NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismo XXVII
 

Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em sexto lugar as instâncias conformes ou proporcionadas, 160a que costumamos tam­bém chamar de paralelas ou semelhanças físicas. 161E são as instâncias que ostentam as semelhanças e as conjunções das coisas, não nas formas menores, como as instâncias constitutivas, mas simplesmente no concreto. Constituem por isso como que os primeiros e mais baixos graus de unificação da natureza. Não constituem imediatamente, logo de início, um axioma, mas tão-somente indicam e observam certa conformidade entre os corpos. Mesmo não sendo de grande valia para o descobrimento das formas, revelam, contudo, de maneira útil, as estruturas das partes do universo, perfazendo quase a anato­mia de seus membros; por isso, dirigem-se quase pelas mãos aos axio­mas nobres e sublimes e especialmente àqueles que se relacionam com a configuração do mundo, e muito pouco servem para se chegar às naturezas ou formas simples.

Por exemplo, são instâncias conformes as seguintes: o espelho e o olho; a estrutura do ouvido e dos lugares que produzem eco. A partir dessa conformidade, deixando-se de lado a mera observação da semelhança, bastante útil para muitas coisas, é fácil recolher e estabelecer o axioma de que os órgãos dos sentidos e os corpos que compor­tam os reflexos sobre os sentidos são semelhantes por natureza. Com isso em conta, o intelecto se eleva sem dificuldade a um axioma mais alto e nobre, que é o seguinte: não há, entre os consensos ou simpatias dos corpos dotados de sensação e os inanimados e privados de sensa­ção, outra diferença que a que os primeiros possuem um corpo disposto de tal forma a poder receber o espírito animal, os segundos não. Assim, quantos sejam os consensos nos corpos inanimados outros tantos poderão ser os sentidos nos corpos dos animais, desde que para isso haja espaço no corpo animado, suficiente para o espírito animal em um membro adequadamente ordenado como um órgão idôneo. E, ainda, tantos sejam os sentidos dos animais quantos serão, sem dúvi­da, os movimentos em um corpo inanimado, desprovido do espírito animal. Mas é necessário que os movimentos nos corpos inanimados sejam em muito maior número que os dos sentidos nos corpos animados, em vista da pequenez dos órgãos dos sentidos. E disso há um exemplo bastante manifesto nas dores. Pois, existindo muitos gêneros de dores nos animais e, por assim dizer, distintos caracteres delas (uma é a dor da queimadura, outra a do frio intenso, outra a de uma pontada, outra a de uma distensão e outras do mesmo tipo), é absolutamente certo que todas ocorram em corpos inanimados, em relação ao movimento. E o caso, por exemplo, da madeira e da pedra, quando queimadas, ou quando contraídas pelo gelo, ou quando furadas, ou quando partidas, ou quando dobradas, ou quando golpeadas, e assim por diante; embora não haja sensação, devido à ausência do espírito animal.

Do mesmo modo (embora estranho para ser dito), as instâncias conformes são as raízes e os ramos da planta. De fato, todo vegetal, crescendo, aumenta de volume e tende a estender suas partes em círculo, tanto para cima quanto para baixo. Não há outra diferença entre as raízes e os ramos que o fato de as raízes estarem sob a terra, enquanto os ramos se estenderem pelo ar e ao sol. Tome-se um ramo tenro e verde e coloque-se em uma pequena porção de terra; mesmo antes de se fixar ao terreno, o que logo aparece não é um ramo mas uma raiz. E vice-versa, se se coloca terra na parte superior e por meio de uma pedra ou de uma substância dura se arruma a planta de tal forma que ela fique comprimida e não possa brotar para cima, ela sol­tará ramos no ar existente na parte de baixo.

Do mesmo modo, são instâncias conformes a resina das árvores e muitas gemas de rubi. Umas e outras, de fato, são exsudações e filtrações de sucos, no primeiro caso de árvores, no segundo, de seixos. Daí a existência em ambos do esplendor e brilho causados, sem dúvida, pela filtração delicada e perfeita. Daí procede também o fato de os pêlos dos animais não serem tão belos e de cores tão vivas como as penas das aves — pois os sucos não se filtram pela pele com a mesma delicadeza que pelos pequenos tubos das penas.

Do mesmo modo, são instâncias conformes o escroto nos ani­mais masculinos e a matriz nas fêmeas. Pois a notável estrutura que permite ao sexo se diferenciar (pelo menos os animais terrestres) não parece ser outra coisa que a diferença entre o interno e o externo; ou seja, o calor, que tem maior força no sexo masculino, impele para fora as partes genitais; ao passo que nas fêmeas tal não ocorre, por­que o calor é mais fraco e as partes genitais ficam contidas no interior.­ 162 Do mesmo modo, são instâncias conformes as barbatanas dos peixes, os pés dos quadrúpedes, os pés e as asas das aves, ao que Aristóteles acrescenta as quatros flexões que fazem as serpentes. 163Assim, na estrutura do universo o movimento dos seres vivos parece poder ser explicado com dois pares de artelhos ou membros flexíveis.

E do mesmo modo são instâncias conformes os dentes dos ani­mais terrestres e o bico das aves: em vista do que se torna claro que todos os animais perfeitos têm algo de duro na boca.

Do mesmo modo, não é absurda a semelhança e conformidade graças às quais o homem parece uma planta invertida. De fato, a raiz dos nervos e das faculdades dos animais é a cabeça; as partes seminais são as mais baixas, sem se levar em conta as extremidades das pernas e dos braços. Na planta, ao contrário, é a raiz que está no lugar da cabeça, que está situada na parte mais baixa, e as sementes na parte mais alta.

Finalmente deve ser sempre lembrado que todas as investigações diligentes e toda coleta de fatos empreendidas pela história natural devem mudar de direção e voltarem-se para um fim contrário àqueles para os quais ora são dirigidas. Até agora os homens tiveram grande curiosidade por conhecer a verdade das coisas e por explicar de modo apurado as diferenças existentes entre os animais, entre as ervas e entre os fósseis. Tais diferenças, na sua maior parte, são como que caprichos da natureza e não coisas de alguma utilidade para a ciência. Prestam-se, certamente, ao divertimento, às vezes servem à prática, mas muito pouco ou nada para a prospecção da natureza. Por isso toda obra deve voltar-se inteiramente para a investigação e a observa­ção das semelhanças e das analogias, seja no todo ou nas partes. Estas são, com efeito, as que conferem unidade à natureza e dão iní­cio à constituição da ciência.

Mas em tudo é absolutamente necessário observar-se uma grave e severa cautela, pois se aceitam como instâncias conformes e proporcionadas apenas as que denotam, como antes foi dito, semelhanças físicas, isto é, reais e substanciais e fundadas na natureza, e não as meramente casuais e especiosas, como as que exibem os escritores de magia natural (homens levianos que não mereciam ser mencionados nos assuntos graves de que tratamos), os quais, com grande vaidade e ignorância, descrevem imaginárias semelhanças e fictícia simpatia entre as coisas, que eles mesmos inventam.

Mas, deixando isso de lado, acrescentamos que nem mesmo na configuração do mundo, nos seus mais amplos espaços, devem-se negligenciar as instâncias conformes. A África e a região do Peru, com seu continente que se estende até o estreito de Magalhães, apresentam istmos e promontórios semelhantes, o que não pode ocorrer por acaso.

Também o Novo e o Velho Mundo se correspondem no fato de que ambos se alargam no sentido setentrional e, ao contrário, nos meridianos são estreitos e terminam em ponta.

Do mesmo modo, notáveis instâncias conformes são os frios intensos que reinam na chamada região média do ar, bem como os fogos fortíssimos que muitas vezes irrompem das regiões subterrâneas; duas coisas que são limites e extremas, ou seja, a natureza do frio que tende para a região do céu, e a natureza do calor, que tende para as entranhas da terra. Isso ocorre por antiperístase ou repulsão da natureza contrária.

Finalmente, é digna de nota, nos axiomas das ciências, a confor­midade das instâncias. Assim o tropo da retórica chamado Praeter Expectatum 164 está de acordo com o tropo musical chamado Declinatio Cadentiae. 165 Da mesma maneira, o postulado matemático de que “os ângulos iguais a um terceiro são iguais entre si” é conforme à estrutura lógica do silogismo, que une as coisas que concordam ou convêm a um termo médio. É de muita utilidade, em numerosas investigações, a sagacidade no descobrir e no indagar as conformidades e as semelhanças físicas.