NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I - AFORISMOS

Aforismos 71-75
 

LXXI

As ciências que possuímos provieram em sua maior parte dos gregos. O que os escritores romanos, árabes ou os mais recentes acrescentaram não é de monta nem de muita importância; de qualquer modo, está fundado sobre a base do que foi inventado pelos gregos. Contudo, a sabedoria 32 dos gregos era professoral 33 e pródiga em disputas — que é um gênero dos mais adversos à investigação da verdade. Desse modo, o nome de sofistas, que foi aplicado depreciati­vamente aos que se pretendiam filósofos e que acabou por designar os antigos retores, Górgias, Protágoras, Hípias e Polo, compete igual­mente a Platão, Aristóteles, Zenão, Epicuro, Teofrasto; e aos seus sucessores Crisipo, Carnéades, e aos demais. Entre eles havia apenas esta diferença: os primeiros eram do tipo errante e mercenário, per­corriam as cidades, ostentando a sua sabedoria e exigindo estipêndio; os outros, do tipo mais solene e comedido, tinham moradas fixas, abriram escolas e ensinaram a filosofia gratuitamente. Mas ambos os gêneros, apesar das demais disparidades, eram professorais e favoreciam as disputas, e dessa forma facilitavam e defendiam seitas e here­sias filosóficas, e as suas doutrinas eram (como bem disse, não sem argúcia, Dionísio, de Platão) palavras de velhos ociosos a jovens ignorantes. 34 Mas os mais antigos dos filósofos gregos, Empédocles, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Parmênides, Heráclito, Xenófanes, Filolau e outros (omitimos Pitágoras, por se ter entregue à supersti­ção), não abriram escolas, ao que saibamos: ao contrário, e, no maior silêncio, com rigor e simplicidade, vale dizer, com menor afetação e aparato, se consagraram à investigação da verdade. E a nosso juízo, melhor se saíram, só que suas obras, com o decorrer do tempo, foram sendo ofuscadas por outras mais superficiais, mas mais afeitas à capacidade e ao gosto do vulgo; pois o tempo, como o rio, trouxe-nos as coisas mais leves e infladas, submergindo o mais pesado e consis­tente. Contudo, nem mesmo eles foram imunes aos vícios de seu povo, pois propendiam mais que o desejável à ambição e à vaidade de fun­darem uma seita e captarem a aura popular. Nada se há de esperar, com efeito, da busca da verdade, quando distorcida por tais inanida­des. E, a propósito, não se deve omitir aquela sentença, ou melhor, vaticínio, do sacerdote egípcio a respeito dos gregos: “Sempre serão crianças, não possuirão nem a antiguidade da ciência, nem a ciência da Antiguidade”. 35 Os gregos, com efeito, possuem o que é próprio das crianças: estão sempre prontos para tagarelar, mas são incapazes de gerar, pois, a sua sabedoria é farta em palavras, mas estéril de obras. Aí está por que não se mostram favoráveis os signos 36 que se observam na gente e na fonte de que provém a filosofia ora em uso.

LXXII

Os signos que se podem retirar das características do tempo e da idade não são muito melhores que os das características do lugar e da nação. Naquela época era limitado e superficial o conhecimento his­tórico e geográfico, o que é muito grave sobretudo para os que tudo depositam na experiência. Não possuíam, digna desse nome, uma his­tória que remontasse aos mil anos, e que se não reduzisse a fábulas e rumores da Antiguidade. Na verdade, conheciam apenas uma exígua parte dos países e das regiões do mundo. Chamavam indistintamente de citas a todos os povos setentrionais e de celtas a todos os ocidentais. Nada conheciam das regiões africanas, situadas além da Etiópia setentrional, nem da Ásia de além Ganges, e muito menos ainda das províncias do Novo Mundo, de que nada sabiam, nem de ouvido, nem de qualquer tradição certa e constante. E mais, julgavam inabitáveis muitas zonas e climas em que vivem e respiram inumeráveis povos. As viagens de Demócrito, Platão, Pitágoras, que não eram mais que excursões suburbanas, eram celebradas como grandiosas. Em nossos tempos, ao contrário, tornaram-se conhecidas não apenas muitas partes do Novo Mundo, como também todos os extremos limites do Mundo Antigo, e assim é que o número de possibilidades de experi­mentos foi incrementado ao infinito. Enfim, se se devem interpretar os signos à maneira dos astrólogos, os que se podem retirar do tempo de nascimento e de concepção daquelas filosofias indicam que nada de grande delas se pode esperar.

LXXIII

De todos os signos nenhum é mais certo ou nobre que o tomado dos frutos. Com efeito, os frutos e os inventos são como garantias e fianças da verdade das filosofias. Ora, de toda essa filosofia dos gre­gos e todas as ciências particulares dela derivadas, durante o espaço de tantos anos, não há um único experimento de que se possa dizer que tenha contribuído para aliviar e melhorar a condição humana, que seja verdadeiramente aceitável e que se possa atribuir às especulações e às doutrinas da filosofia. É o que ingênua e prudentemente reconhece Celso 37 ao falar que primeiro se fizeram experimentos em medicina, e depois sobre eles os homens construíram os sistemas filo­sóficos, buscando e assinalando as causas, e não inversamente, ou seja, que da descoberta das causas se tenham estabelecido e deduzido os experimentos da medicina. Por isso não deve parecer estranho que entre os egípcios, que divinizavam e consagravam os inventores, hou­vesse mais imagens de animais que de homens, pois os animais com seu instinto natural produziram muito no caminho de descobertas úteis, enquanto os homens, com os seus discursos e ilações racionais, pouco ou nada concluíram.

Os alquimistas com sua atividade fizeram algumas descobertas, mas como que por acaso e pela variação dos experimentos (como fazem com freqüência os mecânicos), não por arte e com método, e isso porque a sua atividade tende mais a confundir os experimentos que a estimulá-los. Mesmo aqueles que se dedicaram à chamada magia natural fizeram algumas descobertas, mas poucas em número e sobretudo superficiais e frutos da impostura. Devemos, em suma, aplicar à filosofia o princípio da religião, que quer que a fé se mani­feste pelas obras, estabelecendo assim que um sistema filosófico seja julgado pelos frutos que seja capaz de dar; se é estéril deve ser refu­tado como coisa inútil, sobretudo se em lugar de frutos bons como os da vinha e da oliva produz os cardos e espinhos das disputas e das contendas.

LXXIV

Outros signos se podem retirar do desenvolvimento e do pro­gresso da filosofia e das ciências, porque aquilo que tem o seu funda­mento na natureza cresce e se desenvolve, mas o que não tem outro fundamento que a opinião varia, mas não progride. Por isso, se aquelas doutrinas em vez de serem, como são, comparáveis a plantas despojadas de suas raízes tivessem aprofundado suas raízes no próprio seio da natureza e dela tivessem retirado a própria substância, as ciências não teriam permanecido por dois mil anos estagnadas no seu estádio originário; e quase no mesmo estado permanecem, sem qualquer progresso notável. Dessa forma. foram pouco a pouco declinando à medida que se afastaram dos primeiros autores que as fizeram florescer. Nas artes mecânicas, que são fundadas na natureza e se enriquecem das luzes da experiência, vemos acontecer o contrário, e essas (desde que cultivadas), como que animadas por um espírito, continuamente se acrescentam e se desenvolvem, de inicio grosseiras, depois cômodas e aperfeiçoadas, e em contínuo progresso.

LXXV

Deve-se considerar ainda um outro signo (se se deve colocar entre os signos um fato que é mais uma prova e entre as provas, ainda, a mais certa), seja, a confissão daqueles autores que ora estão em grande voga. De fato, mesmo aqueles que com tanta confiança pronunciam o seu juízo sobre a realidade, mesmo eles, quando mais conscienciosos, põem-se a lamentar a respeito da obscuridade das coisas, da sutileza da natureza, da fraqueza do intelecto humano. Ora, se se limitassem a isso, certamente os mais tímidos seriam dissuadidos de ulteriores investigações, mas os que têm o engenho mais ála­cre e confiante receberiam mais incitamento e sugestão para progre­direm ulteriormente. Mas, não contentes de falarem deles próprios, põem fora dos limites do possível tudo o que tenha permanecido ignorado e inatingível para si e para os seus mestres, e declaram-no incognoscível e irrealizável, quase sob a autoridade da própria arte. Com suma presunção e malignidade fazem de sua fraqueza razão de calú­nia para com a natureza e desespero para com todos os demais. Assim, a Nova Academia professou a acatalepsia e condenou os homens à perpétua ignorância. Daí surge a opinião de que as formas, que são as verdadeiras diferenças das coisas, isto é, as leis efetivas do ato puro, são impossíveis de serem descobertas, porque colocadas além de qualquer alcance humano. Daí surgem as opiniões, acolhidas na parte ativa e operativa da ciência, de que o calor do sol e o do fogo são diferentes por natureza; que tendem a tolher na humanidade a esperança de poder extrair ou construir, por meio do fogo, qualquer coisa de semelhante ao que acontece na natureza. 38 E ainda mais, que a composição é obra do homem, enquanto que a mistura é obra apenas da natureza: o que equivale a tolher toda esperança de poder realizar, com meios artificiais, os processos de geração e de transformação dos corpos naturais. Por este signo não deverá ser difícil persuadir os homens a não misturarem as suas sortes e fados com dogmas não apenas desesperados, mas destinados à desesperação.