NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismo XXXVII
 

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo quinto lugar as instâncias de divórcio, 202 que indicam a separabilidade de naturezas que em grande parte se encontram juntas. Diferem das instâncias que se ligam às instâncias de acompanhamento 203 pelo fato de que estas indicam a separabilidade de uma natureza de um corpo concreto, que parece familiar, ao passo que as de divórcio indicam a possibilidade de separação de uma natureza de outra natureza. Diferem também das instâncias cruciais porque nada determinam, apenas se limitam a indicar a separabilidade de uma natureza de outra. Servem para a indicação de formas falsas e para refutar especulações levianas, nascidas de coisas óbvias; constituem uma espécie de peso ou lastro para o intelecto. 204

Por exemplo, tomem-se para a investigação as quatro naturezas que Telésio considera como companhias indivisíveis (ou inseparáveis) 205 e da mesma morada, que são as do calor, da luz, da tenuidade e da mobilidade ou da prontidão para o movimento. Encontram-se entre elas muitas instâncias de divórcio, tais como: o ar é tênue e móvel, mas não quente, nem luminoso; a lua fornece luz, mas não calor; a água fervente é quente, mas não fornece luz; a agulha de ferro, presa a um eixo, é ágil e móvel, embora se trate de um corpo frio, denso e opaco, etc.

Da mesma maneira, tomem-se para investigação a natureza corpórea e ação natural. 206 Parece não poderem ser encontradas, a não ser subsistindo em um corpo natural. Mas há entre elas um grande número de instâncias de divórcio. Por exemplo, a ação magnética, pela qual o ferro é atraído pelo magneto e os corpos pesados pelo centro da terra. Podem-se também acrescentar algumas outras operações a distância. Tal ação atua no tempo, em momentos sucessivos, e em um instante, no espaço, por graus e distâncias. Há, pois, um momento no tempo e um intervalo no espaço no qual essa virtude ou ação permanece em suspenso entre os dois corpos que provocam o movimento. O problema fica, assim, colocado nos seguintes termos: os dois corpos que são os termos do movimento dispõem ou modificam os corpos intermediários de modo a passar a virtude, insensivelmente, de um termo a outro, por uma série de contatos reais, não deixando de subsistir, nesse entretempo, no corpo intermediário, ou nada se passa entre os dois corpos além da troca da sua virtude através do espaço. Em todo caso, através dos raios luminosos, dos sons e através de ou­tras virtudes que atuam a distância, é possível que os corpos interme­diários sejam dispostos e alterados, tanto mais que se exige um meio adequado para levar a cabo a operação, como vetor da força atuante. Mas a virtude magnética, ou de união dos corpos, admite indiferente­mente qualquer corpo intermediário e a força não é por ele impedida, qualquer que seja a sua natureza. Se, pois, essa virtude ou ação não tem necessidade de nenhum corpo intermediário, segue-se que se trata de uma virtude ou ação natural que, por algum tempo e em algum lugar, subsiste sem corpo, uma vez que não subsiste num dos corpos terminais nem nos intermediários. Em vista disso, a ação magnética pode ser considerada uma instância de divórcio entre a natureza corpórea e a ação natural. Pode-se acrescentar como corolário ou vanta­gem, a não ser desprezado, o seguinte: mesmo quem faz filosofia segundo os sentidos 207 pode encontrar a prova da existência de entes ou substâncias separadas e incorpóreas. Com efeito, se uma virtude ou ação natural, que emana de um corpo, pode subsistir, por algum tempo, em algum lugar, separada do corpo, pode ser também que na sua origem possa emanar de uma substância incorpórea. E isso contra a opinião de que compete à natureza corpórea não apenas a conservação e a transmissão da ação natural mas também a sua estimulação e produção.

XXXVIII

Seguem-se cinco ordens de instâncias a que costumamos cha­mar, com o mesmo termo genérico, de instâncias de lâmpada ou de primeira informação, 208 pelo socorro que prestam aos sentidos. Toda interpretação da natureza começa pelos sentidos e, das percep­ções dos sentidos e por uma via direta, firme e segura alcança as percepções do intelecto, que constituem as noções verdadeiras e axio­mas. Em vista disso, quanto mais copiosas e exatas forem as repre­sentações e provisões dos sentidos necessariamente tanto mais felizes e fáceis serão os resultados finais.

Dentre os cinco tipos de instâncias de lâmpada, o primeiro revi­gora, amplia e retifica as ações imediatas dos sentidos; o segundo torna sensível o que não é diretamente sensível; o terceiro indica os processos continuados ou séries de coisas e de movimentos que (em sua maioria) apenas são notados ao seu final ou periodicamente; o quarto fornece matéria aos sentidos, quando o objeto se encontra completamente ausente; o quinto estimula a atenção dos sentidos, a sua vigilância e ao mesmo tempo limita a sutileza das coisas. Tratare­mos, a seguir, de cada um deles.

XXXIX

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo sexto lugar as instâncias deporta ou entrada. 209 Com esse nome indicamos as instâncias que ajudam as ações imediatas dos sentidos. A vista é manifestamente dos sentidos o mais importante para a investigação, daí ser importante procurar proporcionar-lhe ajuda. Estas podem ser de três espécies: as que podem possibilitar-lhe perceber o que é invisí­vel; as que lhe possibilitam ver mais longe; as que lhe permitem perce­ber mais exata e distintamente.

Do primeiro gênero são (deixando de lado os óculos e similares, que apenas servem para corrigir e atenuar a insuficiência da vista ou a má conformação do órgão e, por isso, não nos oferecem nada de novo) as lentes recentemente inventadas 210 que revelam as minúcias invisíveis e latentes dos corpos, seus ocultos esquematismos e delica­dos movimentos, com um considerável aumento das imagens. Com esse concurso, distinguem-se, não sem espanto, a figura do corpo, os seus delineamentos, como também as cores e os movimentos antes invisíveis da pulga, da mosca e dos vermes. Diz-se que uma linha reta traçada com lápis ou pena, através dessas lentes, parece desigual e torta, pois nem os movimentos da mão, ajudados pela régua, nem a tinta ou a cor são realmente iguais, embora tais diferenças sejam tão minúsculas que não podem ser percebidas sem o auxílio dessas lentes. Os homens, a tal respeito, logo fizeram a observação supersticiosa (como ocorre com todas as coisas novas e estranhas) de que aquelas lentes iluminam as obras da natureza, mas deturpam as da arte, O que demonstra somente o seguinte: que as estruturas naturais são muito mais sutis que as da arte. De fato, aquelas lentes só servem para as coisas diminutas; e se as tivesse conhecido Demócrito, ter-se-ia ale­grado muito, pensando ter encontrado a forma de ver os átomos, que ele considerava invisíveis. 211 Mas elas só são de utilidade em relação aos corpos pequenos. Se servissem para observar corpos grandes ou partes pequenas desses para fazerem ver, por exemplo, o tecido da tela como uma rede ou as particularidades ou irregularidades das pe­dras preciosas, dos líquidos, da urina, do sangue, dos ferimentos e muitas outras coisas, em tais casos se constituiriam em grande vantagem.

Do segundo gênero são as lentes inventadas com admirável esforço por Galileu, 212 por meio das quais é possível entrar em mais estreito contato com os corpos celestes, como o fazem as naves nas instâncias marítimas. Por seu intermédio sabemos que a Via Láctea não é mais que um aglomerado de pequenas estrelas, distintas em nú­mero e natureza, fato de que os antigos mal suspeitaram. Por seu intermédio fica demonstrado que os espaços dos chamados mundos planetários não estão vazios de outras estrelas, mas que o céu começa a se tornar cheio de estrelas antes do próprio céu estrelado; embora se trate de estrelas menores, invisíveis sem esses instrumentos. Por eles pode-se observar o movimento de rotação das pequenas estrelas em torno de Júpiter, o que nos leva a supor a existência de vários centros dos movimentos estrelares. Por seu intermédio, podem-se observar e determinar claramente as diversas zonas de luz e de sombra da lua; bem como se torna possível uma descrição aproximada de seu corpo. 213 Por seu intermédio, descobrimos, também, as manchas solares e coisas semelhantes. Trata-se, sem dúvida, de descobertas notáveis, se se puder dar crédito a tais demonstrações. Mas estas são tanto mais passíveis de suspeita quanto o experimento se atém a esses poucos descobrimentos e por seu intermédio não foram descobertas outras coisas igualmente dignas.

Do terceiro gênero são os bastões usados para medir as superfí­cies, os astrolábios e outros instrumentos semelhantes próprios para dirigir e retificar, mas não ampliar, a vista. As outras instâncias, que servem de auxílio aos outros sentidos, em suas operações imediatas e particulares, se não aumentam a sua capacidade de percepção, nada dizem ao nosso propósito. Por isso, não nos ocuparemos delas.

XL

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo sétimo lugar as instâncias de citação, 214 vocábulo tomado dos tribunais civis, que citam para comparecimento o que ainda não compareceu, e a que também costumamos chamar de instâncias evocantes, 215 por­que tornam sensível o que antes não o era.

As coisas escapam aos sentidos devido a várias causas: pela dis­tância em que está colocado o objeto; pela intervenção de outros corpos entre o objeto e os sentidos; pela natureza do objeto não facilitar a sua percepção; pela dimensão muito pequena do objeto, não chegando a impressionar os sentidos; por não haver tempo suficiente para impressionar os sentidos; pela prévia ocupação dos sentidos por outro objeto, não possibilitando nova impressão. Tudo isso se rela­ciona principalmente com a vista e um pouco com o tato, que são os sentidos mais informativos em relação a tais objetos, enquanto os ou­tros sentidos quase não dão informação, a não ser imediatamente e de objetos que lhes são próprios.

No primeiro gênero, não há meios de se fazer redução ao sensí­vel, a não ser que a uma coisa que não pode ser vista, em razão da sua distância, se acrescente ou se substitua outra que possa impressionar os sentidos, mesmo de longe: é o caso de quando se faz uso de fogueiras, sinos e coisas semelhantes para se comunicar algu­ma coisa.

No segundo gênero, pode-se obter a redução ao sensível por meio de alguma coisa que se encontre na superfície de um corpo, e que revele o que se passa em seu interior; isso numa posição em que não é possível a observação direta, em vista da interposição de outras partes do referido corpo, que se não podem remover. E o caso do esta­do geral do corpo humano, que se conhece pelo pulso, pela urina e ou­tros signos semelhantes.

O terceiro e o quarto gêneros são os mais freqüentes e, por isso, é possível encontrar-se um grande número de exemplos. Assim, o ar, o espírito e coisas semelhantes, que estão em todos os corpos sutis, mas que se não podem ver, nem tocar. Por essa razão, o estudo desses corpos não pode prescindir das deduções.

Por exemplo, tome-se para investigação a natureza da ação e do movimento do espírito encerrado nos corpos tangíveis. Pois não há corpo tangível sobre a terra que não cubra um espírito invisível, como uma veste. Aí tem origem a tríplice fonte tão admirável e poderosa do processo do espírito em um corpo tangível: se o espírito se desprende, o corpo se contrai e seca; se permanece dentro dos corpos, abranda­-os e os torna fluidos; se não se desprende nem nele permanece por completo, empresta forma, cria membros, assimila, digere, etc.. tornando-se um organismo. Todas essas coisas se manifestam aos sentidos por seus efeitos aparentes.

Com efeito, em todo corpo tangível e inanimado, começa por se multiplicar, como que se nutrindo das portas tangíveis que são mais fáceis e estão para isso preparadas; assimila-as, consome-as, conver­tendo-as em espírito, e depois escapam juntos. Essa consumação e multiplicação do espírito se torna sensível pela diminuição de peso. Em toda dessecação, efetivamente, ocorre perda de uma parte da quantidade; e isso não tanto pelo espírito que aí antes se encontrava, posto que o espírito por si mesmo não tem peso, mas devido ao pró­prio corpo, que antes era tangível, mas que agora não o é mais. A saída ou emissão do espírito se faz sensível pela ferrugem dos metais e outras putrefações do gênero que ficam em seu início e não chegam ao ponto em que começa a vivificação, e essas coisas pertencem ao terceiro gênero de processo. De fato, nos corpos mais compactos, o espírito não encontra furos ou poros por onde escapar; portanto, vê-se obrigado a empurrar e pressionar as partes tangíveis, de maneira a fazê-las sair juntamente para a superfície, onde formam a ferrugem e incrustações semelhantes. Os sinais sensíveis da contração das partes tangíveis, depois da emissão de parte do espírito (que é a causa da dessecação do corpo), são dados pela sua própria dureza, e mais ainda pelas fendas, gretas, enrugamentos, dobras, etc., que são efeitos que a ela se seguem. Por isso, as partes da madeira arqueiam-se e contraem-se; as peles se enrugam. E não é só isso: sob a ação do fogo, que acelera a emissão do espírito, a contração chega a fazer com que os corpos se dobrem e enrolem.

Se, ao contrário, o espírito é retido, mas se dilata e se excita pelo calor, e por outras causas (como ocorre com os corpos duros), então os corpos amolecem, como o ferro candente; outros metais se fluidifi­cam, liqüefazem-se, como as resinas, a cera e outras substâncias semelhantes. E as operações contrárias do calor, endurecendo certos corpos e liquefazendo outros, conciliam-se facilmente ao ser levado em conta que no endurecimento o espírito se evapora, na liquefação é agitado, mas retido no corpo; é que, enquanto a liquefação é ação própria do calor e do espírito, o endurecimento é ação das partes tangíveis motivada pela saída do espírito.

Mas quando o espírito não está nem completamente retido nem completamente desprendido, mas apenas faz esforços e tentativas na sua prisão corpórea, e se depara com as partes tangíveis que lhe são obedientes e inclinadas a acompanhar as suas operações e de fato o seguem, disso resulta a formação do organismo, com seus membros e demais ações vitais, quer animal, quer vegetal. Tal desenvolvimento pode ser tornado sensível especialmente com a cuidadosa observação dos primeiros movimentos e das primeiras manifestações ou nas ori­gens da vida, nos animálculos que nascem da putrefação, como, por exemplo, os ovos das formigas, vermes, moscas ou rãs que surgem de­pois da chuva, etc. Para lhes dar a vida, é necessário um calor tênue e uma certa viscosidade da matéria, para que o espírito não escape e para que a rigidez das partes não lhe ofereça excessiva resistência e possa plasmá-las e modelá-las como à cera.

Outra diferenciação do espírito, respeitável e de freqüente aplica­ção (ou seja, interrompido, ramificado e, ao mesmo tempo, ramifi­cado e celulado, 216 sendo o primeiro o espírito de todos os corpos inanimados, o segundo o dos vegetais, o terceiro o dos animais). Tam­bém essa diferenciação pode ser colocada diante dos olhos, por várias instâncias de redução.

É evidente que as mais sutis configurações e os esquematismos das coisas (mesmo que os corpos sejam inteiramente visíveis e tangíveis) não se pode nem ver nem tocar. Por isso também aqui a infor­mação procede por redução. Contudo, a diferença fundamental pri­mária dos esquematismos é obtida pela maior ou menor massa de matéria que possa ocupar um mesmo espaço ou dimensão. Os demais esquematismos que consistem na diversidade das partes contidas em um mesmo corpo e na sua diversa colocação ou posição são secundá­rios em comparação com o primeiro.

Tome-se, pois, para investigação a natureza da expansão ou força de coesão da matéria em relação aos vários corpos, para saber que quantidade de matéria se contém em uma mesma dimensão de cada corpo. Nada há de mais verdadeiro na natureza que a proposi­ção “do nada nada provém” e que a outra sua parceira “nada há que se reduza ao nada”; quer dizer, a quantidade em si da matéria ou a sua soma total permanece inalterada, sem aumentar ou diminuir. 217 E não é menos verdadeiro que “essa quantidade total de matéria se contém, mais ou menos, nos mesmos espaços ou dimensões, conforme a diferente natureza dos corpos”; assim é que a água contém mais, o ar menos; de modo que, se alguém assegurasse que um mesmo volu­me de água pode ser convertido em um volume igual de ar, seria o mesmo que dissesse que se pode reduzir algo a nada; e, no caso inverso, se alguém dissesse que um volume de ar pode ser convertido em um igual volume de água, seria o mesmo que dissesse que se pode produzir algo a partir do nada. É dessa diferente distribuição de maté­ria que se formam os conceitos de raro e denso, usados depois de vá­rias e confusas maneiras. Deve-se também tomar como axioma a asserção bastante acertada: o mais ou o menos da matéria deste ou daquele corpo pode ser reduzido a proporções exatas ou quase exatas por meio de cálculos comparativos. Pelo que não estaria enganado quem dissesse que em um determinado volume de ouro há tal acumu­lação de matéria que o espírito do vinho necessitaria, para igualar tal quantidade de matéria, de um espaço vinte e uma vezes maior que o ocupado pelo ouro.

A acumulação da matéria e suas proporções se tornam sensíveis pelo peso. O peso, de fato, corresponde à quantidade de matéria em relação às partes de uma coisa tangível, mas o espírito e a sua quanti­dade de matéria não podem ser computados pelo peso, já que o corpo se torna mais leve e não mais pesado. Mas elaboramos com bastante cuidado uma tábua disso, na qual são expostos os pesos e os respec­tivos volumes de cada um dos metais, das principais pedras, das madeiras, dos líquidos, dos óleos e de muitos outros corpos naturais e artificiais. É um verdadeiro policresto, para fornecer tanta luz às informações quanto as normas das operações e que pode levar à des­coberta de muita verdade insuspeitada. E não se deve subestimar o fato de que a referida tábua demonstra que o peso específico dos cor­pos tangíveis observados (referimo-nos aos corpos bem unidos, não os esponjosos, ou cavernosos e em boa proporção cheios de ar) não ultrapassa a relação de vinte para um (um a vinte), já que assim limi­tada é a natureza, pelo menos nos aspectos com que nos preocupamos.

Sentimos também que o espírito de exatidão de que nos ufana­mos obriga-nos a tentar descobrir uma proporção entre os corpos não tangíveis ou pneumáticos e os tangíveis. E o tentamos da seguinte maneira: tome-se uma ampola de vidro de uma onça de capacidade, aproximadamente, pequena o suficiente para conseguir evaporação com pouco calor; coloque-se quase até o gargalo espírito de vinho (que é o corpo mais rarefeito e o que contém menos quantidade de matéria entre os corpos tangíveis da tábua precedente, pelo menos entre os bem unidos e não cavernosos) e se anote cuidadosamente o peso. Depois disso, pegue-se uma bexiga que contenha uma ou duas pintas; 218 retire-se todo o ar possível da bexiga, até que os seus dois lados se toquem em todas as partes. Antes a bexiga deve ter sido fric­cionada com azeite para tapar todos os poros. A seguir, coloque-se a boca da bexiga em torno do gargalo da ampola, amarrando-o bem, com fios encerados, para melhor vedação. Depois disso, aqueça-se o frasco sobre carvões, em um pequeno forno. Pouco depois, a evapora­ção ou exalação do espírito do vinho, dilatado e tornado pneumático pelo calor, começa a inchar lentamente a bexiga por todos os lados, como uma vela ao vento. A seguir, retire-se o frasco do fogo, colocan­do-o sobre um tapete, para que o resfriamento rápido não o quebre, e faça-se imediatamente um furo na parte superior da bexiga, para evi­tar que o vapor, esfriando, retorne ao estado líquido, atrapalhando os cálculos. Depois disso, desamarre-se a bexiga e pese-se o espírito res­tante na ampola; compare-se o seu peso atual com o inicial, compu­tando-se quanto se transformou em vapor ou se tornou pneumático. Compare-se também o volume da substância, quando em estado de espírito do vinho, com o espaço que ocupou na forma de vapor. Dessa maneira, chegar-se-á ao resultado de que a substância transformada adquiriu um volume e ocupou um espaço cem vezes maior que o volu­me inicial.

Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza do calor ou do frio; mas em grau bem baixo, a ponto de não serem perce­bidos pelos sentidos: serão tornados sensíveis por meio do termôme­tro, a que antes já nos referimos, O calor e o frio, por si mesmos, não são perceptíveis pelo tato; mas o calor expande o ar e o frio o contrai. E a expansão e a contração, mesmo não sendo perceptíveis pela vista, podem ser observadas na depressão e no levantamento da água pro­duzidos respectivamente pela expansão ou pela contração do ar. Só assim se torna visível, nem antes, nem em outra forma.

Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza da mistura dos corpos; a saber, quanto de água, de óleo, de espírito, de cinza, e de sais e outras substâncias semelhantes; ou, em particular, investigue-se quanto de manteiga tem no leite, quanto de coágulo, quanto de cera, etc. Tudo isso pode ser tornado sensível por meio de separações competentes e artificiais. Mas a natureza do espírito, por si mesma, não pode perceber diretamente, mas tão-somente por meio dos vários movimentos e dos esforços dos corpos tangíveis, no pró­prio ato e processo de sua separação; e também pelos sinais das acidulações, das corrosões, das diversas cores e sabores que os corpos adquirem depois da separação. Na execução de destilações e separa­ções, por meios artificiais, trabalharam, certamente, os homens com grande dedicação, mas com tão pouco êxito quanto nos processos ora em uso, onde agem por tateios e às cegas, com mais esforço que inteli­gência; e o pior é que, sem procurarem imitar e estimular a natureza, mas, ao contrário, têm acabado por destruir, com o uso de calores demasiado fortes, e forças muito poderosas, os delicados esquema­tismos, onde em especial, se encerram as virtudes ocultas e os consen­sosdas coisas. Não é levada em conta, por outro lado, durante os experimentos, a advertência por nós já muitas vezes levantada, ou seja, que na separação dos corpos pela ação do fogo, muitas qualida­des estranhas ao composto acabaram interferindo, daí advindo enga­nos espantosos. Pois, nem todo vapor que é desprendido pela água colocada ao fogo era antes vapor ou ar no corpo da água; mas se for­mou, em sua maior parte, na ocasião em que a água foi rarefeita pelo fogo.

Do modo por nós preconizado, devem ser feitas comparações mais preciosas, tanto com corpos naturais quanto com corpos artifi­ciais, procedendo-se à separação entre o que é verdadeiro e o falso, entre o que é mais nobre e o mais vil; o que é aqui lembrado, por pro­mover a redução ao sensível, do que não é sensível. Por isso, tais experimentos devem ser colecionados por toda parte, com o maior cuidado.

Em relação ao quinto gênero de ocultação, 219 é evidente que a ação dos sentidos se processa no movimento, e o movimento, no tempo. Assim, se o movimento de um corpo é muito lento ou muito rápido para ser percebido, o objeto acaba por escapar aos sentidos, o que ocorre com o movimento do ponteiro do relógio ou da bala do mosquete. O movimento que não pode ser percebido, por ser muito lento, torna-se facilmente perceptível pela soma de vários movimen­tos; mas o que escapa, por ser muito veloz, ainda não pode ser medi­do com exatidão; e a investigação natural exige o seu cálculo, em alguns casos.

No sexto gênero, em que os sentidos deixam de perceber o obje­to, em vista de seu grande impacto, promove-se a redução ou por um maior distanciamento do objeto; ou atenuando-se os efeitos do objeto pela interposição de algum meio, mas que não chegue a anulá-los; ou limitando-se à consideração de apenas os efeitos reflexos do objeto, não afetando a sua intensidade original, como a imagem do sol refle­tindo em um espelho d’água.

O sétimo gênero de ocultação, em que os sentidos ficam tão sobrecarregados e tomados pelo objeto, a ponto de não permitirem a percepção de nenhum outro, acontecendo apenas com o olfato e os odores; e não são de importância para o que ora consideramos. E assim enumeramos o que diz respeito às reduções do não-sensível ao sensível.

Às vezes, porém, a redução se processa não nos sentidos do homem, mas nos sentidos de algum outro animal, que em alguns casos são mais penetrantes que os humanos; é o caso de alguns odo­res percebidos pelo olfato dos cães, ou da luz, que fica impregnada no ar exterior não iluminado, e que é percebida pelo gato; é o caso da co­ruja e outros animais que vêem à noite. Como bem o indica Telésio, há no ar uma certa luminosidade que lhe é própria, embora fraca e tênue, e insuficiente para ser percebida pela maior parte dos animais, inclusive pelo homem; assim, é possível aos animais com sentidos mais aptos verem à noite, pois não se pode admitir que vejam sem luz ou com alguma luz interna.

Deve ser lembrado que nos estamos ocupando tão-somente das deficiências dos sentidos e de seus remédios. As falácias dos sentidos, por sua vez, pertencem a uma investigação própria sobre os sentidos e sobre a sensibilidade, 220 afora aquela magna falácia que consiste em estabelecer as linhas das coisas por analogia com o homem e não por analogia com o universo, que só pode ser corrigido pela razão e por toda a filosofia. 221

XLI

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo oitavo lugar as instâncias de caminho, 222a que também costumamos chamar de instâncias itinerantes e instâncias articuladas. 223 São as que indicam os movimentos uniformes e graduais da natureza. Esse gêne­ro de instância escapa mais à observação que aos sentidos, pois é espantosa a negligência dos homens a seu respeito. Só estudam a natureza a intervalos ou periodicamente e quando os corpos já estão acabados e completos, e não em sua operação. Pois bem, se alguém se dispusesse a considerar o talento e a habilidade de um artífice, teria que observar não apenas o material empregado e depois a obra acaba­da, mas teria que presenciar também as operações do artífice e o desenvolvimento de sua obra. Esse mesmo comportamento deve ser observado em relação à natureza. Por exemplo, na investigação sobre a vegetação das plantas, é necessário começar pelas sementes, obser­vando-as quase diariamente, enterradas, e retirando-as da terra a intervalos crescentes, primeiro depois de um dia, a seguir depois de dois, a seguir depois de três, para se poder lobrigar de que modo e em que momento as sementes começam a inchar e intumescer-se, a encher-se de espírito; depois, a romper o revestimento emitindo os pri­meiros brotos para fora da terra, se estes não forem impedidos pela dureza do terreno; para se verificar de que modo se lançam as fibras, como as raízes para baixo, como os ramos para cima, que às vezes se prendem lateralmente, se o terreno assim o facilita; e assim por dian­te. Da mesma maneira, devem-se observar os ovos, nos quais é possí­vel ver os processos de vivificação e organização de todas as partes, distinguir as partes que procedem da gema das partes que procedem da clara e outras coisas semelhantes. Da mesma maneira, observar os animais que nascem da putrefação. No caso dos animais superiores, seria crueldade abrir continuamente o ventre da mãe, para extrair o feto do útero; a não ser em casos de aborto ocasional, caça e situa­ções semelhantes. Finalmente, é necessário iniciar uma espécie de vigília noturna para a observação da natureza, que mais se mostra à noite que durante o dia. De qualquer forma, o estudo da natureza, em vista da pequenez e da intermitência da lâmpada, pode ser conside­rado como empresa noturna.

O mesmo procedimento deve ser tentado com as coisas inanima­das, como o fizemos por ocasião das observações sobre a expansão dos líquidos ao fogo. De fato, a expansão ocorre de maneira diversano leite, no óleo, etc. Isso é mais fácil de ser observado fervendo-os lentamente em um recipiente de vidro, que deixa à mostra todas as operações. Todavia, tratamos disso tudo apenas de passagem, dei­xando para fazê-lo de maneira mais detida e exata quando abordar­mos o problema da descoberta do processo latente das coisas. 224Deve-se sempre ter em conta que, aqui, não tratamos das coisas em si mesmas, mas apenas aduzimos exemplos.

XLII

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo nono lugar as instâncias suplementares ou substitutivas, 225 a que também costumamos chamar de instâncias de refúgio. 226 São as instâncias que oferecem informações em circunstâncias em que os sentidos fal­tam completamente, servindo, portanto, de refúgio quando não se dis­põe de instâncias adequadas. A substituição ocorre de duas maneiras: por graduação ou por analogia. Por exemplo: não se dispõe de qual­quer meio que iniba completamente a força magnética em relação ao ferro; nem com a interposição do ouro, ou da prata, ou da pedra, ou do vidro, ou da madeira, ou da água, ou do óleo, ou do pano, ou de corpos fibrosos, ou do ar, ou da chama, etc. Contudo, através de ensaios meticulosos, pode ser que se encontre um meio, em proporção e em grau, mais eficiente que outros, de atenuar a sua virtude. Não chegamos a fazer nenhum experimento nesse sentido, que se poderia processar segundo o exemplo seguinte: procurando verificar se o magneto atrai igualmente o ferro, com a interposição de porções da mesma espesssura de ouro, de ar, ou de prata candente e de prata natural, etc., igualmente, ainda não se descobriu nenhum corpo que, aproximado do fogo, não retenha calor. Mas o ar se aquece muito mais rapidamente que a pedra. E tal é a substituição que se processa por graus.

A substituição por analogia é, sem dúvida, útil, mas é menos segura, por isso deve ser aplicada com critério. É a que ocorre quando se coloca o não-perceptível ao alcance dos sentidos, não através de operações do próprio corpo não-perceptível, procurando torná-lo sensível, mas através da observação de um corpo sensível análogo. Por exemplo, tome-se para investigação a mistura de espíritos, que são corpos não-visíveis, supondo que há certa afinidade entre os corpos e os seus nutrientes ou alimentos. Os alimentos da chama parecem ser o óleo e as substâncias graxas; os do ar, a água e os líquidos; de vez que a chama se multiplica sobre os vapores do óleo e o ar, sobre os vapores da água. Por isso deve-se observar a mistura da água com o óleo, que se manifesta aos sentidos, visto que a mistura da chama com o ar se lhes escapa. Por meio da composição e da agitação, a água e o óleo se misturam de modo muito imperfeito; mas nas ervas, no sangue e nos organismos em geral, eles se misturam de modo acu­rado e delicado. O mesmo pode acontecer em relação à mistura da chama com o ar, nas substâncias espirituosas; embora não se mistu­rem bem, por meio de fusão, no espírito das plantas e dos animais, misturam-se perfeitamente. A propósito, veja-se que todo espírito ani­mado se alimenta do úmido, seja em forma de água, seja em forma de óleo.

Igualmente, procure-se considerar, não as misturas mais perfei­tas dos corpos espirituosos mas os seus componentes, para se verifi­car os que se incorporam com facilidade; ou se há algum gás ou ou­tros corpos espirituosos que não se misturam com o ar comum, mas permanecem suspensos e flutuam em forma de pequenos globos ou gotas; e que se espessam e pulverizam no ar, mas nele não se fundindo ou se incorporando, devido à sua tenuidade tais corpos não podem ser percebidos pelos sentidos, no ar comum ou em outras substâncias espirituosas. Mas uma imagem dessa ocorrência, que permite recolhe­rem-se algumas características do fenômeno, pode ser conseguida através do que sucede com o mercúrio, o óleo ou a água, como tam­bém com o ar, quando se rompe na água e sobe em forma de peque­nas bolhas; como também com fumaça de tipo mais espesso; situa­ções todas elas em que não ocorre a incorporação. A representação que se acabou de descrever não é descabida para o caso, desde que tenha sido prévia e cuidadosamente averiguada a existência entre os corpos espirituosos da mesma heterogeneidade que entre os líquidos. Só então se poderá fazer de maneira útil o uso de imagens por analogia.

E o que dissemos antes sobre as instâncias suplementares, que servem de refúgio para a informação quando não há possibilidade de extrai-las de instâncias próprias, queremos que seja entendido no sen­tido de que são de grande uso ainda na existência de instâncias apropriadas, para corroborarem as informações destas. Mas sobre isso discorreremos mais amplamente quando tratarmos dos adminículos da indução.

XLIII

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo lugar as instâncias secantes, 227 a que também costumamos chamar de instâncias velicantes. Velicantes porque beliscam a inteligência, e secantes porque dividem a natureza, pelo que também, às vezes, as chamamos de instâncias de Demócrito. 228 Tais instâncias previnem o intelecto da admirável sutileza da natureza, para que desperte e esti­mule a atenção, a observação e a investigação no sentido devido. Por exemplo: de como uma pequena gota de tinta é suficiente para um tão grande número de letras e linhas; de como uma pequena porção de prata dourada pode formar um tão longo fio dourado, de como um verme tão pequeno, como o que ataca a pele, pode ter espírito e um corpo organizado; de como uma mínima porção de açafrão é sufi­ciente para tingir um tonel de água; de como um pouco apenas de algália ou erva aromática pode inundar todo o ambiente circundante com o seu perfume; de como apenas uma pequena porção de matéria combustível levanta um tão grande volume de fumaça; de como as mínimas diferenças de sons, como a voz articulada, propagam-se pelo ar, em todas as direções, penetrando e repercutindo pelos poros e interstícios da madeira, velozes e distintamente; de como, passando por refrações e reflexões, a luz e o calor penetram corpos sólidos como o vidro e a água, a distância e com grande rapidez, formando miríades de imagens, diversificadas ao infinito; de como o magneto atua através dos corpos mais compactos. Mas o que é ainda mais espantoso é que, em todas essas operações, que se desenvolvem em um meio transparente como o ar, nada haja que ofereça resistência; pois, no mesmo instante em que são transportadas, pelo ar, tantas imagens visuais, tantas impressões de sons articulados, tantos odores diferentes, de violeta, de rosa, etc; e ainda calor, frio, influências magnéticas; tudo isso, e não se chocam — como se tivessem cami­nhos e direções distintas a seguir.

Costumamos, todavia, juntar a essas instâncias secantes estas outras, a que chamamos de instâncias de divisão. 229 Com efeito, nas coisas de que vimos falando, uma ação não perturba, nem impede outra ação de gênero diverso, mas submete e extingue as que são do mesmo gênero. A luz do sol domina e extingue a luz do pirilampo, um tiro de canhão faz o mesmo em relação à voz; um odor mais intenso suprime o mais fraco; o mesmo faz o calor; uma lâmina de ferro colo­cada entre o magneto e um outro ferro extingue a ação magnética. Mas voltaremos a essas questões mais demoradamente e no lugar pró­prio, quando tratarmos dos adminículos da indução.

XLIV

Dissemos o que competia sobre as instâncias que ajudam os sen­tidos e que são de uso precípuo para a parte informativa. Com efeito, a informação tem início nos sentidos. Mas todos os assuntos se com­pletam na prática. Acrescentamos, pois, aquelas instâncias que são de uso precípuo na parte operativa, que são de dois gêneros e em número de sete, mas costumamos chamá-las em conjunto de instâncias práti­cas. Há dois tipos de defeitos a serem corrigidos na parte operativa e, por isso, dois tipos de instâncias prerrogativas, a saber, a operação ou é falha, ou é muito onerosa. Mesmo depois de um diligente exame da natureza, a operação pode falhar em razão da errada valorização e medida das forças e das ações dos corpos. Pois bem, as ações e as for­ças dos corpos são delimitadas e medidas, ou segundo o esforço, ou segundo o tempo, ou segundo a quantidade, ou segundo a predomi­nância de virtude. Quando esses quatro aspectos não forem conside­rados com diligência e probidade, certamente teremos ciências bela­mente ornadas de especulações, mas ineficazes na parte operativa. E as quatro instâncias que devem ser mencionadas, vamos designá-las com o único nome de instâncias matemáticas e de instâncias de medida. 230

A operação prática torna-se muito onerosa, ou pela mistura de coisas inúteis ou pela multiplicação dos instrumentos, ou pelo peso excessivo da matéria ou das substâncias que intervêm na operação. Portanto, devem ser tidas como da maior valia as instâncias que orientam a prática para as operações que são de maior interesse para o homem, ou que reduzem o número dos instrumentos, ou poupam materiais ou ferramentas. Esses três tipos de instâncias que servem ao fim ora indicado, designamos com o único nome de instâncias propí­cias ou instâncias benévolas. 231 Logo a seguir, trataremos detalhadamente de todas as sete e com isso daremos por terminadas as instân­cias prerrogativas.

XLV

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo pri­meiro lugar as instâncias da Vara 232 ou do Raio, 233 a que também costumamos chamar de alcance 234 ou de non ultra. 235 Pois, de fato, as forças e os movimentos das coisas não se desenvolvem em espaço indefinido ou acidental, mas em espaço definido e determinado; por isso, no estudo das naturezas singulares, é de grande importância para a prática determinar esses espaços, não só para evitar que venha a malograr, como também para torná-la mais ampla e eficaz. Por seu intermédio, às vezes, é possível aumentar artificialmente a sua força e, por assim dizer, aproximar as distâncias, tal como ocorre com o uso dos óculos (ou telescópios).

Essas forças, em sua maioria, só agem quando há contato mani­festo, como ocorre no choque dos corpos, onde o corpo se move comunicando o movimento unicamente por contato. Também nas medicinas para aplicação externa, como os ungüentos, os emplastros, exercem as suas forças através do contato. Enfim, os objetos não são percebidos quando ficam pelo menos em continuidade com os órgãos respectivos.

Há ainda outras forças ou virtudes que operam a distância e até agora só algumas poucas foram notadas, embora muito mais numero­sas do que se possa pensar. Como, para citar exemplos comuns, o âmbar e o azeviche, que atraem felpas; as bolhas de água, que aproxi­madas se fundem; algumas medicinas purgativas arrastam os humo­res das partes superiores do corpo, etc. E, ao contrário, a virtude magnética, pela qual o magneto atrai o ferro, o magneto atrai o mag­neto, atua num limite circunscrito do espaço; enquanto que, por seu turno, a virtude magnética, que emana da terra, um pouco abaixo da superfície, fazendo a agulha do ferro voltar-se para o pólo, age a gran­de distância.

Se há uma força magnética que atua, por consenso, entre o globo terrestre e os corpos pesados, ou entre o globo da lua e as águas do mar (que seria de se supor em vista dos fluxos e refluxos quinzenais), ou entre o céu estrelado e os planetas, pela qual são levados aos seus apogeus; se assim for, essa força atua a uma enorme distância. Há ainda matérias que se incendeiam a grande distância, como se diz da nafta da Babilônia. 236 Também a comunicação do calor, como a do frio, se cumpre a grande distância. Por exemplo, os habitantes do Canadá sentem de longe o frio que emana dos blocos de gelo, que se desprendem e que flutuam no oceano Atlântico, em direção às suas praias. O mesmo se pode dizer dos odores de pontos longínquos (em­bora em tais casos ocorra a emissão de corpúsculos) e disso têm prova os que navegam próximo às costas da Flórida ou de certas regiões da Espanha, com os odores que se desprendem dos bosques de limoeiros, laranjeiras e outras árvores aromáticas, ou de área coberta de árvores aromáticas, como alecrim, manjerona e plantas semelhan­tes. Finalmente, sejam lembrados os raios de luz e os sons que agem a grandes distâncias.

Todavia, todas essas forças, atuem a grande ou a pequena distância, certamente agem a distâncias limitadas e determinadas segundo sua natureza, de modo que constituem algo de não mais; e isso em proporção à massa ou à quantidade do corpo, à força ou a pouca intensidade da virtude, bem como aos corpos interpostos que a impedem ou auxiliam, tudo deve ser calculado e anotado. Também a mistura dos chamados movimentos violentos, como os de projéteis, canhões, rodas e coisas semelhantes, tem os seus movimentos fixos, pelo que também devem ser anotados com precisão.

Há, por outro lado, movimentos ou virtudes que agem melhor a distância que por contato, e ainda outros que operam com maior intensidade de longe que de perto. Por exemplo, a vista não funciona bem por contato, exigindo certo meio e distância. Isso a despeito de termos ouvido de alguém digno de fé que, enquanto era operado de catarata por um cirurgião (pela introdução de uma agulha de prata sob a córnea do olho, para desprender a película que forma a catarata e empurrá-la para um dos cantos do olho), via claramente a agulha movendo-se diante da pupila. De qualquer maneira, parece manifesto que os corpos maiores não podem ser distinguidos claramente senão no vértice do cone formado pelos raios que partem dos objetos a uma certa distância do olho; dessa forma, os velhos vêem melhor de longe que de perto. No caso dos projéteis, eles são mais fortes de longe que de perto. Este e outros exemplos, a propósito da medida dos movi­mentos, em relação à distância, devem ser anotados. Mas não pode ser desprezado um outro modo de se misturar os movimentos espe­ciais. Não se trata dos movimentos lineares, progressivos, mas esféri­cos, ou seja, que se expandem em uma esfera maior, ou que se con­traem em uma esfera menor. Com efeito, é necessário que se investigue em tais medidas de movimentos qual é o grau de compres­são ou extensão que os corpos, segundo sua natureza, suportam facil­mente e sem violência, e em que grau começam a resistir até que não agüentam um não mais além, será o caso se se comprimir uma bexiga cheia, que suporta certa compressão de ar, mas, se aumentada, a bexi­ga não suporta e se rompe.

Procuramos, com um experimento delicado, e com mais exati­dão, esse mesmo fenômeno. Tomamos uma campânula de metal, muito fina e leve, como as que se usam para saleiro; submergimo-la em uma cuba com água, de tal maneira a levar consigo ao fundo o ar encerrado em seu bojo. Colocamo-la lá no fundo, sobre um pequeno globo, antes já mergulhado, e obtivemos os seguintes dois resultados: sendo a esfera pequena em relação ao bojo da campânula, o ar se con­trai, ocupando um menor espaço, sendo muito grande para que o ar facilmente recuasse; este, não suportando a grande pressão, elevava um dos lados da campânula, subindo à tona em pequenas bolhas.

Igualmente, para provar o maior grau de expansão do ar (como a sua compressão), procedemos da seguinte forma: pegamos um ovo de vidro, furado numa das pontas; por meio de forte sucção foi extraído o ar pelo orifício, tapando-o com o dedo; em seguida, mergulhamo-lo na água, retirando o dedo; com isso o ar, deformado pela tensão causada pela sucção e dilatado fora de sua dimensão natural, procurando, com isso, se contrair e se reduzir (de tal forma que, se o ovo não estivesse mergulhado na água, o ar teria sido atraído com um silvo), atraiu água em quantidade suficiente para que o ar ocupasse igual espaço ao que ocupava antes.

Assim, fica estabelecido que os corpos mais tênues, como o ar, também suportam uma notável contração (como dissemos); ao passo que os corpos tangíveis, como a água, muito mais dificilmente supor­tam a compressão e em menor extensão. Em outro experimento procuramos verificar até que ponto a suporta. Mandamos confeccionar uma esfera de chumbo oca, de uma ou duas pintas de capacidade, e seus lados eram grossos o suficiente para resistir com grande força: enchemo-la com água por um orifício, que foi, em seguida, tapado com chumbo derretido, de modo a ficar bem vedada; depois achata­mo-la, com um martelo, em dois lados opostos. Com tal achatamento, necessariamente a água ocupava menor espaço, posto que a esfera e a figura eram de maior capacidade. Ficando já o martelo ineficaz, em vista da resistência da água, colocamo-la em uma prensa, apertando-a até o momento em que, não suportando mais a pressão, a água come­çou a destilar-se das paredes sólidas do chumbo, como delicada exsu­dação. Finalmente, calculamos o espaço perdido pela compressão e concluímos que a água se havia comprimido outro tanto, suportando uma pressão bastante violenta.

Os corpos mais sólidos, secos e compactos, como a pedra, a madeira e metais, suportam uma compressão muito menor e quase imperceptível, mas livram-se da violência a que são submetidos partindo-se, alongando-se ou com outros movimentos, como se obser­va no arqueamento da madeira e do metal, nos relógios que se movem por uma mola, nos projéteis, no martelamento de metais e em muitos outros movimentos. E tudo isso deve ser investigado e anotado no es­tudo da natureza, seja por cálculo direto, seja por estimativa ou por comparação, conforme o caso.

XLVI

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo segundo lugar as instâncias de currículo, 237 a que também costuma­mos chamar de instâncias da água, 238 tomando o nome das clepsi­dras, usadas pelos antigos, em que punham água em lugar de areia. Elas medem a natureza conforme os instantes do tempo, como fazem as instâncias da vara em relação às distâncias do espaço. Com efeito, todo movimento ou ação natural ocorre no tempo; é mais rápido ou mais lerdo que outro, mas sempre conforme durações fixas, notadas na natureza. Mesmo as ações súbitas à primeira vista têm causado maior ou menor duração temporal.

Em primeiro lugar, vemos que as revoluções dos corpos celestes ocorrem segundo períodos fixos; assim também o fluxo e refluxo do mar. A queda dos corpos pesados no sentido da terra e a subida dos corpos leves para o céu cumprem-se em tempos determinados, confor­me a natureza do corpo e o meio em que se movem. Da mesma forma, os velejos dos navios, o movimento dos animais, o arremesso dos projéteis ocorrem em tempos calculáveis no seu conjunto. Em relação ao calor, no inverno as crianças “lavam” as mãos nas chamas sem se queimarem, e os malabaristas, com movimentos ágeis e uniformes, colocam com a boca para baixo e para cima copos cheios de vinho ou água, sem derramar; e há muitas outras coisas semelhantes. Ainda mais, a expansão, a compressão e a erupção dos corpos ocorrem mais ou menos velozmente, segundo a natureza do corpo e do movimento, mas sempre em instantes determinados. Sabe-se que o ribombar dos canhões, que pode ser ouvido até a trinta milhas, é ouvido primeiro pelos que se acham perto e depois pelos que se acham distantes do local do disparo. E até a vista, cuja ação é rapidíssima, também exige instantes certos para sua atuação; como está provado pelo fato de que a uma certa velocidade os corpos não são mais distinguidos, co­mo é o caso da bola disparada por um mosquete que passa ante a vista em um tempo menor que o exigido para a imagem impressionar a vista.

Esse exemplo e outros semelhantes fizeram surgir uma dúvida verdadeiramente espantosa, ou seja, a de que o aspecto do céu estre­lado e sereno é visto no momento mesmo em que existe ou um pouco depois; e também, se existem, na contemplação dos corpos celestes, um tempo real e um tempo aparente, um espaço real e um espaço apa­rente, tal como é indicado pelos astrônomos nas paralaxes. Pois pare­ceria, de fato, inacreditável que as imagens dos corpos celestes pudes­sem atravessar, com seus raios, em um instante, espaços celestes tão vastos sem o emprego de qualquer tempo. Mas essa dúvida relacio­nada com um intervalo de tempo entre o tempo verdadeiro e o tempo aparente desvanece-se completamente quando se leva em conta a imensa perda de grandeza que devem ter as estrelas na sua imagem aparente, em razão da distância e também pelo fato de os corpos esbranquiçados, aqui na terra, poderem ser percebidos imediata­mente, mesmo a uma distância de sessenta milhas. Não pode haver dúvida de que a luz dos corpos celestes ultrapassa em muito, em força de radiação, a cor viva da brancura, como também a luz de qualquer chama conhecida. Além disso, a imensa velocidade dos corpos celes­tes, que não é percebida em seu movimento diurno, o que chegou ao ponto de espantar mesmo os varões graves, levando-os a sustentar que o movimento da terra torna mais crível esse movimento de emis­são dos raios deles saídos (embora com extraordinária rapidez, como foi dito). Finalmente, tomamos por confirmada definitivamente a fal­sidade de se admitir um intervalo entre um tempo verdadeiro e um tempo aparente, pelo fato de que, nesse caso, uma nuvem ou outra perturbação atmosférica qualquer confundiriam com muita freqüência as imagens. E é o que tínhamos a dizer a respeito das medi­das simples de tempo.

Mas é necessário investigar, além das medidas simples dos movi­mentos e das ações e muito mais, a medida comparativa, que é muito usada e que se relaciona com muitas coisas. Com efeito, a chama que segue à detonação de uma peça de artilharia é vista antes da audição do disparo, mesmo andando a bala mais rapidamente que a chama, e isso porque o movimento da luz é mais rápido que o do som. Sabemos igualmente que as imagens são recebidas pela vista muito mais rapi­damente do que se desvanecem. E por isso também que as cordas de um instrumento, quando vibrados pelo dedo, parecem duplas ou tri­plas, porque se recebe uma nova imagem antes da perda da anterior; um mal em rotação parece uma esfera, e uma tocha movida rapida­mente, à noite, parece possuir uma cauda de fogo. Dessa desigualdade fundamental da velocidade dos movimentos extrai Galileu a causa do fluxo e do refluxo do mar. Sendo a terra de rotação mais veloz que a água, deve surgir, segundo ele, a acumulação e a elevação das águas, e vice-versa, em sua descida, como acontece com um recipiente de água fortemente agitado. 239 Mas tal opinião se fundamenta em uma hipótese arbitrária, 240isto é, que a terra se move, isso sem ter bem observado o movimento regular de cada seis horas do oceano.

Mas para se dispor de um exemplo de misturas comparativas dos movimentos (assunto de que tratamos) e de seu notável uso (do qual falamos há pouco), tomemos as minas subterrâneas, que com uma mínima quantidade de pólvora são capazes de lançar para o ar imensas massas de terra, edifícios e muralhas de toda espécie. A causa de tal fenômeno é certamente o fato de que o movimento de expansão da pólvora é muito mais rápido que o movimento da gravi­dade, que pode oferecer alguma resistência. Dessa forma, o movi­mento de expansão chegou ao fim antes de começar o movimento contrário, e por isso desde seu início o movimento de expansão não encontra qualquer resistência, se assim se pode dizer. Por igual razão, no lançamento de um projétil, mais vale um golpe súbito e violento que um forte. Pela mesma razão, uma pequena quantidade de espírito animal não poderia animar e mover o corpo dos animais, especial­mente dos avantajados de corpo, como a baleia e o elefante, se o espí­rito não fosse dotado de uma espantosa velocidade, para poder per­correr toda a massa compacta do corpo, sem encontrar qualquer resistência.

Ademais, há um princípio, que constitui um dos fundamentos dos experimentos mágicos (de que trataremos logo depois), que é o seguinte: uma pequena quantidade de matéria supera e reduz à sua ordem um corpo de massa muito maior apenas quando, assim o cre­mos, se pode fazer com que um movimento, pela sua velocidade, se antecipe ao surgimento de outro movimento.

 

Por último, em toda ação natural deve-se ter em conta a distin­ção entre o antes e o depois; veja-se, por exemplo, que, em uma infu­são de ruibarbo, primeiro se consegue uma ação purgante e depois uma ação adstringente; algo de semelhante notamos em uma infusão de violetas em vinagre, onde primeiro se percebe o perfume suave e delicado da flor e depois a parte mais terrosa e agreste da flor, que abafa o perfume. Pela mesma razão, se se submergem violetas em vinagre por todo um dia, percebe-se o aroma com muito menos inten­sidade que se forem submergidas por apenas um quarto de hora, e como o espírito aromático dessa planta é diminuto, se são colocadas violetas frescas, em cada quarto de hora, até seis vezes, dessa forma finalmente, é enriquecida a infusão de tal maneira que, ainda não tendo as violetas frescas permanecido no vinagre mais que uma hora e meia, ele adquire um aroma raro, em nada inferior à violeta, por todo um ano. Mas deve ser lembrado que o aroma só alcançará toda a sua intensidade depois de um mês de infusão. Nas destilações de aromas postos a macerar no espírito do vinho, ao contrário, em pri­meiro lugar surge um humor denso, aquoso e sem valor; e depois, a água mais impregnada do espírito do vinho, finalmente a água mais impregnada de aroma. Há sempre nas destilações muitas coisas, como essas, dignas de nota. Mas bastam essas como exemplo.

XLVII

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo tercei­ro lugar as instâncias de quantidade, 241 a que costumamos também chamar de dose da natureza, 242 tomando o termo da medicina. São aquelas que medem as virtudes e, pelas quantidades dos corpos, indicam quanto intervém a quantidade do corpo sobre o modo dessas virtudes. Em primeiro lugar, há virtudes que só subsistem em uma quantidade cósmica, isto é, uma quantidade tal que tenha um consenso com a configuração e a estrutura do universo. Desse modo, a terra está firme, mas suas partes caem. As águas marinhas sofrem fluxos e refluxos; o que não acontece com os rios, a não ser em sua embocadura, por penetração do mar. Em segundo lugar, quase todas as virtu­des particulares agem segundo a maior ou menor quantidade do cor­po. As grandes extensões de água não se corrompem facilmente como as poças que logo apodrecem. O mosto e a cerveja fermentam e tor­nam-se potáveis com mais facilidade em pequenos recipientes que em grandes tonéis. Se se coloca uma erva em grande quantidade em um líquido, obtém-se uma infusão e não uma impregnação; se se coloca uma pequena quantidade, obtém-se uma impregnação e não uma infusão. Também no corpo humano, uma coisa é um banho e outra, uma simples aspersão. Do mesmo modo, o orvalho espargido pelo ar não chega a cair e acaba se incorporando no ar. E, soprando-se sobre uma pedra preciosa, pode observar-se a ligeira umidade dissolver-se imediatamente, como uma pequena nuvem já citada, dissipada pelo vento. Igualmente, um pedaço de magneto não atrai tanto ferro quan­to um magneto inteiro. De outro lado, há virtudes que agem melhor na pequena quantidade que na grande; o estilete agudo fura e penetra mais facilmente que o obtuso, um diamante pontiagudo corta o vidro; e assim por diante.

De fato, não nos devemos deter em coisas genéricas, pois é necessário que se faça uma investigação a respeito da efetiva relação da quantidade do corpo com o modo da virtude. Poder-se-ia crer que seriam proporcionais; assim, uma bola de chumbo de duas onças deveria cair com o dobro da velocidade de uma bola de uma onça, o que é absolutamente errado. 243 Dessa forma, as relações são muito diversas e segundo os gêneros da virtude e, por isso, tais medidas devem ser determinadas nas próprias coisas, e não segundo verossimilhanças e conjeturas.

Enfim, em toda investigação da natureza deve ser observada a quantidade do corpo (a sua dose) que é exigida para um determinado efeito, e toda cautela deve ser empregada em relação ao muito e ao pouco.