NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismos
 

XIII

Em terceiro lugar, é necessário fazer-se citações perante o inte­lecto 85 das instâncias cuja natureza, quando investigada, está pre­sente em mais ou em menos, seja depois de ter feito comparação do aumento e da diminuição em um mesmo objeto, seja depois de ter feito comparação em objetos diversos. Pois sendo a forma de uma coisa a coisa em si mesma 86 e posto que a coisa difere da forma tanto quanto difere a aparência da existência, o exterior do interior e o rela­tivo ao homem do relativo ao universo, 87 segue-se necessariamente que se não pode tomar uma natureza pela verdadeira forma, a não ser que sempre decresça quando decresce a referida natureza e, igual­mente, sempre aumente quando aumenta a natureza. A esta tábua denominamos Tábua de Graus ou de Comparação.

 

Tábua de Graus ou de Comparação do Calor

Em primeiro lugar, trataremos dos corpos que não apresentam qualquer calor ao tato, mas que parecem possuir um calor potencial ou uma disposição ou preparação para o calor. A seguir, considera­remos os corpos que são quentes em ato, ou seja, ao tato, sua intensi­dade e seus graus.

1. Não há entre os palpáveis e sólidos nenhum corpo que seja naturalmente quente. Não há uma única pedra, um único metal, nem enxofre, nem fóssil, nem madeira, nem água, nem cadáver dos ani­mais, que se apresentem com calor. As águas quentes dos balneários parecem aquecer-se por acidente, ou por alguma chama ou fogo subterrâneo, como os que vomitam o Etna e muitas outras monta­nhas, ou por conflito de corpos, como ocorre com o calor produzido na dissolução do ferro e do estanho. Dessa forma, não há qualquer espécie de calor nos corpos inanimados perceptível ao tato do homem, e esses corpos se diferenciam entre si pelos graus (de frio) de frigidez. Com efeito, não são iguais o frio da madeira e o do metal. Mas esse assunto pertence à Tábua de Graus do Frio.

2. Todavia, encontram-se muitos corpos inanimados com calor potencial e com predisposição à chama, como é o caso do enxofre, da nafta e do petróleo. 88

3. O que antes estava quente, como o esterco eqüino, ou a cal, ou talvez as cinzas, ou a fuligem provocados pelo fogo, conserva latentes resíduos do calor anterior. Por isso se fazem certas destila­ções e separações de corpos, enterrando-os em esterco eqüino, e o calor da cal pode ser provocado com a aspersão de água. 89

4. Entre os vegetais não há qualquer planta ou parte (como resi­nas ou medula) que se mostre quente ao tato humano. Mas, como já foi antes dito, 90 as ervas verdes quando abafadas se aquecem, e pare­cem quentes ao tato interno, isto é, ao paladar e ao estômago e mesmo a partes externas, depois de algum tempo, como ocorre com emplastros e ungüentos vegetais que podem parecer quentes ou frios.

5. Não há qualquer calor nas partes separadas dos animais mor­tos perceptível pelo tato humano. Nem mesmo o esterco eqüino, se não for coberto e abafado, conserva o calor. Contudo, todo esterco parece possuir potencialmente calor, como se observa nas marcas que ficam pelos campos. E, igualmente, os cadáveres dos animais pare­cem possuir também um calor latente e potencial, e isso a tal ponto que nos cemitérios em que todos os dias se fazem sepultamentos a terra conserva um calor oculto, que consome os cadáveres recentes muito mais rapidamente que na terra comum. Segundo se diz, os orientais usam um certo tipo de tecido tênue e suave, feito de plumas de aves, que por qualidades próprias dissolve e derrete a manteiga. quando por ele levemente envolvida.

6. Tudo o que aduba os campos, como todos os tipos de esterco, a greda, a areia do mar, o sal e coisas semelhantes, possui alguma disposição ao calor.

7. Todo processo de putrefação possui traços de um tênue calor. ainda que não alcance ser percebido pelo tato. Nem mesmo aquelas coisas, que na putrefação se transformam em animálculos, 91 como a carne e o queijo, chegam a ser perceptíveis ao tato. Nem tampouco a madeira podre, que brilha à noite, parece quente ao tato. Mas, às vezes, o calor das coisas em putrefação se faz sentir por meio de odo­res fortes e repugnantes.

8. Assim, o primeiro grau de calor, entre as coisas perceptíveis ao tato humano, parece ser o calor animal, que por sua vez se desdo­bra em muitos graus. No seu grau mais baixo, como no caso dos inse­tos, é muito mal percebido pelo tato, O seu grau mais alto é atingido pelo calor solar, nas zonas e nos climas tropicais, mas não chega a ser tão forte a ponto de não ser tolerado pela mão. Contudo, conta-se que Constâncio 92 e alguns outros tinham certo tipo de temperamento e hábitos físicos de tal modo secos que, atacados por febre agudíssima, ficaram quentes a ponto de parecerem queimar as mãos de quem deles se aproximasse.

9. Os animais aumentam o próprio calor pelo movimento e pelos exercícios físicos, pelo vinho, pelos banquetes, pelo sexo, pelas febres ardentes e pela dor.

10. Os animais, durante os acessos de febres intermitentes, inicialmente são acometidos de frio e tremores, mas depois adquirem um calor muito intenso. E o mesmo acontece no início das febres ardentes e nas febres pestilentas.

11. Façam-se ulteriores investigações sobre o calor em animais diversos, como peixes, quadrúpedes, serpentes, aves e também em suas diversas espécies, como o leão, o abutre, o homem. Pois, con­forme a opinião vulgar, a parte interna dos peixes é pouco quente, as aves são mais quentes, especialmente as pombas, os falcões e as avestruzes.

12. Façam-se ainda investigações ulteriores acerca dos diversos graus de calor nas partes e nos membros do mesmo animal. Com efei­to, o leite, o sangue, o esperma, os ovos, são moderadamente quentes e menos quentes que as partes externas de um animal em agitação e movimento. Ainda não foi feita uma investigação do mesmo teor para se saber o grau de calor do cérebro e do estômago, do coração, etc.

13. Todos os animais, no inverno e nas épocas frias, são frios nas partes externas, mas nas partes internas crê-se encerrarem mais calor.

14. O calor dos corpos celestes, mesmo na região mais quente e durante a estação e o dia mais quente, não atinge nunca um grau tal que chegue a incendiar e queimar a madeira bem seca ou a palha ou um pedaço de trapo, a não ser que seja auxiliado por espelhos ustó­rios. Mas pode sempre provocar vapores das coisas úmidas.

15. Segundo a tradição dos astrônomos, algumas estrelas são mais quentes que outras. Dentre os planetas, depois do sol, Marte é o mais quente, depois vem Júpiter e depois Vênus. Estabelecem-se como os mais frios primeiro a Lua e, mais que todos, Saturno. Entre as estrelas fixas estabelece-se como a mais quente Sírio, vindo depois Coração de Leão, e a seguir Canícula, 93 etc.

16. O sol mais aquece quanto mais se inclina na perpendicular ou no zênite; o que também é de se crer verdadeiro para os demais planetas, em relação ao seu próprio calor. Júpiter, por exemplo, aque­ce mais quando se encontra sob Câncer ou Leão que quando sob Capricórnio ou Aquário.

17. Tudo leva a crer que o sol e os outros planetas aquecem mais quando atingem o seu perigeu, pela maior proximidade da Terra, que quando do seu apogeu. 94 E se acontecer que, em alguma região, o sol esteja ao mesmo tempo no perigeu e mais próximo à perpendicular, necessariamente será aí mais quente que na região em que o sol também esteja em seu perigeu, mas em posição oblíqua. Por isso deve ser notada a situação relativa de altitude dos planetas, nas diversas regiões, em relação à sua posição vertical ou obliqua.

18. Supõe-se ainda que o sol, como os outros planetas, aqueça mais quando se aproxima das estrelas fixas maiores. Assim, quando o sol se encontra em Leão, mais próximo ao Coração de Leão, à Cauda de Leão, à Espiga da Virgem, a Sírio, à Canícula, aquece mais que quando se encontra em Câncer, onde, contudo, está mais na posição perpendicular. E é para se crer que as partes do céu infundem um calor tanto maior (ainda que não perceptível ao tato) quanto mais são ornadas de estrelas e especialmente das estrelas maiores.

19. Em suma, o calor dos corpos celestes pode ser aumentado em vista de três fatores, ou seja, pela posição perpendicular, pela proximidade ao perigeu e pela conjunção ou combinação das estrelas.

20. Em verdade, há uma grande diferença entre o calor dos ani­mais e dos raios dos corpos celestes, tal como chegam a nós, e o da mais tênue chama, e mais ainda o dos corpos incandescentes, o dos líquidos e do próprio ar comum aquecido pelo fogo. De fato, a chama do espírito do vinho, ainda que rarefeita e difusa, pode incendiar a palha, um pano ou o papel. E tal nunca ocorre com o calor animal ou solar, sem o emprego de espelhos ustórios.

21. Contudo, as chamas e as coisas incandescentes têm calor e múltiplos graus, tanto em intensidade quanto em tenuidade. Mas sobre o fato ainda não foi feita uma indagação diligente e, por isso, só é possível tratá-los de passagem. Entre as várias espécies de chamas, a do espírito do vinho parece ser a mais débil, a não ser que as cha­mas ou a luminescência produzidas pelo suor animal sejam ainda mais débeis. A seguir, segundo nos parece, seria a chama dos vegetais leves e porosos, como a palha, o junco e as folhas secas, cujas chamas não estão muito longe das produzidas por pêlos ou penas. A estas seguem-se as chamas das madeiras que não possuem resinas ou pez. Deve ser observado, porém, que a chama proveniente de madeiras delgadas, que comumente são juntadas em feixes, é mais fraca que a produzida por troncos de árvores e por raízes. E isso pode ser facil­mente experimentado nos fornos que fundem ferro, onde o fogo pro­duzido por feixes e ramos de árvores não tem utilidade. A seguir, assim pensamos, vem a chama produzida por óleo, sebo, cera e por outras substâncias oleosas e graxas, que não possuem muita força. Contudo, o calor mais forte é encontrado no pez e na resina; mais forte ainda no enxofre e na cânfora, na nafta, no petróleo, bem como nos sais, uma vez eliminada a sua matéria crua, e em seus compostos, como a pólvora, o fogo grego (conhecido como fogo selvagem) 95 e seus diferentes tipos, todos portadores de um calor obstinado, que não se extingue facilmente com água.

22. Cremos também que a chama produzida por certos metais imperfeitos é sobremaneira forte e aguda. Mas sobre tudo isso são necessárias investigações ulteriores.

23. A chama dos raios 96 parece superar todas as demais em potência, a ponto de chegar a fundir o ferro perfeito, reduzindo-o a gotas, o que os outros tipos de chamas não conseguem fazer.

24. Há nos corpos incandescentes diversos graus de calor, que ainda não foram diligentemente investigados, O calor mais fraco pen­samos ser o do pano queimado, usado comumente para acender o fogo e também o proveniente das madeiras esponjosas e das cordas secas que servem de rastilho para disparar a artilharia. A seguir vem o carvão vegetal ou mineral, ou ainda o dos tijolos queimados e coi­sas semelhantes. Cremos que, de todos os corpos incandescentes, os mais quentes são os metais, quando acesos, caso do ferro, do cobre, etc. Também esse caso deve ser investigado ulteriormente.

25. Entre os corpos incandescentes, alguns há muito mais quen­tes que certas chamas. De fato, é muito mais quente o ferro em brasa que a chama do espírito do vinho.

26. Entre os corpos não incandescentes, mas aquecidos pelo fogo, como a água fervente e o ar encerrado nos fomos, há alguns que superam em calor, e em muito, corpos incandescentes e mesmo inflamados.

27. O movimento aumenta o calor, como se pode ver pelos foles e pelo sopro; por isso os metais mais duros não se fundem ou derre­tem com fogo morto e parado, sendo necessário excitá-lo com o maçarico. 97

28. Faça-se com espelhos ustórios o experimento seguinte, con­forme recordamos: 98 coloca-se o espelho à distância, por exemplo, de um palmo, de um objeto combustível. Não queimará ou inflamará tanto o objeto quanto se se colocar o espelho a uma distância de, por exemplo, meio palmo e deslocá-lo gradual e lentamente até a distân­cia inicial de um palmo. O cone de convergência e o feixe dos raios são os mesmos e é o próprio movimento que aumenta o efeito do calor.

29. Acredita-se que os incêndios, quando acompanhados de for­tes ventos, mais progridem contra que a favor do vento. Isso porque as chamas se movem mais rapidamente quando o vento as rechaça que quando as impele.

30. A chama não brilha, nem se produz, a menos que alcance algo de côncavo em que se possa movimentar e dançar; exceção feita das chamas detonantes da pólvora e análogas, caso em que a compressão e o aprisionamento da chama aumentam o seu furor.

31. A bigorna se torna muito quente ante os golpes do malho. Se a bigorna fosse feita de um metal mais mole, acreditamos que chega­ria a ficar rubra, por força dos duros e repetidos golpes do malho. Disso se deve fazer mais experimentos.

32. Nos corpos incandescentes que são porosos, de tal forma que haja espaço para o movimento do fogo, se o seu movimento for coibido por forte compressão, logo o fogo se apagará. Assim, quando um pano queimado, o pavio aceso de uma vela ou lâmpada, um peda­ço de carvão vegetal ou uma brasa, são abafados ou pisados, ou algo semelhante, interrompe-se subitamente a ação do fogo.

33. A aproximação de um corpo quente de outro aumenta o calor na própria razão dessa proximidade. Também é o que ocorre com a luz, pois quanto mais próximo da luz é um objeto mais visível ele se torna.

34. A união de calores de origens diversas aumenta o calor, desde que se não misturem com corpos. Com efeito, um grande fogo e um fogo menor ateados no mesmo local aumentam igualmente o calor tanto de um quanto de outro; mas água morna misturada à água fervente esfria-a.

35. A permanência do calor em um corpo aumenta o calor. Pois o calor que constantemente circula e emana mistura-se ao calor pree­xistente e assim multiplica o calor. Por isso, o fogo aceso durante meia hora, em um cômodo, não o aquece da mesma forma que um que dura uma hora inteira. Mas não se dá o mesmo com a luz, já que uma lâmpada ou uma vela acesa não ilumina mais determinado lugar durante um dia inteiro que logo no inicio.

36. A irritação produzida por um ambiente frio aumenta o calor, 99 como se observa no fogo aceso durante uma forte nevasca. Supomos que tal sucede não apenas devido à concentração e contra­ção do calor, que é uma espécie de união, mas devido à exasperação, como ocorre com o ar muito comprimido ou um bastão violenta­mente desviado de sua posição natural anterior, que não retornam ao mesmo ponto em que estavam, mas muito além dele, em uma posição oposta. Faça-se um diligente experimento com um bastão, ou com algo semelhante, colocando-o no fogo, para verificar se não se conso­me mais rapidamente nas extremidades que no meio da chama.

37. Há grande diversidade de graus de suscetibilidade ao calor. Sobre isso note-se, em primeiro lugar, que o calor, mesmo pequeno e fraco, sempre acaba por afetar e aquecer um pouco até os corpos a ele mesmo receptivos. Assim é que o mesmo calor da mão que aquece um pouco uma bola de chumbo ou de outro metal qualquer, por ela segu­rada por algum tempo, facilmente se transmite e se provoca o calor, sem que haja aparência de modificação nos corpos.

38. De todos os corpos conhecidos, o ar é o que mais facilmente recebe e transmite o calor, o que é bem visível pelos termômetros, 100 cuja confecção é a seguinte: toma-se um tubo de vidro delgado e oblongo. Submerge-se o tubo com a boca para baixo em outro reci­piente de vidro, com água, de modo que o seu orifício alcance o seu fundo, apoiando-se o seu gargalo na sua borda. Para mantê-lo nessa posição, coloca-se um pouco de cera nas bordas internas do reci­piente, sem, contudo, obstrui-lo, evitando-se, dessa forma, que falte o ar que é indispensável ao movimento sumamente sutil e delicado de que vamos falar.

Deve-se, porém, aquecer ao fogo, antes de submergi-lo, a parte superior do tubo. Depois de colocado o vidro, na forma indicada, o ar que foi aquecido vai-se pouco a pouco contraindo, durante o tempo necessário para a completa eliminação do calor adquirido do exterior, até alcançar as mesmas dimensões do ar circunstante no momento em que foi submergido na água, o que provocará a subida da água, na mesma proporção. Deve-se ainda fixar ao longo do tubo uma tira de papel comprida e estreita e graduada, conforme se queira. Verificar-se-á então que, quando a temperatura do dia é fria, o ar se contrai em menor espaço, e quando é quente, ele se expande. E isso será perce­bido através da água que sobe, quando o ar se contrai, ou desce, quando o ar se dilata. A sensibilidade do ar, tanto para o frio quanto para o calor, é sutil e delicada a ponto de superar de muito a capaci­dade do tato. Pois um raio de sol ou o calor da respiração ou o calor da mão, dirigido para a extremidade do tubo, faz baixar a água de modo manifesto. Pensamos, todavia, que o espírito dos animais pos­sui uma sensibilidade ainda mais sutil, em relação ao calor ou ao frio, desde que não seja impedida ou embotada pela massa do corpo. 101

39. Depois do ar, acreditamos que os corpos mais sensíveis ao calor sejam os que foram há pouco modificados e contraídos pelo frio, como a neve e o gelo, pois, com apenas uma leve tepidez come­çam a dissolver e liqüefazer-se. A seguir, vem o mercúrio. Em segui­da, os corpos graxos, como o óleo, a manteiga e similares; depois a madeira, depois a água e, por fim, as pedras e os metais, que se não aquecem com facilidade, especialmente na parte interior. Mas estes, depois de contraído o calor, conservam-no por muito tempo, como é o caso do tijolo, da pedra, ou do ferro incandescentes colocados ou mergulhados na água fria, que retêm o calor durante perto de um quarto de hora, a ponto de não poderem ser tocados.

40. Quanto menor é a massa de um corpo tanto mais rapidamen­te se aquece pela aproximação de um corpo quente; o que demonstra que todo calor conhecido é infenso aos corpos tangíveis.

41. O calor, em relação ao tato e aos demais sentidos humanos, é coisa variável e relativa. Por isso a água tépida, se a mão que a toca está fria, parece quente; se a mão está quente, parece fria. 102