NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismo XIV
 

O quanto é pobre a nossa história natural, qualquer um pode facilmente perceber pelo fato de que nas tábuas precedentes inserimos simples tradições e relatos de terceiros (mas sempre acrescentando e pondo em dúvida mesmo a mais segura autoridade), em lugar da história provada e das instâncias certas. E ainda tivemos que nos servir muitas vezes de locuções como a seguinte: “É necessário fazer o experimento”, “é necessário comprová-lo com ulterior experimento”.

XV

Objetivo e oficio destas três tábuas é o de fazer uma citação de instância perante o intelecto 103 (como usualmente as designamos). Uma vez feita a citação, é necessário passar-se à prática da própria indução. É necessário, com efeito, descobrir-se, considerando atentamente as tábuas e cada uma das instâncias, uma natureza tal que sem­pre esteja presente quando está presente a natureza dada, ausente quando aquela está ausente, e capaz de crescer e decrescer acompa­nhando-a; e seja, como já se disse antes, uma limitação da natureza mais comum. 104 Assim, se a mente procura desde o início descobrir essa natureza afirmativamente, como ocorre quando abandonada a si mesma, ocorrem fantasias, meras opiniões e noções mal determina­das, e axiomas carentes de contínuas correções, se não se quiser, segundo o costume das escolas, combater em defesa de falsidade. 105 Mas certamente os resultados serão melhores ou piores conforme a capacidade e a força do intelecto que opera. Contudo, só a Deus, cria­dor e introdutor das formas, 106 ou talvez aos anjos e às inteligências celestes compete a faculdade de apreender as formas imediatamente por via afirmativa, e desde o início da contemplação. Certamente essa faculdade é superior ao homem, ao qual é concedida somente a via negativa de procedimento, e só depois no fim, depois de um processo completo de exclusões, pode passar às afirmações. 1O7

XVI

Em vista disso, é necessário analisar e decompor, de forma com­pleta, a natureza, não certamente pelo fogo, mas com a mente, que é uma espécie de centelha divina. 108 A primeira obra da verdadeira indução, para a investigação das formas, é a rejeição ou exclusão das naturezas singulares que não são encontradas em nenhuma instância em que está presente a natureza dada, ou encontram-se em qualquer instância em cuja natureza dada não está presente, ou cresçam em qualquer instância em cuja natureza dada decresce, ou decrescem quando a natureza dada cresce. Depois de ter feito as convenientes rejeições ou exclusões na forma devida, restará no fundo, como resí­duo donde se evolaram como fumaça as opiniões, a forma afirmativa, sólida, verdadeira e bem determinada. Tudo isso é breve para ser dito, mas é conseguido depois de muitas tentativas. De nossa parte, acredi­tamos nada negligenciar do que é necessário ao nosso propósito.

XVII

Devemos, no entanto, prevenir sem demora os homens de que se acautelem de confundir as formas, de que falamos, com as que as suas especulações e reflexões tratam habitualmente, 109 o que pode ocorrer em vista da importância que reconhecem às formas.

Em primeiro lugar, e por esse motivo, não nos ocuparemos das formas compostas, 110 que são, como já se disse, combinações das naturezas simples conforme o curso comum do universo, como a do leão, da águia, da rosa, do ouro, e de muitas outras. Elas serão devidamente consideradas quando nos ocuparmos dos processos latentes, dos esquematismos latentes e de sua descoberta, na medida em que se encontram nas chamadas substâncias ou naturezas concretas.

De outra parte, mesmo em relação às naturezas simples, não se devem confundir as formas de que tratamos com as idéias abstratas, ou seja, com as idéias mal ou não determinadas na matéria. 111 Com efeito, quando falamos das formas, mais não entendemos que aquelas leis e determinações do ato puro, que ordenam e constituem toda e qualquer natureza simples, como o calor, a luz, o peso, em qualquer tipo de matéria ou objeto a elas suscetível. Falar em forma do calor ou da luz é o mesmo que falar da lei do calor ou da luz; 112 não nosafastamos ou abstraímos do aspecto operativo das coisas. Assim, por exemplo, quando falamos na investigação da forma do calor: rechace­-se a tenuidade ou a tenuidade não é a forma do calor; é como se disséssemos: o homem pode introduzir o calor em um corpo denso ou o homem pode retirar ou colocar à parte o calor de um corpo tênue.

Por conseguinte, se as nossas formas parecerem a alguém com algo de abstrato, pelo fato de misturarem e combinarem coisas hete­rogêneas (pois parecem, sem dúvida, heterogêneos o calor dos corpos celestes e do fogo; o vermelho fixo da rosa ou similares, e o que apa­rece no arco-íris ou nos sais da opala ou do diamante; a morte por submersão e a por cremação, a por um golpe de espada e a por apo­plexia e a por atrofia; e isso apesar de todos esses caracteres perten­cerem à natureza do calor, do vermelho e da morte), reconheça ele que seu intelecto está inteiramente preso e estacado pelo hábito, pelas coisas como um todo 113e pelas opiniões.

Está fora de dúvida que tais coisas, ainda que heterogêneas e diversas entre si, coincidem na forma ou lei que ordena o calor, o ver­melho ou a morte; e que ao homem não é dado o poder de se emanci­par e liberar-se do curso da natureza e aventurar-se a novas causas eficientes e a novas de operar, afora da revelação e da descoberta de tais formas. Porém, depois de haver considerado a natureza em sua unidade, que é o principal, depois no seu devido lugar, tratar-se-á das divisões e ramificações da natureza, tanto das ordinárias quanto das internas e mais verdadeiras.