NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I - AFORISMOS

Aforismos 120-125
 

CXX

Com referência a fatos considerados vis e torpes, aos quais (como diz Plínio), 110 é necessário render homenagem, devem inte­grar, não menos que os mais brilhantes e preciosos, a história natural. Não será a história natural maculada: do mesmo modo que também não se macula o sol que penetra igualmente palácios e cloacas. Não pretendemos dedicar ou construir um capitólio ou uma pirâmide à soberba humana. Mas fundamos no intelecto humano um templo santo à imagem do mundo. E por ele nos pautamos. Pois tudo o que é digno de existir é digno de ciência, que é a imagem da realidade. As coisas vis existem tanto quanto as admiráveis. E indo mais longe: do mesmo modo que se produzem excelentes aromas de matérias pútri­das, como o almíscar e a algália, também de circunstâncias vis e sórdidas emanam luz e exímias informações. E isso é suficiente, pois esse gênero de desagrado é pueril e efeminado.

CXXI

Há ainda outro assunto que deve merecer o mais acurado exame. É que muitas das coisas da nossa história parecerão, ao intelecto vul­gar e a qualquer mente afeita às coisas presentes, curiosas e de uma sutileza inútil. Disso já tratamos e vamos repetir o que antes disse­mos: de início e por certo tempo, buscamos apenas os experimentos lucíferos e não os experimentos frutíferos, tomando por exemplo a criação divina que, como temos reiterado, no primeiro dia produziu unicamente a luz, a ela dedicando todo um dia, não se aplicando nesse dia a nenhuma obra material.

Se alguém reputa tais coisas como destituídas de uso, seria o mesmo que entendesse não ter também a luz qualquer uso, por não se tratar de uma coisa sólida ou material. E, a bem da verdade, deve ser dito que o conhecimento das naturezas simples, 111 quando bem examinado e definido, é como a luz, que abre caminho ao segredo de todas as obras, e com o poder que lhe é próprio abrange e arrasta todas as legiões e exércitos de obras e as fontes dos axiomas mais nobres, não sendo, contudo, em si mesma de grande uso. Da mesma forma, as letras do alfabeto, em si e tomadas isoladamente, nada sig­nificam e a nada servem. Contudo, são como que a matéria-prima para a composição e preparação de todo discurso. Assim também as sementes das coisas têm virtualmente grande poder, mas fora de seu processo de desenvolvimento para nada servem. E os raios dispersos da própria luz, se não convergentes, não produzem beneficio.

Se alguém se ofende com as sutilezas especulativas, o que dizer então dos escolásticos que, com tanta indulgência, se entregaram às sutilezas? Tais sutilezas se consumiam nas palavras ou, pelo menos, em noções vulgares (o que dá no mesmo), não penetravam nas coisas ou na natureza. Não ofereciam utilidade não só em suas origens, como também em suas conseqüências. E não eram, enfim, de tal forma que, como as de que nos ocupamos, não tendo utilidade no pre­sente, oferecem-na infinita em suas conseqüências. Tenham os ho­mens por certo que toda sutileza nas disputas ou nos esforços da mente, se aplicada depois da descoberta dos axiomas, será extempo­rânea e que o momento próprio, pelo menos precípuo do uso de sutile­zas, é aquele em que se examina a experiência, para a partir dela se constituírem os axiomas. Com efeito, aquele outro gênero de sutileza persegue e procura captar a natureza, mas nunca a alcança e submete. É muito certo, se transposto para a natureza, o que se diz da ocasião e da fortuna, “que tem fartos cabelos vista de frente e é calva vista de trás”. 112

Enfim, a propósito do desprezo que se vota, na história natural, às coisas vulgares, vis ou muito sutis ou de nenhuma utilidade, em sua origem, são como oraculares as palavras de uma pobre mulher, dirigidas a um príncipe arrogante, que rejeitara sua petição por ser indigna de sua majestade: “Deixa, pois, de ser rei”. 113 Pois é absolutamente certo que ninguém que deixe de levar em conta essas coisas, por ínfimas e insignificantes que sejam, conseguirá e poderá exercer domínio sobre a natureza.

CXXII

Costuma-se objetar também ser espantoso e muito rigoroso que­rermos, de um só golpe, rechaçar todas as ciências e todos os autores e, isso, sem recorrer a nenhum dos antigos, para auxílio ou defesa, valendo-nos apenas de nossas próprias forças.

Entretanto, sabemos perfeitamente que, se quiséssemos agir com menos boa fé não nos seria difícil relacionar o que vamos expor com os tempos antigos anteriores aos dos gregos, nos quais as ciências, especialmente as da natureza, mais floresceram, ainda em silêncio, antes de passarem pelas trombetas e flautas dos gregos; ou, mesmo ainda que em parte, com alguns dentre os próprios gregos, neles reco­lhendo apoio e glória, à maneira dos novos-ricos que, com ajuda de genealogias, forjam e inventam a sua nobreza, a partir da descen­dência de alguma antiga linhagem. Quanto a nós apoiados na evidên­cia dos fatos, rejeitamos toda sorte de fantasia ou impostura. E não reputamos de interesse para o que nos ocupa o saber-se se o que vai ser descoberto já era conhecido dos antigos ou se está sujeito às vicis­situdes das coisas ou às circunstâncias desta ou daquela idade. Tam­pouco parece digno da preocupação dos homens o saber-se se o Novo Mundo é aquela ilha Atlântida, conhecida dos antigos, ou se foi des­coberta agora pela primeira vez. A descoberta das coisas deve ser feita com recurso à luz da natureza e não pelas trevas da Antiguidade.

Quanto à censura universal que fizemos, é inquestionável, bem considerado o assunto, que parece mais plausível e mais modesta se feita por partes. Pois, se os erros não se tivessem radicado nas noções primeiras, não teria sido possível que certas noções corretas não tives­sem corrigido as demais (portadoras de erros). Mas como os erros são fundamentais e não provenientes de juízos falhos ou falsos, mas da negligência e da ligeireza com que os homens trataram os fatos, não é de se admirar que não tenham conseguido o que não buscaram e que não tenham alcançado a meta que se não tinham proposto, e, ainda, que não tenham percorrido um caminho em que não entraram ou de que se transviaram.

E, se nos acusam de arrogantes, cumpre-nos observar que isso seria verdadeiro de alguém que pretendesse traçar uma linha reta ou um círculo, melhor que algum outro, servindo-se apenas da segurança das mãos e do bom golpe de vista. No caso, haveria uma comparação de capacidade. Mas se alguém afirma poder traçar uma linha mais reta e um círculo mais perfeito servindo-se da régua e do compasso, em comparação a alguém que faça uso apenas das mãos e da vista, esse com certeza não seria um jactancioso. O que ora dizemos não se refere somente aos nossos primeiros esforços e tentativas, mas tam­bém aos dos que se seguiram com os mesmos propósitos. Pois o nosso método de descoberta das ciências quase que iguala os enge­nhos e não deixa muita margem à excelência individual, pois tudo submete a regras rígidas e demonstrações. Eis por que, como já o dis­semos muitas vezes, a nossa obra deve ser atribuída mais à sorte que à habilidade, e é mais parto do tempo que do talento. Pois parece não haver dúvidas de que uma espécie de acaso intervém tanto no pensa­mento dos homens quanto nas obras e nos fatos.

CXXIII

Assim, diremos de nós o que alguém, por gracejo, disse de si: “Não podem ter a mesma opinião quem bebe água e quem bebe vinho”. 114 Com efeito, os demais homens, tanto os antigos como os modernos, beberam nas ciências um licor cru, como a água que mana espontaneamente de sua inteligência, ou haurido pela dialética, como de um poço, por meio de roldanas. Mas, de nossa parte, bebemos e brindamos um licor preparado com abundantes uvas, amadurecidas na estação, de racemos escolhidos, logo espremidas no lagar, e depois purificado e clarificado em vasilhame próprio. Em vista disso, não é de se admirar que não nos ponhamos de acordo com eles.

CXXIV

Podem fazer-nos ainda outra objeção: a de que mesmo nós não prefixamos para as ciências a meta e o escopo melhores e mais verda­deiros, fato que censuramos em outros. E que a contemplação da verdade é mais digna e elevada que a utilidade e a grandeza de qualquer obra, 115 e também que essa longa, solícita e instante dedicação à experiência, à matéria e ao fluxo das coisas particulares curva a mente para a terra ou mesmo a abandona a um Tártaro de confusão e desordem e a afasta e distancia da serenidade e tranqüilidade da sabedoria abstrata, que é muito mais próxima do divino. De bom grado assentimos nessas observações, pois tratamos, precipuamente e antes de mais nada, de alcançar o que os nossos críticos indicam e escolhem. Efetivamente construímos no intelecto humano um modelo verdadeiro 116 do mundo, tal qual foi descoberto e não segundo o capricho da razão de fulano ou beltrano. Porém, isso não é possível levar a efeito, sem uma prévia e diligentíssima dissecção e anatomia do mundo. Por isso, decidimos correr com todas essas imagens inep­tas e simiescas que a fantasia humana infundiu nos vários sistemas filosóficos. Saibam os homens como já antes dissemos a imen­sa distância que separa os ídolos da mente humana das idéias da mente divina. 117 Aqueles, de fato, nada mais são que abstrações arbi­trárias; estas, ao contrário, são as verdadeiras marcas do Criador sobre as criaturas, gravadas e determinadas sobre a matéria, através de linhas exatas e delicadas. Por conseguinte, as coisas em si mesmas, neste gênero, são verdade e utilidade, 118 e as obras devem ser estima­das mais como garantia da verdade que pelas comodidades que propi­ciam à vida humana. 119

CXXV

Pode ser também que sejamos tachados de fazer algo já feito antes e que mesmo os antigos seguiram já semelhante caminho. Assim, qualquer um poderá tomar como verossímil que, depois de tanta agitação e esforço, acabamos por cair em uma daquelas filoso­fias instituídas pelos antigos. Também eles partiam em suas medita­ções de grande quantidade e acúmulo de exemplos e fatos particulares e os dispunham separadamente segundo os assuntos. A seguir compu­nham as suas filosofias e as suas artes e, depois de procederam a uma verificação, enunciavam as suas opiniões, não sem antes ter acrescen­tado, aqui e ali, exemplos, a título de prova ou de elucidação. Toda­via, consideraram supérfluo e fastidioso transcrever suas notas de fatos particulares, apontamentos e comentários e, dessa forma, imita­ram o procedimento usado na construção: depois de terminado o edi­fício foram removidos da vista as máquinas e os andaimes. Não há motivo para crer que tenham procedido de outra forma. Mas quem não se esqueceu do que dissemos antes, facilmente responderá a essa objeção, que é, na verdade, mais um escrúpulo. A forma 120 de inves­tigação e de descoberta própria dos antigos, e sabemo-lo bem, se encontra expressa em seus escritos. E essa forma não consistia em mais que galgar de um salto, a partir de alguns exemplos e fatos parti­culares (juntamente com noções comuns e talvez uma certa porção das opiniões mais aceitas), às conclusões mais gerais ou aos princípios das ciências, Depois, a partir dessas verdades tidas como imutá­veis e fixas, por meio de proposições intermediárias, estabeleciam as conclusões inferiores e, a partir destas, constituíam a arte. Se, porventura, surgissem novos fatos particulares e exemplos que contra­riassem as suas afirmações, por meio de distinções ou da aplicação de suas regras encaixavam-nos em suas doutrinas ou, quando não, grosseiramente os descartavam como exceções. E as causas dos fatos particulares, não conflitantes com os seus princípios, essas eram pertinaz e laboriosamente a eles acomodadas. Aquela experiência e aquela história natural não eram, pois, o que deviam ser, estavam antes muito longe e, ademais, esse vôo súbito aos princípios mais gerais punha tudo a perder.