NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I - AFORISMOS

Aforismos 86-90
 

LXXXVI

A admiração dos homens pelas doutrinas e artes, por si mesma bastante singela e mesmo pueril, foi incrementada pela astúcia e pelos artifícios dos que se ocuparam das ciências e as difundiram. Pois, levados pela ambição e pela afetação, apresentam-nas de tal modo ordenadas e como que mascaradas que, ao olhar dos homens, pare­ciam perfeitas em suas partes e já completamente acabadas. Com efeito, se se consideram as divisões e o método, elas parecem compreender e esgotar tudo o que possa pertencer a um assunto. E, ainda que as partes estejam mal concluídas, como cápsulas ocas, ao intelecto vulgar oferecem a forma e o ordenamento da ciência perfeita.

Mas os primeiros e mais antigos investigadores da verdade, com mais fidelidade e sucesso, costumavam consignar em forma de aforismos, 56 isto e, de breves sentenças avulsas e não vinculadas por qualquer artificio metodológico, o saber que recolhiam da observação das coisas e que pretendiam preservar para uso posterior, e nunca simularam, nem professaram haver-se apoderado de toda a arte. Por isso, visto ser esse o estado de coisas, não é de se admirar que os ho­mens não inquiram de questões tidas há tempo como resolvidas e elucidadas em todas as suas peculiaridades.

LXXXVII

Além disso, a sabedoria antiga foi tornada mais respeitável e digna de fé, graças à vaidade e à leviandade dos que propuseram coi­sas novas, principalmente na parte ativa e operativa da filosofia natu­ral. Com efeito, não têm faltado espíritos presumidos e fantasiosos a cumularem, em parte por credulidade, em parte por impostura, o gê­nero humano de processos tais como: prolongamento da vida, retar­damento da velhice, eliminação da dor, reparação de defeitos físicos, encantamento dos sentidos, suspensão e excitação dos sentimentos, iluminação e exaltação das faculdades intelectuais, transmutação das substâncias, aumento e multiplicação dos movimentos, compressão e rarefação do ar, desvio e promoção das influências dos astros, adivi­nhação do futuro, reprodução do passado, revelação do oculto, e alar­de e promessa de muitas outras maravilhas semelhantes. Portanto, não estaria longe da verdade, acerca de espíritos tão pródigos, um juízo como o seguinte: há tanta distância, em matéria filosófica, entre essas fantasias e as artes verdadeiras, quanto em história, entre as ges­tas de Júlio César ou de Alexandre Magno e as de Amadis de Gaula ou de Artur da Bretanha. 57 É notório, pois, que aqueles ilustres gene­rais realizaram muito mais que as façanhas atribuídas a esses heróis espectrais, em forma de ações reais, nem um pouco fabulosas ou prodigiosas. Não obstante, não seria justo negar-se fé à memória do verdadeiro porque tenha sido lesado e difamado pela fábula. Mas, tampouco, se deve estranhar que tais impostores, quando tentaram empresas semelhantes, tenham infligido grande prejuízo às novas proposições, principalmente às relacionadas com operações práticas. O excesso de vaidade e de fastígio acabou por destruir as disposições magnânimas para tais cometimentos.

LXXXVIII

A pusilanimidade, a estreiteza e a superficialidade com que a indústria humana se impõe tarefas causaram à ciência ainda maiores danos e com a agravante dessa pusilanimidade não se apresentar sem pompa e arrogância. Destaca-se, em primeiro lugar, aquela cautela já familiar a todas as artes, que consiste em atribuírem os autores à natureza a ineficiência de sua própria arte, e o que essa arte não alcança, em seu nome, declararem ser “por natureza” impossível. Em conseqüência, jamais poderá ser condenada uma arte que a si mesma julga. Também a filosofia que hoje se professa abriga certas asserções e conclusões que, consideradas diligentemente, parecem compelir os homens à convicção de que não se deve esperar da arte e da indústria humana nada de árduo, nada que seja imperioso ou válido acerca da natureza, como já se disse antes 58 a respeito da heterogeneidade do calor do sol e do fogo e sobre a combinação dos corpos.

Tudo isso, bem observado, procura maliciosamente limitar o poder humano e produzir um calculado e artificioso desânimo que não só vem perturbar os augúrios da esperança, como amortecer todos os estímulos e nervos da indústria humana e também interceptar todas as oportunidades de experiência. E, ao mesmo tempo, tudo fazem por parecer perfeita a própria arte, entregando-se a uma glória vã e desvairada que consiste em pensar que o que até o momento não foi descoberto ou compreendido não poderá tampouco ser descoberto ou compreendido no futuro.

Alguém que se acerque das coisas com intento de descobrir algo novo propor-se-á e limitasse-a a um único invento, e não mais. Por exemplo: a natureza do ímã, o fluxo e o refluxo do mar, o sistema celeste e coisas desse gênero, que parecem esconder algum segredo, e coisas que, até agora, tenham sido tratadas com pouco êxito. Mas é indício de grande imperícia o fato de se perscrutar a natureza de uma coisa na própria coisa, pois a mesma natureza 59 que em alguns obje­tos está latente e oculta, em outros é manifesta e quase palpável, num caso provocando admiração, em outro, nem sequer chamando a aten­ção. É o que ocorre com a natureza da consistência, que não é notada na madeira ou na pedra e que é designada genericamente com o nome de solidez, sem se indagar acerca da sua tendência de se furtar a qual­quer separação ou solução de continuidade. De outra parte, esse mesmo fato nas bolhas de água parece mais sutil e engenhoso. As bo­lhas se constituem de películas curiosamente dispostas em forma hemisférica de tal modo que, por um momento, evita-se a solução de continuidade.

De fato, há casos em que as naturezas das coisas estão latentes, enquanto em outros são manifestas e comuns, o que jamais será evi­dente se os experimentos e as observações dos homens se restringirem apenas às primeiras.

Em geral, o vulgo tem por novos inventos, ou quando se aperfei­çoa algo já antes inventado ou este se orna com mais elegância, ou quando se juntam ou combinam partes dele antes separadas, ou quan­do se torna de uso mais cômodo, ou, ainda, se alcança um resultado de maior ou menor massa ou volume que o costume, e coisas do gênero.

Por isso não é de se admirar que não saiam à luz inventos mais nobres e dignos do gênero humano, uma vez que os homens se con­tentam e se satisfazem com empresas tão limitadas e pueris. E supõem terem buscado e alcançado algo de grandioso.

LXXXIX

Não se deve esquecer de que, em todas as épocas, a filosofia se tem defrontado com um adversário molesto e difícil na superstição e no zelo cego e descomedido da religião. 60 A propósito veja-se como, entre os gregos, foram condenados por impiedade os que, pela primeira vez, ousaram proclamar aos ouvidos não afeitos dos homens as causas naturais do raio e das tempestades. 61 Não foram melhor acolhidos, por alguns dos antigos padres da religião cristã, os que susten­taram, com demonstrações certíssimas — que não seriam hoje contraditas por nenhuma mente sensata —, que a Terra era redonda e que, em conseqüência, existiam antípodas. 62

Além disso, nas atuais circunstancias, as condições para a ciência natural se tornaram mais árduas e perigosas devido às sumas e aos métodos da teologia dos escolásticos. Estes, como lhes cumpria, ordenaram sistematicamente a teologia, e lhe conferiram a forma de uma arte, e combinaram, com o corpo da religião, a contenciosa e espinhosa filosofia de Aristóteles, mais que o conveniente.

Ao mesmo resultado, mas por diverso caminho, conduzem as especulações dos que procuraram deduzir a verdade da religião cristã dos princípios dos filósofos e confirmá-la com sua autoridade, cele­brando com grande pompa e solenidade, como legítimo, o consórcio da fé com a razão e lisonjeiam, assim, o ânimo dos homens com a grata variedade das coisas, enquanto, com disparidade de condições, mesclam o humano e o divino. Mas essas combinações de teologia e filosofia apenas compreendem o que é admitido pela filosofia corren­te. As coisas novas, mesmo levando a uma mudança para melhor, são não só repelidas, como exterminadas.

Finalmente, constatar-se-á que, mercê da infâmia de alguns teó­logos, foi quase que totalmente barrado o acesso à filosofia, mesmo depurada. Alguns, em sua simplicidade, temem que a investigação mais profunda da natureza avance além dos limites permitidos pela sua sobriedade, transpondo, e dessa forma distorcendo, o sentido do que dizem as Sagradas Escrituras a respeito dos que querem penetrar os mistérios divinos, para os que se volvem para os segredos da natu­reza, cuja exploração não está de maneira alguma interdita. Outros, mais engenhosos, pretendem que, se se ignoram as causas segun­das 63 será mais fácil atribuir-se os eventos singulares à mão e à féru­la divinas — o que pensam ser do máximo interesse para a religião. Na verdade, procuram “agradar a Deus pela mentira”. 64

Outros temem que, pelo exemplo, os movimentos e as mudanças da filosofia acabem por recair e abater-se sobre a religião. Outros. finalmente, parecem temer que a investigação da natureza acabe por subverter ou abalar a autoridade da religião, sobretudo para os ignorantes. Mas estes dois últimos temores parecem-nos saber inteira­mente a um instinto próprio de animais, como se os homens, no reces­so de suas mentes e no segredo de suas reflexões, desconfiassem e duvidassem da firmeza da religião e do império da fé sobre a razão e, por isso, temessem o risco da investigação da verdade na natureza. Contudo, bem consideradas as coisas, a filosofia natural, depois da palavra de Deus, é a melhor medicina contra a superstição, e o ali­mento mais substancioso da fé. Por isso, a filosofia natural é justamente reputada como a mais fiel serva da religião, uma vez que uma (as Escrituras) torna manifesta a vontade de Deus, outra (a filosofia natural) o seu poder. Certamente, não errou o que disse: “Errais por ignorância das Escrituras e do poder de Deus” 65 onde se unem e combinam em um único nexo a informação da vontade de Deus e a meditação sobre o seu poder. Ademais, não é de se admirar que tenha sido coibido o desenvolvimento da filosofia natural, desde que a reli­gião, que tanto poder exerce sobre o ânimo dos homens, graças à imperícia e o ciúme de alguns, viu-se contra ela arrastada e predis­posta.

XC

Por outro lado, nos costumes das instituições escolares, das aca­demias, colégios e estabelecimentos semelhantes, destinados à sede dos homens doutos e ao cultivo do saber, tudo se dispõe de forma adversa ao progresso das ciências. De fato, as lições e os exercícios estão de tal maneira dispostos que não é fácil venha a mente de alguém pensar ou se concentrar em algo diferente do rotineiro. Se um ou outro, de fato, se dispusesse a fazer uso de sua liberdade de juízo, teria que, por si só, levar a cabo tal empresa, sem esperar receber qualquer ajuda resultante do convívio com os demais. E, sendo ainda capaz de suportar tal circunstância, acabará por descobrir que a sua indústria e descortino acabarão por se constituir em não pequeno entrave à sua boa fortuna. Pois os estudos dos homens, nesses locais, estão encerrados, como em um cárcere, em escritos de alguns autores. Se alguém deles ousa dissentir, é logo censurado como espírito turbu­lento e ávido de novidades. Mas, a tal respeito é preciso assinalar que. com efeito, há uma grande diferença entre os assuntos políticos e as artes 66: não implicam o mesmo perigo um novo movimento e uma nova luz. Na verdade, uma mudança da ordem civil, mesmo quando para melhor, é suspeita de perturbação, visto que ela descansa sobre a autoridade, sobre a conformidade geral, a fama e sobre a reputação e não sobre a demonstração. Nas artes e nas ciências, ao contrário, o ruído das novas descobertas e dos progressos ulteriores deve ressoar como nas minas de metal. Assim pelo menos devia ser conforme os ditames da boa razão, mas tal não ocorre na prática, pois, como antes assinalamos, a forma de administração das doutrinas e a forma de ordenação das ciências costumam oprimir duramente o seu progresso.