NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismo XXVI
 

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em quinto lugar as instâncias constitutivas, 151 a que também costumamos chamar de manipulares. 152 São as que se constituem numa espécie da natureza investigada, à maneira de forma menor. Com efeito, como as formas legítimas (que são sempre conversíveis nas naturezas investigadas) são muito latentes e não são facilmente descobertas, a vacilação e a fragilidade do intelecto humano requerem que as formas particulares, que reúnem alguns punhados de instâncias, mas não todas em uma noção comum, não sejam negligenciadas, antes notadas com toda diligência. Pois tudo o que serve para conferir unidade à natureza, ainda que de modo imperfeito, abre caminho à descoberta das formas. Portanto, as instâncias que são úteis a esse propósito não podem ser desprezadas quanto à sua força e têm até certas prerrogativas.

Mas o seu emprego deve ser feito com diligente cautela, para se evitar que o intelecto humano, depois de ter descoberto muitas dessas formas particulares e de ter estabelecido as partições ou divisões da natureza investigada, acabe se contentando apenas com isso e não prossiga na investigação legítima da forma grande; 153mas acabe supondo que a natureza, na sua própria raiz, é múltipla e dividida, e descure e suponha a ulterior unidade da natureza como uma sutileza vã, que conduz a meras abstrações.

Estabeleça-se, por exemplo, que a natureza a ser investigada seja a memória ou aquilo que excita e ajuda a memória. As instâncias constitutivas são a ordem ou a distribuição que manifestamente aju­dam a memória, como também é o caso dos tópicos 154 da memória artificial, 155 que podem ser lugares, no seu significado verdadeiro e próprio, como a porta, o ângulo, a janela e coisas parecidas, e podem ser pessoas, familiares e conhecidas; podem ser, ainda, outras coisas (desde que dispostas em uma determinada ordem), como animais ou ervas; podem ser, ainda, palavras, letras, caracteres, personagens históricas, etc. Para cada caso devem ser verificados os que são mais ou menos aptos e cômodos. Tais tópicos ajudam significativamente a mente e predispõem-na em relação a forças naturais. Por essa razão os versos permanecem e prendem mais facilmente a memória que a prosa. O conjunto ou manípulo dessas três instâncias, ou seja, a ordem, os tópicos da memória artificial e os versos, constitui uma só espécie de ajuda à memória de tal espécie que pode chamar-se justamente de corte do infinito. 156Com efeito, quando se procura recordar alguma coisa ou buscá-la na memória, se não se conta com nenhuma prenoção ou percepção do que se busca, a procura se cum­pre de maneira errante, indo-se aqui e ali, e assim quase ao infinito. Mas, se se dispõe de alguma prenoção segura, subitamente é interrompido o vagar ao infinito e o discurso da memória se torna mais próximo. Pois bem, na três instâncias supracitadas a prenoção é evidente e certa: na primeira, trata-se de algo que retoma certa ordem; na segunda, trata-se de uma imagem que tem alguma relação ou conveniência com os tópicos estabelecidos; na terceira, trata-se de palavras que formam um verso. E assim é que se interrompe o vagar ao infinito. Outras instâncias nos oferecerão a seguinte segunda espé­cie: tudo o que conduz o que é do intelecto à impressão dos sentidos 157 ajuda a memória (conforme uma regra muito seguida pela memória artificial). Outras instâncias oferecerão esta terceira espécie: tudo o que provoca uma impressão, sob um intenso afeto, 158 ou seja, o que infunde medo, admiração, vergonha, deleite, ajuda a memória. Outras instâncias oferecerão esta quarta espécie: tudo o que se imprime na mente pura ou antes de estar ocupada ou despreocupada de algo, como o que se aprende na infância ou o que se pensa antes do sono e ainda o que acontece pela primeira vez, melhor se fixa na memória. Outras instâncias oferecerão esta quinta espécie: o grande número de circunstâncias e de ocasiões ajuda a memória como o há­bito de escrever-se por partes descontínuas e a leitura e recitação em voz alta. Outras instâncias, finalmente, oferecerão esta sexta espécie: tudo o que se espera e que excita a atenção grava-se na mente muito mais que o que transcorre sem preocupação. Por isso, se se ler um escrito vinte vezes, não será aprendido de memória com a facilidade resultante de dez leituras, nas quais se procure dizer o texto de memória, apenas retomando o escrito quando aquela falhar.

Assim, seis são as formas menores de ajuda à memória: a interrupção ou corte do vagar ao infinito, a redução do intelectual ao sensível, a impressão recebida sob intensa vibração de ânimo, a impressão feita em uma mente pura, a multidão de ocasiões, a expectativa prévia.

Da mesma maneira, tome-se, por exemplo, para a investigação, a natureza do gosto ou da degustação. As instâncias que se seguem são constitutivas: os indivíduos que por natureza são destituídos do olfato são também providos do gosto, assim não distinguem o alimento rançoso ou podre, como também não distinguem o cheiro do alho ou da rosa e coisas semelhantes. Mesmo os indivíduos que ficam com o nariz obstruído por catarro não distinguem nem percebem o podre, o rançoso ou o odor da água de rosas aspergida sobre algo. Porém, se se provocar a desobstrução do nariz com violento sopro, no mesmo instante terão a percepção do mau cheiro ou do odor de qualquer coisa que tenham na boca. Estas instâncias darão e constituirão esta espécie ou parte do gosto, tornando claro que o sentido do gosto nada mais e, em parte, que um olfato interno que passa e desce, dos canais superiores do nariz à boca, e ao paladar, e, em contrapartida, o salgado, o doce, o acre, o ácido, o seco, o amargo e semelhantes, tais sabores, todos eles são totalmente percebidos pelos que são desprovidos do olfato ou o tenham obstruído. Assim, torna-se evidente que o sentido do gosto é algo composto do olfato interno e de uma espécie de tato delicado, do qual não cabe tratar aqui.

Ainda, do mesmo modo, tome-se, por exemplo, a investigação da natureza da comunicação sem mescla de substância. A instância das luzes oferecerá ou constituirá uma espécie de comunicação; o calor e o magneto uma outra. Com efeito, a comunicação das luzes é momentânea e, subitamente, se desvanece quando se tolda sua fonte de irradiação. Por seu turno, o calor e a força magnética depois de transmitidos, ou melhor, excitados em corpo, aderem a ele e nele permanecem por algum tempo, mesmo na falta do objeto que originou o movimento.

Em suma, é sobremaneira grande a prerrogativa das instâncias constitutivas, por serem de grandíssima valia no estabelecimento das definições (especialmente particulares) e nas divisões ou partições da natureza, e a cujo respeito disse com acerto Platão “que se deve considerar como um Deus o que bem souber definir e dividir”. 159