugares fedorentos, conservam mais os seus aromas, pois estes se recusam a sair para não se misturarem com o fedor circundante. E certo que o mercúrio, que de outra forma, se uniria em um corpo compacto, e impedido pela gordura de porco, pela terebentina e outras substâncias semelhantes, isso devido à falta de consenso que guarda em relação a esses corpos, dos quais procura se afastar quando é por eles envolvi­do; de sorte que a tendência para a fuga dos corpos interpostos é mais forte que a tendência para a união de todas as partes em um todo homogêneo. E é a esse fenômeno que chamam de mortificação do mercúrio. Da mesma maneira, o fato de o óleo não se unir à água não depende do peso específico diverso das duas substâncias, mas do seu precário consenso; o que é provado pelo fato de que o espírito do vinho, mais leve que o óleo, une-se perfeitamente à água. Mas o movimento de fuga manifesta-se, sobretudo, no nitrato e em outros corpos crus, inimigos das chamas, como a pólvora, o mercúrio e o ouro. Mas a fuga do ferro, do outro pólo do magneto, não é, como muito bem lembra Gilbert, um movimento de fuga propriamente dito, mas conformidade e tendência a ocupar um lugar mais conveniente.

O décimo primeiro movimento é o movimento de assimilação ou de multiplicação de si mesmo ou ainda de geração simples. Deve-se entender por geração simples não a dos corpos inteiros que ocorre nas plantas e nos animais, mas aquela dos corpos similares. Por meio desse movimento, os corpos similares convertem em sua própria substância e natureza outros corpos afins, ou pelo menos bem dispostos e preparados. É o caso da chama, que se multiplica alimentando-se de exalações de matérias oleosas e engendra nova chama; do ar, que se multiplica pela água e pelos vapores aquosos e engendra novo ar; do espírito vegetal e animal, que, se alimentando das partes mais tênues, tanto aquosas quanto oleosas, engendra novo espírito; das partes sólidas, das plantas e dos animais, folhas, flores, carne, osso, etc., que assimilam o suco nutritivo e engendram substância reparadora continuamente. E ninguém tomaria o lugar de Paracelso em suas fantasias, pois, obcecado com suas destilações, pretendia que a nutrição só se realizava por separação e que no pão ou em qualquer outro alimento encontram-se olhos, varizes, cérebros, fígados, e no humus da terra, raízes, folhas e flores. Tal como o escultor tira de uma massa tosca de pedra ou de madeira, por eliminação e reparação do supérfluo, folhas, flores, olhos, varizes, mãos, pés, etc.; da mesma maneira, afirma Paracelso, o artífice interno (o que chama de Arqueu) extrai, por separação e eliminação dos alimentos, cada um dos membros e partes. Mas, deixando de lado tais futilidades, acreditamos como certo que as diversas partes, tanto as orgânicas como as similares, tanto nos vegetais quanto nos animais, primeiramente atraem os sucos dos alimentos, escolhem os que são quase comuns a todos ou os que não são muito diversos, depois os assimilam convertendo-os na própria natureza. E tal assimilação ou geração simples não ocorre somente nos corpos animados, mas também nas coisas inanimadas, como se depreende do exemplo da chama e do ar. Assim, o espírito morto, 248 que se encontra em toda coisa tangível e animada, faz com que as partes mais duras sejam digeridas e transformadas em espírito, que logo depois se exala, daí resultando uma diminuição e uma dissecação de peso, como já foi assinalado. Também não pode ser desprezada a forma de assimilação que se costuma vulgarmente distinguir da nutrição; como é o caso do barro que se endurece entre duas pequenas pedras e transmuda-se essa matéria pétrea ou da crosta que se forma entre os dentes e se transforma em substância quase tão dura quanto eles, etc. Sustentamos a opinião de que em todos os corpos está latente a tendência à assimilação tanto quanto a tendência a união dos homogêneos; mas, mesmo esta tendência, como aquela, está vinculada, ainda que não da mesma maneira. E necessário que se investigue, com todo cuidado, como isso ocorre e como é possível remover o obstáculo, pois ajuda bastante ao revigoramento da velhice. 249 Por último, devemos observar que nos primeiros nove movimentos aqui tratados os corpos procuram unicamente a conservação de sua natureza, no décimo buscam a sua propagação.

O duodécimo é o movimento de excitação, que parece uma espécie de assimilação e por isso às vezes assim também o chamamos. Pois, à semelhança daquele, é capaz de se difundir, comunicar-se, transferir-se a outro e se multiplicar. E, apesar de o modo de operar e de a substância sobre a qual opera serem diversos, o efeito é o mesmo. Em relação ao modo de operar, de fato, a assimilação procede com autoridade e quase com império, obriga o alimento assimilado a transformar-se na substância que o assimilou; por seu turno, o movimento de excitação composta quase com arte e com circunspecção, furtivamente se insinuando, não obriga o alimento a transformar-se na substância que o excitou, O movimento de assimilação multiplica e transforma os corpos e as substâncias: por isso, a chama, o ar, o espírito, a carne, aumentam, O movimento de excitação, de sua parte, multiplica unicamente a virtude e transfere-a de um corpo a outro, com isso levando mais calor, mais magnetismo, mais podridão. Esse movimento é especialmente constatado no calor e no frio, de vez que o calor não se difunde no aquecimento em razão de um calor prece­dente, mas somente pela excitação das partes do corpo até aquele movimento que é a forma do calor, como se viu na primeira vindima da natureza do calor. É por isso que o calor se propaga muito mais dificilmente e mais tarde na pedra ou no metal que no ar, pela inapti­dão e lentidão desses corpos para com o movimento de excitação. Bem por isso, pode-se supor que nas entranhas da terra encontram-se matérias sobremodo incapazes de receber o calor, reduzidas certa­mente a tal grau de densidade que acabaram por perder o espírito, no qual o movimento de excitação, pelo menos, tem início. Do mesmo modo, o magneto dota o ferro de uma nova disposição das partes e infunde um movimento conforme ao seu, e isso sem perder nada da sua virtude. Do mesmo modo, o fermento do pão e o lêvedo da cerveja, o coalho do leite e alguns venenos excitam e introduzem um movimento sucessivo e continuado na farinha, na cerveja, no queijo e no corpo humano. E isso ocorre não tanto por sua virtude excitante mas sobretudo pela predisposição e pelo abandono do corpo excitado.

O movimento décimo terceiro é o da impressão, que também é uma espécie do movimento de assimilação e é o mais tênue dos movimentos difusivos. Constituímo-lo em uma espécie distinta em razão de uma notável diferença que guarda em relação aos dois primeiros. O movimento de assimilação simples transforma os corpos a tal ponto que, mesmo que se suprima o primeiro móvel, a operação continua. Da mesma maneira que a primeira inflamação da chama, ou a primeira conversão em ar, não tem qualquer efeito sobre a chama e sobre o ar, que vão surgindo sucessivamente, o movimento de excita­ção continua, mesmo depois da remoção do primeiro móvel, por um tempo considerável, como um corpo aquecido, que assim permanece, mesmo depois de cessada a causa do calor; como a virtude do ferro imantado, mesmo depois de eliminado o magneto; e a da massa da farinha, afastado o fermento. Ao contrário, o movimento de impressão é capaz de se difundir, de se transferir para outros corpos, mas permanece sempre ligado ao primeiro móvel e, com o cessar deste, também cessa. Por isso, deve produzir-se em um momento ou em um tempo muito breve. Foi disso que retiramos a razão de designar os dois movimentos de assimilação e de excitação por movimentos de geração de Júpiter, porque são duráveis; e, ao último, de movimento de geração de Saturno, porque logo que nasce é imediatamente devorado e absorvido. Esse movimento se torna manifesto em três casos: nos raios de luz, nas percussões dos sons, no magnetismo, pelo que se relaciona com a comunicação. De fato, removida a luz, imediatamente cessam as cores e as suas outras imagens; cessada a primeira percussão e a vibração do corpo que a produziu, imediatamente tam­bém cessa o som. E embora os sons se propaguem mesmo no vento, como por ondas através do espaço, é, contudo, necessário observar-se com mais cuidado o fato de que o som não dura tanto quanto a sua repercussão. Quando se tange um sino, o som parece prolongar-se pelo tempo da repercussão; mas é de todo falso que o som se tenha prolongado durante todo aquele tempo, como pode ser notado pelo ar, pois em seu ressoar o som não permanece idêntico em número, mas se renova. O que pode ser facilmente verificado detendo-se o movimento do corpo percutido. Pois se pararmos e determos as vibrações do sino, no mesmo instante pára o som e não ressoa mais. O mesmo acontece com os instrumentos de corda, se depois do primeiro acorde tocar-se a corda ou com o dedo, como na lira, ou com o arco, como no violino: cessa imediatamente o som, O mesmo ocorre se se afasta o magneto: o ferro cai. A lua, todavia, não pode ser separada do mar, nem a terra de um corpo pesado, e, por isso, não se pode fazer com eles qualquer experimento; mas o princípio permanece o mesmo.

O décimo quarto movimento é o de configuração ou de posição, graças ao qual os corpos parecem buscar não uniões ou separações mas uma determinada posição ou colocação e uma configuração particular, comum a outros. Esse movimento é bastante abstruso, e tem sido mal estudado. Às vezes parece sem causa, embora, no nosso entender, a causa exista. Assim, se se perguntasse a razão pela qual o céu gira de oriente a ocidente e não do ocidente para o oriente; ou por que gira ao redor dos pólos, que estão perto da Ursa Maior e não em volta de Orion ou de alguma outra constelação, tais questões parecem mal colocadas, por se referirem a fatos que devem ser investigados sobretudo pela experiência, da mesma maneira que outros fatos positivos. Mas não se pode negar a existência na natureza de fenômenos últimos e sem causa, mas não parece que o que tratamos seja desse gênero. Entendemos que tais fatos procedem de uma certa harmonia ou consenso universal, que ainda nos escapa à observação. De fato, mesmo supondo o movimento da terra do ocidente para o oriente como certo, permanecem intactas as mesmas questões. Se ela se move em torno de certos pólos, por que esses pólos devem encontrar-se onde estão e não em outro lugar? Também o movimento, a direção e a declinação do magneto relacionam-se com o movimento de posição. Nos corpos naturais e nos corpos artificiais, especialmente nos sóli­dos, não-fluidos, encontra-se uma certa colocação harmônica de suas partes, e (por assim dizer) certos pêlos e fibras que estão a exigir um estudo mais profundo, pois sem o seu conhecimento não é possível de maneira eficaz manejar e controlar esses corpos. Mas a circulação dos líquidos que, comprimidos, antes de se libertarem, elevam-se por igual para melhor suportarem o peso da compressão, relacionamo-la ao movimento de liberdade.

O décimo quinto movimento é o de transição, ou movimento conforme a passagem, pelo qual as virtudes dos corpos são mais ou menos sofreadas ou solicitadas pelo próprio meio em que agem, segundo a natureza dos corpos e das virtudes operantes, e também do meio. Com efeito, é bem diferente o meio que convém à luz, ao som, ao calor e ao frio, às virtudes magnéticas e outras em relação às ou­tras virtudes.

O décimo sexto movimento é o que chamamos de régio ou político, graças ao qual, em um corpo, as partes predominantes e imperantes subjugam, domam, dirigem e refreiam as demais, obrigam-nas a se unirem, a separarem-se, a pararem, a moverem-se e colocarem-se não segundo o arbítrio de cada uma mas segundo a ordem e o bem-estar da imperante. Assim é que há quase um governo e um domínio exercido pela parte dominante sobre as que estão submetidas. Esse movimento se manifesta sobretudo no espírito dos animais, movimento que, enquanto dura, regula os movimentos das outras partes. E encontrado também em outros corpos, mas em grau inferior; como no sangue e na urina, que não se dissolvem antes que o espírito que neles se encontra e penetra não tenha sido retirado ou sufocado. E não se trata de um movimento próprio apenas dos espíritos, embora em muitos corpos o espírito domine pela sua celeridade e penetração. Nos corpos mais densos, incapazes de um espírito ativo e móvel (como o do mercúrio e o do vitríolo), dominam, por seu turno, as partes mais espessas; de modo que se não se encontra um caminho para sacudir, por meio de alguma arte, esse jugo servil, nada se pode esperar a res­peito de qualquer nova transformação desses corpos. Toda essa enumeração e classificação de movimentos não tem outro fito que o de induzir a uma investigação mais exata de suas forças predominantes, por meio da instância de luta. Mas não se pense que nos tenhamos esquecido do nosso assunto, por não termos feito menção das forças predominantes entre os próprios movimentos. Mas, ao falarmos deste movimento régio, não tratamos do predomínio nos movimentos e nas virtudes, mas da força predominante nas partes dos corpos. Esta última espécie de predomínio é a que constitui o movi­mento particular de que falamos.

O décimo sétimo é o movimento espontâneo de rotação, graças ao qual os corpos que são capazes de movimento e são oportunamente colocados no espaço gozam de sua própria condição, tendendo para si mesmos e não para os outros corpos, e procuram enlaçar-se. Assim, os corpos se comportam diversamente, ou movem-se sem termo, ou estão em absoluto repouso, ou tendem a um termo, onde, segundo a sua natureza, ou estão em repouso ou começam a rodar. Os que estão bem situados movem-se em linha reta, que é a mais curta, para se juntarem aos seus semelhantes. Nesse movimento de rotação há nove diferenças, a saber: a primeira, em relação ao centro em torno do qual esses corpos se movem; a segunda, em relação aos pólos que sustentam a rotação; a terceira, em relação à circunfe­rência, conforme a distância do centro; a quarta, em relação ao grau de aceleração maior ou menor; a quinta, em relação à direção do movimento, se de oriente para ocidente ou se de ocidente para oriente; a sexta, em relação ao desvio do círculo perfeito, considerando a maior ou menor distância do centro da aspiral; a sétima, em relação ao desvio do círculo perfeito, considerando a maior ou menor distância dos pólos da espiral; a oitava, em relação à maior ou menor dis­tância das espirais entre si; a nona e última, em relação ao desvio dos pólos, se são móveis; mas esta última não entra propriamente na rota­ção se não ocorre ela própria circularmente. O movimento de rotação, conforme a crendice comum e inventada, é atribuído como próprio dos corpos celestes. Mas há a propósito uma grave controvérsia, pois alguns autores antigos e modernos atribuíram a rotação à terra. Mais razoável seria verificar (se o assunto não está fora de discussão) se esse movimento, na hipótese de a terra estar em repouso, só ocorre nos céus, ou também no ar, na água, por comunicação dos céus. Quanto ao movimento de rotação nos projéteis, como nos dardos, nas flechas, nas balas dos mosquetes e coisas semelhantes, faz parte inteiramente do movimento de liberdade.

O décimo oitavo movimento é o da trepidação, no qual (da maneira como é entendido pelos astrônomos) depositamos muita fé. Mas se se estuda com seriedade todos os aspectos dos apetites dos corpos naturais, este movimento é encontrado por toda parte, daí merecer uma espécie distinta. Trata-se de um movimento de eterna escravidão, que ocorre quando os corpos, não bem situados, segundo a sua natureza, mas ainda não completamente deslocados, trepidam sem cessar, irrequietos, não satisfeitos, mas sem ousar saírem de seu estado. E o movimento que se observa no coração e no pulso dos animais e deve existir em todos os corpos incertos, entre uma posição cômoda e incômoda. Tentam libertar-se e são rechaçados, e, assim mesmo, prosseguem perpetuamente em suas tentativas.

O décimo nono movimento é aquele que à primeira vista não pa­rece digno desse nome, mas trata-se de um autêntico movimento. A esse movimento é necessário chamar de movimento de repouso ou de aversão ao movimento. Devido a esse movimento a terra permanece imóvel com toda a sua mole, enquanto se movem os seus extremos tendendo para o meio, não para um centro imaginário, mas para manter-se unida. Pela mesma razão, os corpos mais densos têm aversão ao movimento e todo o seu apetite se concentra no sentido de se não moverem; o repouso é a sua natureza, natureza que conservam para opô-la a todo movimento em sentido contrário. Mas, se são compelidos ao movimento, tendem sempre à recuperação de quietude, como seu estado próprio, para dela não mais saírem. E, em tal caso, esforçam-se muito rapidamente, mostrando-se muito ágeis, como se estivessem irritados e impacientes por toda e qualquer demora. Uma imagem de tal apetite só é possível parcialmente, de vez que todos os corpos tangíveis da face da terra encontram-se sob o influxo e o calor dos corpos celestes, não se encontram em seu mais alto grau de condensação e todos acham-se mesclados com alguma dose de espírito.

Procuramos, assim, enumerar as espécies ou elementos simples dos movimentos, os apetites e as virtudes ativas, que são mais comu­mente encontrados na natureza, o que reputamos de grande impor­tância para a ciência natural. Não pretendemos negar, por outro lado, que podem ser acrescentadas outras espécies, ou divisões, diferentes das aqui propostas, mais próximas das ramificações das coisas, ou em menor número. Leve-se em conta que não falamos de divisões abs­tratas, como as que dissessem que os corpos querem ou a conservação, ou a exaltação, ou a propagação, ou o desfrute da própria natureza; ou que dissessem que o movimento das coisas tende à conservação e ao bem do universo, como o de resistência ou de cone­xão, ou das grandes massas, como os de congregação maior, de rotação e de aversão ao movimento; ou das formas particulares, como remanescentes. Todas as afirmações verdadeiras, mas que se não determinam na matéria e não se reduzem a outra estrutura, conforme distinções verdadeiras perdem-se em especulações destituídas de utilidade. Todavia, por ora é suficiente a medida da virtude predominante e a investigação das instâncias de luta, sobre a qual estamos discorrendo.

Com efeito, dos movimentos enumerados, alguns são absoluta­mente insensíveis; outros são mais fortes e desencadeiam, interrompem e governam aqueles outros. Outros agem a distância, outros em menor tempo e com maior celeridade; outros, enfim, servem para reforçar, outros servem para, reciprocamente, reforçarem-se, acrescentarem-se, ampliarem-se e acelerarem-se.

O movimento de resistência (antitipia) é tão invencível quanto o diamante. Mas não podemos afirmar com certeza que o movimento de conexão seja invencível, pois não temos como certa a existência do vácuo, tanto em estado puro quanto mesclado. 250 Mas entendemos ser falso o argumento expresso por Leucipo e Demócrito, 251 de que os mesmos corpos não poderiam, se o vazio não existisse, abarcar e preencher ora maior, ora menor espaço. Pois a matéria é como se fosse plissada, 252 de maneira a se poder alargar ou encolher no espaço, dentro de certo limite, sem possibilitar o vácuo; e não é verdadeiro que o ar possua em si o vácuo duas vezes mais que o ouro, como se pretende. Disso temos certeza pelo conhecimento de potentíssimas virtudes dos corpos pneumáticos, os quais aqueles pretendem tratar­se de minúsculas partículas de pó no vácuo, e ainda muitas outras demonstrações. Os outros movimentos dominam e são dominados reciprocamente na proporção da energia, da massa, da velocidade, do impulso e dos auxílios ou obstáculos que se encontram.

Por exemplo, um magneto armado é capaz de atrair ferro na pro­porção de sessenta vezes o próprio peso; a prevalência do movimento de congregação menor sobre o de congregação maior: com um peso maior o magneto não atua. Uma alavanca de uma certa força levantará um certo peso; o movimento de liberdade domina a tal ponto o movimento de congregação maior que, com um peso maior, a alavanca cede. Um pedaço de couro se deixará esticar até certo ponto, sem se rasgar, pois depois desse ponto o movimento de continuidade domina o movimento de tensão; mas mais esticado o couro se rompe, e então o movimento de continuidade sucumbe. A água pode passar por certa fissura, de tal modo que o movimento de congregação maior domine o de continuidade, mas se a fissura é muito diminuta, prevalece o movimento de continuidade e a água deixará de passar. De uma arma de fogo com apenas pó de enxofre e sem fogo, a bala não será expelida, porque o movimento de congregação maior vence o movi­mento de matéria, mas, se ela é carregada com pólvora, o movimento de matéria vence no enxofre, estimulado pelo movimento de matéria e pela fuga do nitro. E assim, outros exemplos semelhantes. Com bastante e assídua diligência devem-se recolher sempre as instâncias de luta, que indicam o predomínio das virtudes e em que modo e proporção elas predominam ou sucumbem.

Mais ainda, devem-se buscar com diligência os modos e as razões do próprio sucumbir dos movimentos; se cedem completamente ou se continuam a resistir, mas contidos. Pois nos corpos por sobre a terra não há um verdadeiro repouso, nem no todo, nem nas partes dos corpos, mas apenas aparência. Essa quietude aparente e causada ou pelo equilíbrio ou por um predomínio absoluto de movimento; por equilíbrio, tal como ocorre nas balanças, que ficam paradas quando os pesos são iguais; por predomínio, como nos cântaros perfurados, em que a água fica em repouso, sem sair, em vista do predomínio do movimento de conexão. Mas deve ser observado, como já dissemos, até que ponto resistem esses movimentos que sucumbem. Pois, quando alguém em luta é arremessado ao solo, depois os pés e as mãos amarrados ou imobilizados de alguma forma, mesmo assim ele luta com todas as suas forças para se pôr de pé e mesmo que não o consiga o seu esforço não é menor do que em luta. As condições descritas (ou seja, se o movimento que sucumbe é como que aniquilado pelo predomínio, ou se continua em uma resistência latente) valem para o caso de concorrência de movimento, mas no caso de conflito de movimentos o que é latente se tornará potente. Por exemplo, suponha-se uma prova de tiro; verifiquemos num alvo, em linha reta, o seu alcance de tiro, depois procuremos saber se o golpe dessa bala será mais fraco, disparado de baixo para cima, quando o arremesso será o efeito de um movimento simples, que o dispa­rado de cima para baixo, quando o arremesso será o efeito de um movimento composto com a força de gravidade.

Também devem ser coligidos os cânones a respeito de predomínio. É o caso seguinte: quanto mais comum é o bem que se almeja tanto mais forte será o movimento; assim, o movimento de conexão, que diz respeito à inteira comunidade do universo, é mais forte que o movimento de gravidade, que diz respeito apenas à comunidade dos corpos densos. Ou ainda: os apetites do bem privado não prevalecem na maioria dos casos sobre os apetites do bem público. Que assim também fosse nos assuntos civis!