NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismo XLVI
 

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo segundo lugar as instâncias de currículo, 237 a que também costumamos chamar de instâncias da água, 238 tomando o nome das clepsidras, usadas pelos antigos, em que punham água em lugar de areia. Elas medem a natureza conforme os instantes do tempo, como fazem as instâncias da vara em relação às distâncias do espaço. Com efeito, todo movimento ou ação natural ocorre no tempo; é mais rápido ou mais lerdo que outro, mas sempre conforme durações fixas, notadas na natureza. Mesmo as ações súbitas à primeira vista têm causado maior ou menor duração temporal.

Em primeiro lugar, vemos que as revoluções dos corpos celestes ocorrem segundo períodos fixos; assim também o fluxo e refluxo do mar. A queda dos corpos pesados no sentido da terra e a subida dos corpos leves para o céu cumprem-se em tempos determinados, confor­me a natureza do corpo e o meio em que se movem. Da mesma forma, os velejos dos navios, o movimento dos animais, o arremesso dos projéteis ocorrem em tempos calculáveis no seu conjunto. Em relação ao calor, no inverno as crianças “lavam” as mãos nas chamas sem se queimarem, e os malabaristas, com movimentos ágeis e uniformes, colocam com a boca para baixo e para cima copos cheios de vinho ou água, sem derramar; e há muitas outras coisas semelhantes. Ainda mais, a expansão, a compressão e a erupção dos corpos ocorrem mais ou menos velozmente, segundo a natureza do corpo e do movimento, mas sempre em instantes determinados. Sabe-se que o ribombar dos canhões, que pode ser ouvido até a trinta milhas, é ouvido primeiro pelos que se acham perto e depois pelos que se acham distantes do local do disparo. E até a vista, cuja ação é rapidíssima, também exige instantes certos para sua atuação; como está provado pelo fato de que a uma certa velocidade os corpos não são mais distinguidos, como é o caso da bola disparada por um mosquete que passa ante a vista em um tempo menor que o exigido para a imagem impressionar a vista.

Esse exemplo e outros semelhantes fizeram surgir uma dúvida verdadeiramente espantosa, ou seja, a de que o aspecto do céu estrelado e sereno é visto no momento mesmo em que existe ou um pouco depois; e também, se existem, na contemplação dos corpos celestes, um tempo real e um tempo aparente, um espaço real e um espaço apa­rente, tal como é indicado pelos astrônomos nas paralaxes. Pois pare­ceria, de fato, inacreditável que as imagens dos corpos celestes pudes­sem atravessar, com seus raios, em um instante, espaços celestes tão vastos sem o emprego de qualquer tempo. Mas essa dúvida relacionada com um intervalo de tempo entre o tempo verdadeiro e o tempo aparente desvanece-se completamente quando se leva em conta a imensa perda de grandeza que devem ter as estrelas na sua imagem aparente, em razão da distância e também pelo fato de os corpos esbranquiçados, aqui na terra, poderem ser percebidos imediatamente, mesmo a uma distância de sessenta milhas. Não pode haver dúvida de que a luz dos corpos celestes ultrapassa em muito, em força de radiação, a cor viva da brancura, como também a luz de qualquer chama conhecida. Além disso, a imensa velocidade dos corpos celes­tes, que não é percebida em seu movimento diurno, o que chegou ao ponto de espantar mesmo os varões graves, levando-os a sustentar que o movimento da terra torna mais crível esse movimento de emissão dos raios deles saídos (embora com extraordinária rapidez, como foi dito). Finalmente, tomamos por confirmada definitivamente a falsidade de se admitir um intervalo entre um tempo verdadeiro e um tempo aparente, pelo fato de que, nesse caso, uma nuvem ou outra perturbação atmosférica qualquer confundiriam com muita freqüência as imagens. E é o que tínhamos a dizer a respeito das medi­das simples de tempo.

Mas é necessário investigar, além das medidas simples dos movimentos e das ações e muito mais, a medida comparativa, que é muito usada e que se relaciona com muitas coisas. Com efeito, a chama que segue à detonação de uma peça de artilharia é vista antes da audição do disparo, mesmo andando a bala mais rapidamente que a chama, e isso porque o movimento da luz é mais rápido que o do som. Sabemos igualmente que as imagens são recebidas pela vista muito mais rapidamente do que se desvanecem. E por isso também que as cordas de um instrumento, quando vibrados pelo dedo, parecem duplas ou triplas, porque se recebe uma nova imagem antes da perda da anterior; um mal em rotação parece uma esfera, e uma tocha movida rapida­mente, à noite, parece possuir uma cauda de fogo. Dessa desigualdade fundamental da velocidade dos movimentos extrai Galileu a causa do fluxo e do refluxo do mar. Sendo a terra de rotação mais veloz que a água, deve surgir, segundo ele, a acumulação e a elevação das águas, e vice-versa, em sua descida, como acontece com um recipiente de água fortemente agitado. 239 Mas tal opinião se fundamenta em uma hipótese arbitrária, 240isto é, que a terra se move, isso sem ter bem observado o movimento regular de cada seis horas do oceano.

Mas para se dispor de um exemplo de misturas comparativas dos movimentos (assunto de que tratamos) e de seu notável uso (do qual falamos há pouco), tomemos as minas subterrâneas, que com uma mínima quantidade de pólvora são capazes de lançar para o ar imensas massas de terra, edifícios e muralhas de toda espécie. A causa de tal fenômeno é certamente o fato de que o movimento de expansão da pólvora é muito mais rápido que o movimento da gravidade, que pode oferecer alguma resistência. Dessa forma, o movimento de expansão chegou ao fim antes de começar o movimento contrário, e por isso desde seu início o movimento de expansão não encontra qualquer resistência, se assim se pode dizer. Por igual razão, no lançamento de um projétil, mais vale um golpe súbito e violento que um forte. Pela mesma razão, uma pequena quantidade de espírito animal não poderia animar e mover o corpo dos animais, especialmente dos avantajados de corpo, como a baleia e o elefante, se o espí­rito não fosse dotado de uma espantosa velocidade, para poder per­correr toda a massa compacta do corpo, sem encontrar qualquer resistência.

Ademais, há um princípio, que constitui um dos fundamentos dos experimentos mágicos (de que trataremos logo depois), que é o seguinte: uma pequena quantidade de matéria supera e reduz à sua ordem um corpo de massa muito maior apenas quando, assim o cremos, se pode fazer com que um movimento, pela sua velocidade, se antecipe ao surgimento de outro movimento.

Por último, em toda ação natural deve-se ter em conta a distinção entre o antes e o depois; veja-se, por exemplo, que, em uma infusão de ruibarbo, primeiro se consegue uma ação purgante e depois uma ação adstringente; algo de semelhante notamos em uma infusão de violetas em vinagre, onde primeiro se percebe o perfume suave e delicado da flor e depois a parte mais terrosa e agreste da flor, que abafa o perfume. Pela mesma razão, se se submergem violetas em vinagre por todo um dia, percebe-se o aroma com muito menos intensidade que se forem submergidas por apenas um quarto de hora, e como o espírito aromático dessa planta é diminuto, se são colocadas violetas frescas, em cada quarto de hora, até seis vezes, dessa forma finalmente, é enriquecida a infusão de tal maneira que, ainda não tendo as violetas frescas permanecido no vinagre mais que uma hora e meia, ele adquire um aroma raro, em nada inferior à violeta, por todo um ano. Mas deve ser lembrado que o aroma só alcançará toda a sua intensidade depois de um mês de infusão. Nas destilações de aromas postos a macerar no espírito do vinho, ao contrário, em primeiro lugar surge um humor denso, aquoso e sem valor; e depois, a água mais impregnada do espírito do vinho, finalmente a água mais impregnada de aroma. Há sempre nas destilações muitas coisas, como essas, dignas de nota. Mas bastam essas como exemplo.