NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I - AFORISMOS

Aforismos 61-65
 

LXI

Por sua vez, os ídolos do teatro não são inatos, nem se insinua­ram às ocultas no intelecto, mas foram abertamente incutidos e rece­bidos por meio das fábulas dos sistemas e das pervertidas leis de demonstração. Porém, tentar e sustentar a sua refutação não seria consentâneo com o que vimos afirmando. Pois, se não estamos de acordo nem com os princípios nem com as demonstrações, não se ad­mite qualquer argumentação. O que, ademais, é um favor dos fados, pois dessa forma é respeitada a glória dos antigos. Nada se lhes sub­trai, já que se trata de uma questão de método. Um coxo (segundo se diz) no caminho certo, chega antes que um corredor extraviado, e o mais hábil e veloz, correndo fora do caminho, mais se afasta de sua meta, O nosso método de descobrir a verdadeira ciência é de tal sorte que muito pouco deixa à agudeza e robustez dos engenhos; mas, ao contrário, pode-se dizer que estabelece equivalência entre engenhos e intelectos. Assim como para traçar uma linha reta ou um círculo per­feito, perfazendo-os a mão, muito importam a firmeza e o desempe­nho, mas pouco ou nada importam usando a régua e o compasso. O mesmo ocorre com o nosso método. Ainda que seja de utilidade nula a refutação particular de sistemas, diremos algo das seitas e teorias e, a seguir, dos signos exteriores que denotam a sua falsidade; e, por úl­timo, das causas de tão grande infortúnio e tão constante e generali­zado consenso no erro. E isso para que se torne menos difícil o acesso à verdade e o intelecto humano com mais disposição se purifique e os ídolos possa derrogar.

LXII

Os ídolos do teatro, ou das teorias, são numerosos, e podem ser, e certamente o serão, ainda em muito maior número. Com efeito, se já por tantos séculos não tivesse a mente humana se ocupado de religião e teologia; e se os governos civis (principalmente as monarquias) não tivessem sido tão adversos para com as novidades, mesmo nas espe­culações filosóficas a tal ponto que os homens que as tentam sujei­tam-se a riscos, ao desvalimento de sua fortuna, e, sem nenhum prê­mio, expõem-se ao desprezo e ao ódio; se assim não fosse, sem dúvida, muitas outras seitas filosóficas e outras teorias teriam sido introduzidas, tais como floresceram tão grandemente diversificadas entre os gregos. Pois, do mesmo modo que se podem formular muitas teorias do céu 19 a partir dos fenômenos celestes; igualmente, com mais razão, sobre os fenômenos de que se ocupa a filosofia se podem fundar e constituir muitos dogmas. E acontece com as fábulas deste teatro o mesmo que no teatro dos poetas. As narrações feitas para a cena são mais ordenadas e elegantes e aprazem mais que as verdadeiras narrações tomadas da história.

Mas em geral supõe-se para matéria da filosofia ou muito a par­tir de pouco ou pouco a partir de muito. Assim, a filosofia se acha fundada, em ambos os casos, numa base de experiência e história natural excessivamente estreita e se decide a partir de um número de dados muito menor que o desejável. Assim, a escola racional 20 se apodera de um grande número de experimentos vulgares, não bem comprovados e nem diligentemente examinados e pensados, e o mais entrega à meditação e ao revolver do engenho.

Há também outra espécie de filósofos que se exercitaram, de forma diligente e acurada, em um reduzido número de experimentos e disso pretenderam deduzir e formular sistemas filosóficos acabados, ficando, estranhamente, os fatos restantes à imagem daqueles poucos distorcidos.

E há uma terceira espécie de filósofos, os quais mesclam sua filo­sofia com a teologia e a tradição amparada pela fé e pela veneração das gentes. Entre esses, há os que, levados pela vaidade, pretenderam estabelecer e deduzir as ciências da invocação de espíritos e gênios. 21 Dessa forma, são de três tipos as fontes dos erros e das falsas filoso­fias: a sofística, a empírica e a supersticiosa.

LXIII

O mais conspícuo exemplo da primeira é o de Aristóteles, que corrompeu com sua dialética a filosofia natural: ao formar o mundo com base nas categorias; ao atribuir à alma humana, a mais nobre das substâncias, um gênero extraído de conceitos segundos; 22 ao tra­tar da questão da densidade e da rarefação, com que se indica se os corpos ocupam maiores ou menores extensões, conforme suas dimen­sões, por meio da fria distinção de potência e ato; ao conferir a cada corpo apenas um movimento próprio, afirmando que, se o corpo participa de outro movimento, este provém de uma causa externa; ao impor à natureza das coisas inumeráveis distinções arbitrárias, mostrando-se sempre mais solícito em formular respostas e em apre­sentar algo positivo nas palavras do que a verdade íntima das coisas. Isso se torna mais manifesto quando se compara a sua filosofia com as filosofias que eram mais celebradas entre os gregos. Sem dúvida, as homeomerias, de Anaxágoras; os átomos, de Leucipo e Demócrito; o céu e a terra, de Parmênides; a discórdia e a amizade, de Empédocles; a resolução dos corpos na adiáfora natureza do fogo e o seu retorno ao estado sólido, de Heráclito, sabem a filosofia natural, a natureza das coisas, experiência e corpos. 23 Mas na Física, de Aristóteles, na maior parte dos casos, não ressoam mais que as vozes de sua dialética. Retoma-a na sua Metafísica, sob nome mais solene, e mais como rea­lista que nominalista. A ninguém cause espanto que no Livro dos Animais e nos Problemas, e em outros tratados, ocupe-se freqüentemente de experimentos. Pois Aristóteles estabelecia antes as conclusões, não consultava devidamente a experiência para estabelecimento de suas resoluções e axiomas. E tendo, ao seu arbítrio, assim decidi­do, submetia a experiência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões. Eis por que está a merecer mais censuras que os seus seguidores modernos, os filósofos escolásticos, que abandonaram totalmente a experiência.

LXIV

A escola empírica de filosofia engendra opiniões mais disformes e monstruosas que a sofistica ou racional. As suas teorias não estão baseadas nas noções vulgares (pois estas, ainda que superficiais, são de qualquer maneira universais e, de alguma forma, se referem a um grande número de fatos), mas na estreiteza de uns poucos e obscuros experimentos. Por isso, uma tal filosofia parece, aos que se exerci­taram diariamente nessa sorte de experimentos, contaminando a sua imaginação, mais provável, e mesmo quase certa; mas aos demais apresenta-se como indigna de crédito e vazia. Há na alquimia, nas suas explicações, um notável exemplo do que se acaba de dizer. Em nossos dias não se encontram muitos desses casos, exceção feita tal­vez à filosofia de Gilbert. Contudo, em relação a tais sistemas filosófi­cos, não se pode renunciar à cautela. Desde já, prevenimos e augura­mos que quando os homens, conduzidos por nossos conselhos, se voltem de verdade para a experiência, afastando-se das doutrinas sofisticas, pode ocorrer que, devido à impaciência e à precipitação do intelecto, saltem ou mesmo voem às leis gerais e aos princípios das coisas. Um grande perigo, pois, pode advir dessas filosofia e contra ele nos devemos acautelar desde já.