NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I - AFORISMOS

Aforismos 100-110
 

C

Deve-se buscar não apenas uma quantidade muito maior de experimentos, como também de gênero diferente dos que até agora nos têm ocupado. Mas é necessário, ainda, introduzir-se um método completamente novo, uma ordem diferente e um novo processo, para continuar e promover a experiência. Pois a experiência vaga, deixada a si mesma, como antes já se disse, 86 é um mero tateio, e presta-se mais a confundir os homens que a informá-los. Mas quando a expe­riência proceder de acordo com leis seguras e de forma gradual e constante, poder-se-á esperar algo de melhor da ciência.

CI

Todavia, mesmo quando esteja pronto e preparado o material de história natural e de experiência, na quantidade requerida para a obra do intelecto, ou seja, para a obra da filosofia, nem assim o intelecto estará em condições de trabalhar o referido material espontaneamente e apenas com o auxílio da memória. Seria o mesmo que se tentasse aprender de memória e reter exatamente todos os cálculos de uma tábua astronômica. E até agora, em matéria de invenção, tem sido mais importante o papel da meditação que o da escrita, e a expe­riência não é ainda literata. 87 Apesar disso, nenhuma forma de inven­ção é conclusiva senão por escrito. E é de se esperar melhores frutos quando a experiência literata for de uso corrente.

CII

Além disso, sendo tão grande o número dos fatos particulares, quase um exército, e achando-se de tal modo esparsos e difusos que chegam a desagregar e confundir o intelecto, não é de se esperar boa coisa das escaramuças, dos ligeiros movimentos e incursões do intelecto, a não ser que, organizando e coordenando todos os fatos rela­cionados a um objeto, se utilize de tabelas de invenção idôneas e bem dispostas e como que vivas. Tais tabelas servirão à mente como auxi­liares preparados e ordenados.

CIII

Contudo, mesmo depois de se haver disposto, como que sob os olhos, de forma correta e ordenada a massa de fatos particulares, não se pode ainda passar à investigação e à descoberta de novos fatos particulares ou de novos resultados. Se, não obstante, tal ocorrer, não é de se ficar satisfeito com apenas isso. Todavia, não negamos que de­pois que os experimentos de todas as artes forem recolhidos e organi­zados e, depois, levados à consideração e ao juízo de um só homem, seja possível, pela simples transferência dos conhecimentos de uma arte para outra, com auxílio da experiência a que chamamos de literata, chegar a muitas novas descobertas úteis à vida humana e às suas condições. Todavia, tais resultados, a bem dizer, são de menor impor­tância. Na verdade muito maiores serão os provenientes da nova luz dos axiomas, deduzidos dos fatos particulares, com ordem e por via adequada, e que servem, por sua vez, para indicar e designar novos fatos particulares. Atente-se para isto: o nosso caminho não é plano, há nele subidas e descidas. É primeiro ascendente, em direção aos axiomas, é descendente quando se volta para as obras.

CIV

Contudo, não se deve permitir que o intelecto salte e voe dos fatos particulares aos axiomas remotos e aos, por assim dizer, mais gerais — que são os chamados princípios das artes e das coisas — e depois procure, a partir da sua verdade imutável, estabelecer e provar os axiomas médios. E é o que se tem feito até agora graças à propen­são natural do intelecto, afeito e adestrado desde há muito, pelo emprego das demonstrações silogísticas. Muito se poderá esperar das ciências quando, seguindo a verdadeira escala, por graus contínuos, sem interrupção, ou falhas, se souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas menores, destes aos médios, os quais se elevam acima dos outros, e finalmente aos mais gerais. Em verdade, os axiomas inferiores não se diferenciam muito da simples experiência. Mas os axiomas tidos como supremos e mais gerais (falamos dos de que dis­pomos hoje) são meramente conceituais ou abstratos 88 e nada têm de sólido. Os médios são os axiomas verdadeiros, os sólidos e como que vivos, e sobre os quais repousam os assuntos e a fortuna do gênero humano. Também sobre eles se apoiam os axiomas generalíssimos, que são os mais gerais. Estes entendemos não simplesmente como abstratos, mas realmente limitados pelos axiomas intermediários. Assim, não é de se dar asas ao intelecto, mas chumbo e peso para que lhe sejam coibidos o salto e o vôo. É o que não foi feito até agora; quando vier a sê-lo, algo de melhor será lícito esperar-se das ciências.

CV

Para a constituição de axiomas deve-se cogitar de uma forma de indução diversa da usual até hoje e que deve servir para descobrir e demonstrar não apenas os princípios como são correntemente cha­mados como também os axiomas menores, médios e todos, em suma. Com efeito, a indução que procede por simples enumeração é uma coisa pueril, leva a conclusões precárias, expõe-se ao perigo de uma instância que a contradiga. Em geral, conclui a partir de um nú­mero de fatos particulares muito menor que o necessário e que são também os de acesso mais fácil. Mas a indução que será útil para a descoberta e demonstração das ciências e das artes deve analisar a natureza, procedendo às devidas rejeições e exclusões, e depois, então, de posse dos casos negativos necessários, concluir a respeito dos casos positivos. Ora, é o que não foi até hoje feito, nem mesmo tenta­do, exceção feita, certas vezes, de Platão, que usa essa forma de indu­ção para tirar definições e idéias. Mas, para que essa indução ou demonstração possa ser oferecida como uma ciência boa e legítima, deve-se cuidar de um sem-número de coisas que nunca ocorreram a qualquer mortal. Vai mesmo ser exigido mais esforço que o até agora despendido com o silogismo. E o auxílio dessa indução deve ser invo­cado, não apenas para o descobrimento de axiomas, mas também para definir as noções. E é nessa indução que estão depositadas as maiores esperanças.

CVI

Na constituição de axiomas por meio dessa indução, é neces­sário que se proceda a um exame ou prova: deve-se verificar se o axioma que se constitui é adequado e está na exata medida dos fatos particulares de que foi extraído, se não os excede em amplitude e lati­tude, se é confirmado com a designação de novos fatos particulares que, por seu turno, irão servir como uma espécie de garantia. Dessa forma, de um lado, será evitado que se fique adstrito aos fatos parti­culares já conhecidos; de outro, que se cinja a sombras ou formas abstratas em lugar de coisas sólidas e determinadas na sua matéria. Quando esse procedimento for colocado em uso, teremos um motivo a mais para fundar as nossas esperanças.

CVII

E aqui deve ser recordado o que antes se disse 89 sobre a exten­são da filosofia natural e sobre o retorno ao seu âmbito dos fatos particulares, para que não se instaurem cisões ou rupturas no corpo das ciências. Pois sem tais precauções muito menos há de se esperar em matéria de progresso.

CVIII

Tratou-se, pois, da forma de se eliminar a desesperação, bem como a de se infundir a esperança, eliminando e retificando os erros dos tempos passados. Vejamos se há ainda mais alguma coisa capaz de gerar esperanças. Tal de fato ocorre, a saber: se foi possível a ho­mens que não as buscavam descobrirem muitas coisas, por acaso ou sorte, e até quando tinham outros propósitos, não pode haver dúvida de que quando as buscarem e se empenharem com ordem e método, 90 e não por impulsos e saltos, necessariamente muitas mais haverão de ser descerradas. Por outro lado, pode ocorrer também, uma ou outra vez, que alguém, por acaso, tope com algo que antes lhe escapou quando o buscava com esforço e determinação. Mas na maior parte dos casos, sem dúvida, ocorrerá o contrário. Por conseguinte, pode-se esperar muito mais e melhor e a menores intervalos de tempo, da razão, da indústria, da direção e intenção dos homens que do acaso e do instinto dos animais e coisas semelhantes, que até agora serviram de base para as invenções.

CIX

Pode-se também acrescentar como argumento de esperança o fato de que muitos dos inventos já logrados são de tal ordem que antes a ninguém foi dado sequer suspeitar da sua possibilidade. Eram, ao contrário, olhados como coisas impossíveis. E tal se deve a que os homens procuram adivinhar as coisas novas a exemplo das antigas e com a imaginação preconcebida e viciada. Mas essa é uma maneira de opinar sumamente falaciosa, pois a maioria das descobertas que derivam das fontes das coisas não flui pelos regatos costumeiros.

Assim, por exemplo, se antes da invenção dos canhões alguém, baseado nos seus efeitos, os descrevesse: foi inventada uma máquina que pode, de grande distância, abalar e arrasar as mais poderosas fortificações, os homens então se poriam a cogitar das diferentes e múltiplas formas de se aumentar a força de suas máquinas bélicas pela combinação de pesos e rodas e dispositivos que tais, causadores de embates e impulsos. Mas a ninguém ocorreria, mesmo em imagina­ção ou fantasia, essa espécie de sopro violento e flamejante que se propaga e explode. A sua volta não divisavam nenhum exemplo de algo semelhante, a não ser o terremoto e o raio, que, como fenômenos naturais de grandes proporções, não imitáveis pelo homem, seriam desde logo rejeitados.

Do mesmo modo, se antes da descoberta do fio da seda 91 alguém houvesse falado: há uma espécie de fio para a confecção de vestes e alfaias que supera de longe em delicadeza e resistência e, ainda, em esplendor e suavidade, o linho e a lã, os homens logo se po­riam a pensar em alguma planta chinesa, ou no pêlo muito delicado de algum animal, ou na pluma ou penugem das aves; mas ninguém haveria de imaginar o tecido de um pequeno verme tão abundante e que se renova todos os anos. Se alguém se referisse ao verme teria sido objeto de zombaria, como alguém que sonhasse com um novo tipo de teia de aranha.

Do mesmo modo, se antes da invenção da bússola 92 alguém houvesse falado ter sido inventado um instrumento com o qual se poderia captar e distinguir com exatidão os pontos cardeais do céu; os homens se teriam lançado, levados pela imaginação, a conjeturar a construção dos mais rebuscados instrumentos astronômicos, e pare­ceria de todo incrível que se pudesse inventar um instrumento com movimentos coincidentes com os dos céus, sem ser de substância celeste, mas apenas de pedra ou metal. Contudo, tais inventos e ou­tros semelhantes permaneceram ignorados pelos homens por tantos séculos, e não foram descobertos pelas artes, mas graças ao acaso e oportunidade. Por outro lado, são de tal ordem (como já dissemos), são tão heterogêneos e tão distantes do que antes era conhecido que nenhuma noção anterior teria podido conduzir a eles.

Desse modo, é de se esperar que há ainda recônditas, no seio da natureza, muitas coisas de grande utilidade, que não guardam qual­quer espécie de relação ou paralelismo com as já conhecidas, mas que estão fora das rotas da imaginação. Até agora não foram descobertas.

Mas não há dúvida de que no transcurso do tempo e no decorrer dos séculos virão à luz, do mesmo modo que as antes referidas. Mas, seguindo o caminho que estamos apontando, elas podem ser mostra­das muito antes do tempo usual, podem ser antecipadas, de forma rápida, repentina e simultaneamente.

CX

Mas há outra espécie de invenções que são de tal ordem que nos levam a pensar que o gênero humano pode preteri-las, e deixar para trás nobres inventos praticamente colocados a seus pés. Pois, com efeito, se, de um lado, a invenção da pólvora, da seda, da agulha de marear, do açúcar, do papel e outras do gênero parecem se basear em propriedades das coisas e da natureza, de outro, a imprensa nada apresenta que não seja manifesto e quase óbvio.

De fato, os homens não foram capazes de notar que, se é mais difícil a disposição dos caracteres tipográficos que escrever as letras à mão, aqueles, uma vez colocados, propiciam um número infinito de cópias, enquanto que as letras à mão só servem para uma escrita. Ou talvez não tenham sido capazes de notar que a tinta poderia ser espes­sada de forma a tingir sem escorrer (mormente quando se faz a impressão sobre as letras voltadas para cima). Eis por que por tantos séculos não se pôde contar com essa admirável invenção, tão propicia à propagação do saber. 93

Mas a mente humana, no curso dos descobrimentos, tem estado tão desastrada e mal dirigida que primeiro desconfia de si mesma e depois se despreza. Primeiro lhe parece impossível certo invento; depois de realizado, considera incrível que os homens não o tenham feito há mais tempo. É isso mesmo que reforça os nossos motivos de esperança, pois subsiste ainda um sem-número de descobrimentos a serem feitos, que podem ser alcançados através da já mencionada experiência literata, não só para se descobrirem operações desconhecidas, como também para transferir, juntar e aplicar as já conhecidas.