NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I - AFORISMOS

Aforismos 126-130
 

CXXVI

Ainda nos pode ser endereçado o reparo de que, sob o pretexto de admitirmos unicamente a enunciação de juízos e o estabelecimento de princípios certos, só depois de se terem alcançado as verdades mais gerais, rigorosamente a partir de graus intermediários, sustenta­mos a suspensão do juízo e acabamos assim por cair em uma espécie de acatalepsia. Mas, em verdade, não cogitamos e nem propomos a acatalepsia, mas a eucatalepsia, 121 pois não pretendemos abdicar dos sentidos, mas ampará-los; nem desprezar o intelecto, mas dirigi-lo. Enfim, é melhor saber-se tudo o que ainda está para ser feito, supondo que não o sabemos, que supor-se que bem o sabemos, e ignorar total­mente o que nos falta.

CXXVII

Ainda nos pode ser indagado, mais como dúvida que como obje­ção, se intentamos, com nosso método, aperfeiçoar apenas a filosofia natural 122 ou também as demais ciências: a lógica, a ética e a política. Ora, o que dissemos deve ser tomado como se estendendo a todas as ciências. Do mesmo modo que a lógica vulgar, que ordena tudo segundo o silogismo, aplica-se não somente às ciências naturais, mas a todas as ciências, assim também a nossa lógica, que procede por indução, tudo abarca. Por isso, pretendemos constituir história e tábuas de descobertas para a ira, o medo, a vergonha e assuntos seme­lhantes; e também para exemplos das coisas civis e, não menos, para as operações mentais, como a memória, para a composição e a divi­são, 123 para o juízo, 124 etc. E, ainda, para o calor, para o frio, para a luz, vegetação e assuntos semelhantes. Porém, como o nosso méto­do de interpretação, uma vez preparada e ordenada a história, não se dirige unicamente aos processos discursivos da mente, como a lógica vulgar, mas à natureza de todas as coisas, tratamos de conduzir a mente de tal modo que possa se aplicar à natureza das coisas, de forma adequada a cada caso particular. É por isso que na doutrina da interpretação indicamos muitos e diversos preceitos que, de alguma forma, ajustam o método de investigação às qualidades e condições do assunto que se considera.

CXXVIII

Mas no que não pode pairar qualquer dúvida é quanto à nossa pretensa ambição de destruir e demolir a filosofia, as artes e as ciências, ora em uso. Antes pelo contrário, admitimos de bom grado o seu uso, o seu cultivo e o respeito de que gozam. De modo algum nos opomos a que as artes comumente empregadas continuem a estimular as disputas, a ornar os discursos, sirvam às conveniências professo­rais e aproveitem os reclamos da vida civil e, como as moedas, circu­lem graças ao consenso dos homens. Indo mais longe, declaramos abertamente que tudo o que propomos não há de ser de muito prés­timo a esse tipo de usos, uma vez que não poderá ser colocado ao alcance do vulgo, a não ser pelos seus efeitos e pelas obras propicia­dos. São testemunho de nossa boa disposição e de nossa boa vontade, para com as ciências ora aceitas, nossos escritos já publicados, espe­cialmente os livros sobre O Progresso das Ciências. 125 Não intenta­mos, por isso, prová-lo melhor com palavras. Contudo, advertimos de modo claro e firme que com os atuais métodos não se pode lograr grandes progressos nas doutrinas e nas indagações sobre ciências, e bem por isso não se podem esperar significativos resultados práticos.

CXXIX

Resta-nos dizer algumas palavras acerca da excelência do fim proposto. Se as tivéssemos dito logo de início, poderiam ser tomadas por simples aspirações. Mas, uma vez que firmamos as esperanças e eliminamos os iníquos prejuízos, terão certamente mais peso. Se tivés­semos conduzido e realizado tudo sem invocar a participação e a ajuda de outros para a nossa empresa, nesse caso, abster-nos-íamos de quaisquer palavras, para que não fossem tomadas como proclama­doras de nossos próprios méritos. Mas, como é necessário estimular a indústria dos outros homens, e mesmo excitar e inflamar-lhes o ânimo, é de toda conveniência fixar certos pontos em suas mentes.

Em primeiro lugar, parece-nos que a introdução de notáveis descobertas ocupa de longe o mais alto posto entre as ações humanas. Esse foi também o juízo dos antigos. Os antigos, com efeito, tributa­vam honras divinas aos inventores, 126 enquanto que concediam aos que se distinguiam em cometimentos públicos, como os fundadores de cidades e impérios, os legisladores, os libertadores da pátria de males repetidos, os debeladores das tiranias, etc., simplesmente honras de heróis. E, em verdade, a quem estabelecer entre ambas as coisas um confronto correto, parecerá justo o juízo daqueles tempos remotos. Pois, de fato, os benefícios dos inventos podem estender-se a todo o gênero humano, e os benefícios civis alcançam apenas algumas comu­nidades e estes duram poucas idades, enquanto que aqueles podem durar para sempre. Por outro lado, a reforma de um Estado dificil­mente se cumpre sem violência e perturbação, mas os inventos trazem venturas e os seus benefícios a ninguém prejudicam ou amarguram.

Além disso, os inventos são como criações e imitações das obras divinas, como bem cantou o poeta:

Primum frugiferos foetus mortalibus aegris

Dididerant quondam praestanti nomini Athenae

Et RECREAVERUNT vitam legesque rogarunt. 127

E é digno de nota o exemplo de Salomão, eminente pelo impé­rio, pelo ouro, pela magnificência de suas obras, pela escolta e famu­lagem, pela sua frota, pela imensa admiração que provocava nos homens, e que nada dessas coisas elegeu para a sua glória, e em vez disso proclamou: “A glória de Deus consiste em ocultar a coisa, a glória do rei em descobri-la”. 128

Considere-se ainda, se se quiser, quanta diferença há entre a vida humana de uma região das mais civilizadas da Europa e uma região das mais selvagens e bárbaras da Nova Índia. 129 Ela parecerá tão grande que se poderá dizer que “O homem é Deus para o homem”, 130, não só graças ao auxílio e benefício que ele pode prestar a outro homem, como também pela comparação das situações. E isso ocorre não devido ao solo, ao clima ou à constituição física.

Vale também recordar a força, a virtude e as conseqüências das coisas descobertas, o que em nada é tão manifesto quanto naquelas três descobertas que eram desconhecidas dos antigos e cujas origens, embora recentes, são obscuras e inglórias. Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação. Daí se seguiram inúmeras mudanças e essas foram de tal ordem que não consta que nenhum império, nenhuma seita, nenhum astro tenham tido maior poder e exercido maior influência sobre os assuntos humanos que esses três inventos mecânicos.

A esta altura, não seria impróprio distinguirem-se três gêneros ou graus de ambição dos homens. O primeiro é o dos que aspiram ampliar seu próprio poder em sua pátria, gênero vulgar a aviltado; o segundo é o dos que ambicionam estender o poder e o domínio de sua pátria para todo o gênero humano, gênero sem dúvida mais digno, mas não menos cúpido. Mas se alguém se dispõe a instaurar e esten­der o poder e o domínio do gênero humano sobre o universo, a sua ambição (se assim pode ser chamada) seria, sem dúvida, a mais sábia e a mais nobre de todas. Pois bem, o império do homem sobre as coi­sas se apóia unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão obedecendo-lhe. 131

E mais ainda: se a utilidade de um invento particular abalou os homens a ponto de levá-los a considerar mais que homem aquele que ofereceu à humanidade inteira apenas um único beneficio, que excelso lugar não ocupará a descoberta que vier abrir caminho a todas as demais descobertas? Contudo, e para dizer toda a verdade, assim como devemos dar graças à luz, mercê da qual podemos praticar as artes, ler e reconhecermo-nos uns aos outros, devemos reconhecer que a própria visão da luz é muito mais benéfica e bela que todas as suas vantagens práticas. Assim também a contemplação das coisas tais como são, sem superstição e impostura, sem erro ou confusão, é em si mesma mais digna que todos os frutos das descobertas.

Por último, se se objetar com o argumento de que as ciências e as artes se podem degradar, facilitando a maldade, a luxúria e paixões semelhantes, que ninguém se perturbe com isso, pois o mesmo pode ser dito de todos os bens do mundo, da coragem, da força, da própria luz e de tudo o mais. Que o gênero humano recupere os seus direitos sobre a natureza, direitos que lhe competem por dotação divi­na. Restitua-se ao homem esse poder e seja o seu exercício guiado por uma razão reta e pela verdadeira religião.

CXXX

Já é tempo de expor a arte de interpretar a natureza. A propósito devemos deixar claro que, embora acreditemos ai se encontrarem pre­ceitos muito úteis e verdadeiros, não lhe atribuímos absoluta necessi­dade ou perfeição. De fato, somos da opinião de que se os homens tivesssem à mão uma adequada história da natureza e da experiência, e a ela se dedicassem cuidadosamente, e se, além disso, se impuses­sem duas precauções: uma, a de renunciar às opiniões e noções rece­bidas; outra, a de coibir, até o momento exato, o ímpeto próprio da mente para os princípios mais gerais e para aqueles que se acham pró­ximos; se assim procedessem, acabariam, pela própria e genuína força de suas mentes, sem nenhum artifício, por chegar à nossa forma de interpretação. A interpretação é, com efeito, a obra verdadeira e natural da mente, depois de liberta de todos os obstáculos. Mas com os nossos preceitos tudo será mais rápido e seguro.

Não pretendemos que nada lhe possa ser acrescentado. Ao contrário, nós, que consideramos a mente não meramente pelas facul­dades que lhe são próprias, mas na sua conexão com as coisas, deve­mos presumir que a arte da invenção robustecer-se-á com as próprias descobertas.